2. As más companhias (1967/69)
O meu 5º ano do Liceu foi feito em dois anos. Em 1967/68
fiz as Letras e, no ano seguinte, as Ciências. Tudo
por causa da Matemática…
Quer dizer, eu escusava de ter demorado dois anos a acabar
o 5º ano, se não fosse a minha obsessão
pela Medicina. De facto, os exames de Letras até
me correram bem, safei-me nas escritas e nas orais, sempre
tive algum jeito para línguas, em Português
não era nada mau, sobretudo nas redacções,
e também gostava bastante de História.
O jeito para redacções já vinha da
instrução primária. Na 3ª e 4ª
classes tive como professor o proprietário do colégio
D. João da Câmara, o mestre André -
e penso que todos os professores primários se deviam
chamar assim. Pois o mestre André, que também
era proprietário de um café, parece que se
metia nos copos e, por vezes, chegava para as aulas da tarde
já um pouco entornado e, para não ter o trabalho
de dar a aula, mandava-nos fazer uma redacção
logo ali. E quanto ao tema, nunca era "a vaca",
ou "o leite", ou "os animais nossos amigos".
Os temas eram sempre inícios potenciais de uma história
qualquer. Ainda me lembro de alguns: "O eléctrico
parou", "Acabou-se o peixe", "Começou
a chover". E pronto, a partir daquela frase, a gente
tinha que se desenrascar e eu aprendi a fazê-lo, acabando
sempre por inventar uma história com princípio,
meio e fim. Recordo perfeitamente o carão do mestre
André e, sobretudo, as suas grandes manápulas,
cuja força só experimentei uma vez, felizmente.
Se não me engano, estava a conversar animadamente
com o meu colega Almeida Cruz, que se sentava na carteira
atrás de mim, quando o mestre André se levantou
da sua secretária, se aproximou sorrateiramente e
me pregou uma estaladona na cara que me fez ressoar os tímpanos.
Serviu-me de emenda. Aliás, eu era muito bem comportado
e, naqueles tempos, era impensável um aluno da instrução
primária falar nas aulas, sem autorização
do mestre. Se, de repente, um aluno desse tempo fosse transportado
até a uma aula contemporânea e deparasse com
os alunos aos pulos em cima das carteiras, enquanto a professora
tenta, timidamente, impor alguma ordem na classe, sofreria,
certamente, um choque formidável.
Não sei por que razão os meus pais me matricularam
num colégio particular, embora suspeite que a razão
se prendeu com o facto de a escola oficial se situar muito
longe da nossa casa. Morávamos na Avenida Gomes Pereira,
em Benfica, e o Colégio D. João da Câmara
ficava numa vivenda, mesmo ao fundo da avenida, o que me
permitia ir e vir sozinho. Ainda me lembro bem do meu primeiro
dia de aulas. Levava vestida uma samarra e entrei no colégio
pelas traseiras, directamente para a sala da terceira e
da quarta classe, onde só estavam calmeirões.
A professora, ao deparar com aquele jovem tão tenrinho
e com ar assustado, vestindo uma samarra com gola de pele
de coelho, disse qualquer coisa como "onde vai o coelhinho?",
o que provocou uma risada geral na maltósia. Confesso
que não foi um bom começo. O que vale é
que a professora da primeira e da segunda classe era a D.
Adelaide, proprietária do colégio e que era
uma senhora muito terna, o que ajudou à minha rápida
adaptação à difícil vida de
estudante. Dois anos depois, eventuais dificuldades financeiras
fizeram com que o Colégio D. João de Castro
se mudasse para a cave de um prédio de habitação.
Os meus dois últimos anos de instrução
primária decorreram, portanto, numa sala de uma cave
mais ou menos escura e com o tal mestre André como
professor. No entanto, apesar daquela chapada, tenho boas
recordações do meu professor e penso que me
preparou bem para o liceu.
Já não me lembro das notas que tive nos exames
de Letras, mas passei e podia ter ido logo para o 6º
ano, mandando as Ciências às urtigas. Mas a
Medicina!…
Essa decisão teria mudado a minha vida. Agora, seria
um honrado professor de História, colocado numa escola
qualquer dos subúrbios, ou ter-me-ia transformado
num tradutor ou, quem sabe, num escritor profissional. Ou
então, se a minha fugaz passagem pelo jornalismo
tivesse acontecido num cenário de um curso de Letras,
talvez tivesse ficado pelas lides da comunicação
social. Enfim, a minha obsessão pela Medicina…
Mas, afinal, que raio de obsessão era essa? Será
que nasci para ser médico? Se me perguntar por que
razão é que decidi, desde pequenino, que queria
ser médico, não sou capaz de dar uma resposta
concreta. Tinha que ser assim, estava escrito, era predestinado.
Ou então, a explicação é provavelmente
mais prosaica, embora um pouco romântica.
Como bons portugueses dos anos 30, os meus pais tiveram
ambos tuberculose ao mesmo tempo e encontravam-se, com frequência,
no consultório do Dr. Artur de Oliveira, cardiologista
de renome que, como era hábito naqueles tempos, em
que não havia uma rede bem organizada de luta anti-tuberculose,
fazia um pouco de tudo, no campo da Medicina. Para resumir
a história e não causar lágrimas nos
olhos dos mais sensíveis, o meu pai e a minha mãe
começaram a namorar-se e acabaram por casar. E quem
haveria de ser o padrinho do casamento se não o médico?
História habitual…
Nove meses depois do casamento, nascia eu e, mais uma vez,
o Dr. Artur de Oliveira avançou como padrinho de
baptizado - daí o meu primeiro nome que, ainda por
cima, coincidia com o nome do meu avô materno. Tinha
mesmo que ser Artur. Para que o meu avô paterno não
ficasse zangado, deram-me um segundo nome, Fernando, que
me designou até aos 18 anos. Depois, revoltado como
qualquer bom adolescente, rejeitei o Fernando - um nome
gerúndio que me irrita - e passei a denominar-me
Artur. É a única vantagem que conheço
para o facto de termos dois nomes próprios. Posso,
assim, dizer que me chamei Fernando até aos 18 anos
e que passei a chamar-me Artur desde então.
Houve, no entanto, um período de ambiguidade, talvez
entre os 16 e os 17 anos, em que assinava Artur Fernando
- enfim, talvez mais um período de transição
entre o Fernando e o Artur.
Esclareço que a minha irritação em
relação aos nomes gerúndios tem a ver
com o facto de não gostar muito de coisas que demoram
muito tempo a ser feitas. Gosto do produto acabado. Armando,
Orlando, Fernando, parecem-me nomes que não estão
prontos, como acções que não estão
acabadas: falando, comendo, bebendo…
Voltando ao Dr. Artur de Oliveira, meu padrinho e mentor:
a esposa, embora também fosse licenciada em Medicina,
não exercia. A minha madrinha pertencia a uma classe
superior e devia dar-lhe algum prazer "amadrinhar"
filhos de conferentes marítimos. E recebia-me lá
em casa, periodicamente, dando-me chá e bolinhos.
Eu ia sempre muito bem vestidinho e penteadinho, com o cabelo
a transbordar de Brylcream, lacinho ao peito e gaita de
beiços no bolso. Sentava-me muito sossegadinho -
já nessa altura me sabia comportar, adaptando-me
bem a qualquer tipo de ambiente… - aguardava pacientemente
pelos bolinhos e, depois, tocava uma modinha na harmónica.
Esta história da gaita de beiços continua
a ser um mistério para mim. Sei que é verdadeira,
que toda a gente me diz que eu até tocava bem, que
tinha sido o meu pai que me ensinara, porque ele também
tocava harmónica e até gravou um disco de
78 rotações nos estúdios do Rádio
Graça. E no entanto, não me lembro de tocar
seja o que for e, se pego numa harmónica tiro dela
os mesmos sons pífios que qualquer outra pessoa que
nunca aprendeu a tocar, o que me faz pensar que o Artur
decidiu assassinar o Fernando tocador de gaita e esconder
o corpo muito bem escondido.
Mas o que me espantava quando ia a casa da minha madrinha,
era mesmo a casa - uma vivenda de três pisos, ali
para os lados de Algés, com uma garagem com um Mercedes
lá dentro, um piano de cauda num grande salão
e uma biblioteca!… Não conhecia outro sítio
onde houvesse tantos livros juntos… E tudo isto porque
o meu padrinho era médico e, pensava eu, por ser
médico era rico e por isso tinha uma vivenda, um
piano de cauda, um Mercedes e uma biblioteca. Quase que
aposto que foi por isso que decidi, desde pequenino, que
haveria de ser médico. Se, naquele tempo, soubesse
que, após 25 anos de Medicina, ainda não tenho
vivenda, nem piano, nem Mercedes, embora a minha biblioteca
não seja má, talvez tivesse desistido da ideia.
O meu padrinho - eminente cardiologista que até tratou
do Salazar, como não deixava de realçar a
minha avó - acabou por falecer de morte súbita,
segundos depois de ter estacionado o carro perto do Casino
Estoril. O enfarto foi fulminante e ele caiu sobre o volante
do carro e a buzina ficou a soar durante minutos até
que alguém o descobriu. Foi esse o meu primeiro grande
susto em relação ao tabaco. É que o
meu padrinho, apesar de médico, apesar de cardiologista,
também fumava e os meus pais não se cansaram
de estabelecer a relação causa e efeito. Não
há dúvida que esse acontecimento abanou um
pouco a minha convicção de fumador em início
de carreira, mas foi sol de pouca dura… Até
porque parecia haver ali alguma contradição
- então, afinal, o tabaco fazia mal à saúde?…
Aos 15 anos estava, portanto, pela segunda vez no 5º
ano do Liceu, agora só na secção de
Ciências e fui parar à turma C, como castigo
por ter chumbado. Era uma tradição do Liceu
Camões. A criancinha vinha da instrução
primária, fazia a admissão ao liceu e, se
tinha uma nota boa, era colocado na turma A do 1º ano
da sede do Liceu, ali na Praça José Fontana.
Depois, à medida que a nota da admissão ia
descendo, a letra do alfabeto que designava a turma ia também
aumentando, passava a B, depois a C e, se já não
havia mais lugar para aquele aluno, que tivera uma nota,
digamos, abaixo de 15, ia para a secção do
Areeiro ou de Alvalade e entrava em novo ordenamento de
turmas, de A a C. Como a minha nota da admissão ficou
a roçar o 15, fiquei na turma A da secção
do Areeiro e, no primeiro período, portei-me muito
bem. Tão bem que até fui parar ao quadro de
honra!… Tratava-se de outra tradição
do Camões, assim no género de empregado do
mês da McDonalds. O meu nome até saiu no Diário
Popular que, na altura, publicava os alunos que conseguiam
a proeza de entrar no quadro de honra. Ainda guardo o recorte
do jornal onde, pela primeira vez, apareceu impresso o meu
nome, embora errado, porque me chamaram Lourenço,
em vez de Loureiro…
As mariquices de bom aluno acabaram logo ali. No segundo
período as notas já não foram tão
boas e nunca mais entrei no quadro de honra, o que me valeu
permanentes críticas do meu pai que, em surdina,
falava mal da Situação mas que, no fundo,
apoiava todo o folclore do Estado Novo. Ao fim e ao cabo,
o que podia ele fazer?…
Está, pois, explicado, porque fiquei na turma C do
5º ano de Ciências. E foi aí que fui conhecer
outros repetentes, entre os quais, dois jovens que tinham
chegado há pouco tempo da Guiné e que vinham
até ao Continente ver se conseguiam acabar o liceu.
O Rui e o Mário tinham já 18 anos e interessavam-se
por muitas outras coisas que não os livros e os cadernos.
Acabámos por nos tornar grandes compinchas, até
porque descobrimos que éramos praticamente vizinhos
em S. Domingos de Benfica. Além de cerca de três
anos mais velhos, o Rui e o Mário eram muito mais
altos que eu, que não passava de um puto mais ou
menos enfezado e a sua amizade trouxe-me grandes vantagens,
digamos, físicas e promocionais em termos de entrada
no mundo dos adultos. Acresce o facto do Mário ser
negro, o que me deu logo uma conotação anti-racista
que fica sempre bem. Ambos fumavam muito… E fumavam
à frente dos pais!… E fumavam no autocarro
e fumavam no cinema… Grandes tardes que passámos
os três, no cinema Aviz, ali no Arco do Cego, a ver
filmes com o Gianni Morandi e a fumar SG gigante desde que
o rapaz aparecia, fardado de soldado raso, a cantar "non
soi digno de te", até ao fim do filme, quando
ele se reconciliava com a namorada e partiam os dois em
direcção ao horizonte..
Gianni Morandi?… É verdade, e Richard Anthony,
Michel Polnareff, Jonnhy Haliday, Claude François
(alguém se lembra que foi ele que compôs o
"My Way"?…), Rita Pavone, Gigniola Cinquetti,
Françoise Hardy, Adamo e, sobretudo, Silvie Vartan,
que fui ver ao Monumental, sozinho, vibrando com canções
como "Si je chante, c'ést pour toi, oui pour
toi!…", que era uma espécie de "She
loves you" dos Beatles, mas à francesa e, portanto,
mais aceite aqui neste país pequenino, tão
longe do pop-rock britânico, dos cabelos compridos
e dos fuminhos, que eu desconhecia em absoluto. Os cantores
populares franceses e italianos tinham então uma
força que nunca mais tiveram por cá. Ouvir
os Beatles, os Rolling Stones, os Animals e outros que tais
na rádio portuguesa, só no "Em Órbita",
do Rádio Clube Português e isso, eu só
descobri dois ou três anos depois. Naquela altura
eu estava numa fase "Sallut les copains" e "Bravo",
embora não percebesse patavina de alemão.
Essas revistas traziam sempre posters dos ídolos
da cena musical anglo-americana-francesa, que eu depois
colava nas paredes do meu quarto. Cheguei a ter as paredes
e o tecto do quarto todas forradas com fotos de artistas,
numa altura em que partilhava o meu quarto com o Paulo,
enquanto a avó Rita e a Bela dormiam na sala.
Os três manos, no quarto forrado de posters, com
os Beatles em destaque, claro...
Muitas das tardes eram passadas nesse quarto a ouvir a
Rádio Renascença e a anotar todas as canções
que ouvia. Sempre tive a mania de fazer listas, desde as
marcas dos carros que passavam na minha rua aos anúncios
que a televisão passava durante um determinado período
de tempo. Quando, por descuido, o locutor anunciava uma
canção dos Beatles, quase que ficava em transe.
Era raro ouvir-se uma canção dos Beatles àquela
hora da tarde, numa estação como a Rádio
Renascença - para mim, quase que equivalia a ouvir
algo de clandestino como, anos mais tarde, ouvir canções
do Zeca Afonso no "Página Um" do José
Manuel Nunes e do Adelino Gomes. E eu até tinha alguns
discos dos Beatles, nomeadamente, um EP com quatro temas
de "A Hard Day's Night", que o meu tio me havia
trazido de Inglaterra quando foi, como jornalista desportivo,
acompanhar o Benfica num dos seus jogos europeus…
O que o meu pai gozou com a capa do disco, que tem a fotografia
dos quatro de Liverpool com franjinhas a cair sobre os olhos.
"Olha-me para estes maricas!…" Se ele tivesse
visto as fotografias que o Álbum Branco tinha lá
dentro, até se passava, mas eu nunca lhe mostrei
esse duplo dos Beatles que comprei numa pequena discoteca
da Praça de Londres, depois de muitas semanas de
poupança de bilhetes de eléctrico entre o
Areeiro e o Arco do Cego. Mostrar ao meu pai o duplo branco
- que eu sempre preferi ao Sargent Pepper's que, aliás,
só comprei anos depois - seria uma provocação.
Pelo contrário, a minha mãe e a minha avó
até gostavam dos Beatles e, às vezes, chamava-as
ao meu quarto para ouvirem as faixas mais bonitinhas, tipo
"Good night", cantada pela voz desafinada do Ringo,
ou "Julie", com a voz aflautada do Lennon, ou
ainda, e sobretudo, o "Blackbird", cantada pelo
McCartney. Para o Paulo e a Bela, os meus irmãos
então com 9 e 8 anos, presenteava-os com o "Helter
Skelter" ou "Why don't you do it in the road".
Enfim, estava ainda numa fase de indefinição,
no que respeita a gostos musicais, já que conseguia
apreciar coisas como "tous les garçons et les
filles de mon âge", cantada pela vozinha delicodoce
da Françoise Hardy ao mesmo tempo que vibrava com
as guitarras do "Back in the USSR", abanando a
cabeça como se tivesse os cabelos à Beatle,
quando não tinha senão uma franjinha idiota
e tímida.
Os cabelos compridos!… Outra guerra com o meu pai!…
E, ainda por cima, o Rui tinha o cabelo comprido e a família
parecia não se preocupar com isso. Quando eu digo
comprido, digo com o cabelo a roçar a gola da camisa
e uma madeixa mais pequena que a do engenheiro Guterres,
mas enfim, para o padrão da época, para o
meu pai, por exemplo, que fazia questão de ter sempre
a nuca a descoberto, aquele meu amigo, sempre de cigarro
aceso e com o cabelo comprido era uma ameaça para
o meu desenvolvimento espiritual.
O Rui e o Mário tiveram, de facto, alguma influência
em mim, mas apenas no que respeita ao tabaco e às
miúdas. Foi graças a eles que passei a fumar
de um modo mais profissional, que aprendi a engolir o fumo
como deve ser, a fazer argolas (embora nunca tivesse muito
jeito…), a catapultar a beata já fumada para
grandes distâncias, lançando-a com o impulso
do médio sobre o polegar, como se fosse um bilas.
Foi também com eles que comecei a ir, regularmente,
esperar as miúdas à porta do Liceu Rainha
Dona Leonor, que ficava ali perto da Praça de Londres.
E, no Verão de 1968, na Costa da Caparica, tive a
minha primeira namorada a sério, com beijinhos na
boca e mão na mão e chega, que ela era muito
recatada, eu era muito ingénuo e muito bem educadinho
e tanto o Mário como o Rui já tinham voltado
para a Guiné, a meio do 2º período porque
as notas deles eram mesmo uma desgraça e os pais
devem ter pensado que o melhor era pô-los a trabalhar,
muito provavelmente, nas obras...
Quanto ao meu segundo 5º ano em Ciências, as
coisas não correram mal. Apliquei-me e tive bons
professores. Recordo-me nitidamente do professor de Física
e Química, que era também o vice-reitor do
Liceu. O nome já se evaporou, mas a alcunha está
bem presente: Panças Kid. O senhor tinha um porte
altivo, cabelo bem puxado para trás pela brilhantina
e usava sempre bata, através da qual sobressaía
um ventre bem proeminente. Daí o "Panças";
quanto ao Kid, deve ter vindo do Mundo de Aventuras e das
histórias do Billy the Kid em Kansas City - logo,
Panças Kid, estão a ver?
Como professor, o Panças Kid era um mestre. As aulas
eram muito bem organizadas, fornecia-nos apontamentos essenciais
para a compreensão da matéria e, no fim do
ano, o grosso caderno de Física-Química, todo
escrito a três ou quatro cores, com sublinhados e
destaques ordenados por ele, era uma verdadeira sebenta;
ninguém precisava de consultar o livro de texto que,
aliás, era um horroroso calhamaço de capa
vermelha escura, com meia dúzia de ilustrações
pindéricas. Já viram como são agora
os livros de Física? Então procurem num alfarrabista
um livro de estudo da década de sessenta e respondam
à seguinte pergunta: quem conseguia estudar naquelas
coisas? Há por aí alguém que ainda
se lembre do susto que era estudar História nos livros
do Mattoso, densos, de papel pardo que rapidamente ganhava
cheiro a humidade e que tinha, no máximo, quatro
ilustrações a preto e branco? Uma tortura,
era o que era!
Pois o Panças Kid punha-se num dos cantos da sala
de aula, de modo a dominar toda a turma, colocava as mãos
atrás das costas, o que fazia sobressair ainda mais
o ventre avantajado, e ditava a matéria, que nós
íamos escrevendo no caderno. Quando havia alguma
parte que ele queria que nós sublinhássemos
e a que déssemos maior destaque, dirigia-se ao quadro
e, com uma letra impecável e redondinha, escrevia
tudo.
O Panças Kid gaguejava um pouco no início
de cada frase, mas depois explicava-se muito bem. Lembro-me
dos dias em que havia chamadas. Nesses dias, o professor
sentava-se à secretária, acendia um cigarro,
deitava o fumo para o tecto (que inveja que eu tinha!…),
deixava que no ar pairasse um pouco de expectativa e nós,
sentados nas carteiras, aguardávamos, quase a tremer,
que ele dissesse o nome de quem, naquele dia, iria ser chamado
para responder a algumas perguntas da matéria já
dada. E então, de vez em quanto, calhava-me a mim
que, para o Panças Kid, não era Artur nem
Fernando.
- C-c-couto e Santos!… Vamos ao quadro!… - dizia
ele, depois de derrapar um pouco no "cê"
inicial.
E pronto, tinha a manhã estragada!…
Outro perito em chamadas era o professor de Geografia que,
nem eu sei porquê, conseguiu que eu decorasse as capitais
de todos - mas mesmo de todos - os países do mundo.
O professor de Geografia era um pouco bizarro. Tinha dias
que passava as aulas a contar histórias - sempre
as mesmas - de quando tinha estado na Índia e o calor
era tanto que ia tomar um duche e regressava ao quarto sem
se secar e, quando chegava à cama já estava
seco; ou da vez em que estava no alto mar, a bordo de um
barquito a remos e rebentou uma enorme tempestade e os remos
se partiram e ele conseguiu chegar a terra atirando com
a âncora, que se prendia ao fundo e depois puxava
pela corrente e o barco avançava uns metros, e depois
atirava novamente com a âncora e assim sucessivamente
durante os 50 minutos que durava a aula.
No dia das chamadas - que era um dos dias em que não
lhe apetecia dar aula nem contar histórias - o professor
de Geografia dizia um número a acaso:
- 27!
O 27 levantava-se e ia ao quadro.
- Em que dia estamos hoje?… escreve aí no quadro…
Agora escreve por baixo o ano em que estamos…
E depois mandava-lhe escrever o número do autocarro
que apanhava para vir para o Liceu e mais uma série
de números ao acaso; em seguida, ordenava-lhe que
somasse tudo e dividisse por outro número qualquer.
Suponhamos que o resultado de tão estranha conta
era, por exemplo, 32. Nesse caso, o professor chamava ao
quadro o aluno nº 32. Mas, outras vezes, chamava outro
aluno qualquer, podendo ainda dizer, no final da conta,
que quem ia responder às perguntas da chamada era
o aluno que estava a escrever no quadro. Tenho a certeza
que foi este professor de Geografia que me deu as primeiras
luzes da Teoria do Caos.
As provas escritas do exame do 5º ano de Ciências
correram-me assim-assim, as orais correram melhor e consegui,
finalmente, deixar o Camões, sem grandes saudades,
diga-se de passagem.
Mesmo fazendo um grande esforço de memória,
apenas me consigo recordar de dois ou três episódios
engraçados passados no Camões do Areeiro e
do cheiro desagradável do almoço que eu levava
numa marmita, nos dias em que tinha aulas de manhã
e de tarde. E claro que me lembro das grandes futeboladas
no jardim por trás do Cinema Roma. Nos raros dias
em que tínhamos um furo - sobretudo numa altura em
que estivemos sem professor de matemática (supremo
bem!) - saíamos do liceu em bando, passávamos
por uma drogaria e comprávamos uma bola de plástico,
daquelas mesmo muito ranhosas, mas a quotização
naõ dava para mais. As pastas faziam de balizas e
era chuto na bola ou na canela até ferver, ou até
a bola se rasgar com tanto denodo, o que era frequente.
No meu primeiro quinto ano, tive um professor de português
que era surdo mas que, apesar disso, não deixava
de nos obrigar a ler, em voz alta, alguns cantos dos Lusíadas,
seguindo-se a tenebrosa divisão de orações
que faria o próprio Camões renegar a sua obra.
Ora, eu tinha fama de saber ler muito bem, com a voz bem
colocada e uma entoação correcta. No quarto
ano, a nossa professora de português tinha instituído
um concurso de leitura, em que os alunos que se destacassem
recebiam, como prémio, livros de uma colecção
juvenil muito em voga na época. Ganhei alguns desses
concursos e ainda guardo um dos livros que então
ganhei, sobre a vida do infante D. Henrique. Portanto, com
toda essa fama, era natural que, quando o tal professor
surdo perguntava quem queria ler um determinado trecho de
Os Lusíadas, todos os colegas apontavam para o Couto
e Santos. E eu levantava-me, pegava no calhamaço
do Camões e começava a ler as estrofes do
vate, trocando algumas palavras por outras, chocarreiras,
que faziam rir a turma toda, enquanto o professor, seguindo
a leitura pelo seu livro, não fazia a mínima
ideia do que eu estava a dizer.
Recordo, ainda, o meu estranho professor de história,
chamado Filinto Elísio e que só assinava com
o nome todo quando o teste era classificado com Bom. Se
a classificação era apenas Suficiente, assinava
só Filinto e se o teste era negativo, apenas o rubricava.
Recordo, finalmente, a professora de inglês do quinto
ano, uma calmeirona que usava a saia um pouco acima do joelho,
o que me provocava ideias lúbricas. Foi nas suas
aulas que fiz uma adaptação de uma peça
de teatro que constava do livro de leitura da disciplina.
O título original era "The Bishop's Candlesticks";
a minha versão chamava-se "Os Candelabros do
Bichopo" e foi representada por vários elementos
da turma na aula número100 - altura em que aproveitávamos,
infantilmente, para fazer uma aula diferente.
Nessa altura, as férias eram na Costa da Caparica.
Os meus pais alugavam todos os anos uma casa durante o mês
de Agosto e eu fui arranjando um grupo de amigos e amigas
de verão, que raramente via durante o resto do ano..
Outra prova insofismável da influência do tabaco
na minha vida reside no facto de ter ainda guardadas fotografias
desses grupos, por vezes com mais de 15 elementos, e de
só me lembrar do nome do Tomás, que era um
tipo já com 19 ou 20 anos, irmão de um dos
putos do grupo, e que fumava!…
Ainda hoje estive a rever essas fotografias, tiradas nos
verões de 1968 e 1969. Lá está a tal
minha primeira namorada a sério e muitas outras miúdas
e montes de tipos com a cara cheia de borbulhas e, numa
delas, a um canto, com olhar condescendente, o tal Tomás,
com o cigarro a fumegar. Dos nomes dos outros não
me recordo, nem sequer da tal namorada, embora me lembre
que o pai dela era dono de um stand da Opel. E depois venham
com conversas sobre a memória selectiva. A memória
é, como tudo o resto na vida, fruto de uma série
de coincidências e de acasos. Lembro-me da profissão
do pai e não me lembro do nome da namorada por que
sim.
Eu sou o segundo, em pé, a contar da direita
e estou a puxar as calças de pijama (era costume
irmos ao banho vestidos, na despedida das férias).
O Tomás, obviamente, é o primeiro, à
esquerda, de joelhos, a fumar. A minha primeira namorada
não estava aqui...
Claro que eu também fumava na praia, mas tinha que
ir, pelo menos, até ao Bexiga, que era um banheiro
que ficava a uns bons metros do Tarquínio, o banheiro
onde os meus pais alugavam uma barraca, ao mês. E,
mesmo assim, longe, não fumava descansado porque,
às vezes, o meu pai gostava de passear a barriga
à beira-mar e nunca se sabia quando é que
ele poderia aparecer e apanhar-me de cigarro na mão
e começar com os sermões dele mesmo à
frente das miúdas.
Terminado o verão, preparei-me para o 6º ano
no Liceu D. João de Castro e, durante o mês
de Setembro, comecei religiosamente a deixar crescer o buço.
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