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O Coiso
Memórias de um fumador
50 anos de história


10. O Algueirão (1975/76)

Camponeses recalcados? Não sei dizer mas, quando começámos a pensar numa casa para vivermos em conjunto, nunca nos passou pela cabeça um apartamento – sempre imaginámos uma moradia, com muito terreno à volta, terreno para cultivar, pois claro. E não era difícil encontrar o que queríamos naqueles tempos. Muita gente com segunda habitação, estava sempre com receio que alguém lhes ocupasse a casinha. Não se esqueçam que estávamos em pleno PREC e as comissões de moradores, se tivessem conhecimento de alguma casa que não estivesse habitada, de pronto a ocupavam para depois a darem a alguma família de operários, camponeses, soldados ou marinheiros, não obrigatoriamente por esta ordem de prioridades.
Foi por isso que respondemos a um anúncio de uma vivenda bifamiliar que estava para arrendar, em Algueirão. Em Dezembro de 1975, já lá estávamos todos a morar, eu, a Mila e Pedro, no rés-do-chão, o Zé e a Mizé, grávida, no primeiro andar.
Mas antes disso, ainda teria que passar por mais um desemprego.
Como o PREC continuasse animado, com os Governos Provisórios a sucederem-se a um ritmo alucinante, previa-se que, a todo o momento, os militares voltassem a fazer das suas. A redacção do Telejornal reflectia bem essas lutas político-partidárias. Havia os jornalistas próximos do PPD, havia os de direita (poucos), havia os do PS, os do PC e havia os outros, mais à esquerda, com ou sem filiação partidária, nos quais eu me incluía. Neste grupo, poderia também incluir, além do Joaquim Furtado e do Adelino Gomes, o Joaquim Vieira que, mais tarde, haveria de ser director do Expresso, o Avelino Rodrigues, o Mário Cardoso e o Cesário Borga, autores de “O Movimento dos Capitães e o 25 de Abril”, um livro que descreve com bastante rigor as voltas e reviravoltas que levaram ao golpe contra o Estado Novo. De todos estes jornalistas do Telejornal, só de mim posso dizer, com absoluta certeza, que não era militante de nenhum partido, associação ou movimento, não conhecia nenhum político pessoalmente e continuava a desconfiar dos militares em geral. Mas enfim, gostava de ser conotado com a extrema-esquerda, razão pela qual não abandonava o tal UDP-look a que já me referi e que incluía sempre uma camisa aos quadrados, a barba comprida e descuidada, o cabelo a tapar as orelhas e a cair em farripas sobre os ombros, os óculos mais ou menos rectangulares, de aros pretos e, claro, o cigarrinho aceso, no canto da boca. Aliás, o nosso aspecto era, mais ou menos, semelhante. O Zé não usava barba porque, por mais que se esforçasse, ela não crescia e era tão mal semeada que metia dó; mas o cabelo, pelo contrário, desenvolvia-se em largos caracóis, que faziam lembrar as gravuras do Beethoven. A Mila, que tinha passado toda a gravidez do Pedro com um vestido de xadrez verde e branco e umas socas azuis escuras, continuava a não largar um casaco largueirão de lã, azul escuro e cor de rosa; além dos olhos, sempre luminosos, e daquele sorriso de menina, a sua imagem de marca eram as trancinhas. E até a Mizé, chegada há tão pouco tempo ao grupo, acabou por adoptar as camisas aos quadrados, para não destoar.
A tensão política que se vivia na sociedade portuguesa, tinha eco na redacção do Telejornal. Sempre que se falava em possível golpe de Estado, as posições extremavam-se. Recordo o 28 de Setembro, dia da manifestação da chamada Maioria Silenciosa, conotada com a extrema-direita. Um dos telejornalistas, que vinha ainda do tempo da Velha Senhora, colocou um revólver em cima da secretária, mostrando, desse modo, que estava disposto a resistir a qualquer possível saneamento. Nessa altura, sinceramente, não senti medo – tudo aquilo parecia uma brincadeira...
Para comprovar essa minha tendência, digamos romântica, para a extrema-esquerda, devo contar o incidente da embaixada de Espanha. No Verão de 1975, o ditador Franco, aqui mesmo ao lado, em Espanha, assinou a condenação à morte de quatro ou cinco militantes de um grupo de extrema-esquerda denominado FRAP (Frente Revolucionária Anti-fascista e Patriótica). Os fulanos foram mesmo garrotados ou fuzilados, já não me lembro bem, mas o método não interessa para o caso. A malta de esquerda, aqui em Portugal, ficou desvairada. Uma manhã, no pátio da RTP, o Adelino Gomes perguntou-me se, como responsável pelo noticiário internacional, não estaria interessado em entrevistar um membro da FRAP, que se encontrava clandestinamente em Portugal. Pois claro que o queria entrevistar, vamos a isso! Combinaram-se as coisas e o tal militante espanhol lá apareceu. Levei-o para um gabinete do Telejornal, pedi ao homem da câmara que o filmasse em contra-luz para que a sua identidade não fosse revelada e fiz-lhe uma entrevista em que as minhas perguntas foram apenas um pretexto para que o homem destilasse todo o seu veneno contra o regime ditatorial do Franco, lhe chamasse assassino, dissesse cobras e lagartos, desse largas a toda a sua raiva pela morte dos seus companheiros – enfim, um verdadeiro comício. Peguei no filme – naquele tempo ainda não se usava o vídeo – montei a entrevista praticamente sem cortes, porque não tinha havido tempos mortos na nossa conversa e a coisa foi para o ar no Telejornal da hora do almoço, sem que ninguém tivesse visionado aquilo, a não ser eu, claro. Foi um escândalo! Como é que a televisão portuguesa passava uma entrevista daquelas em que o líder do país aqui do lado era vituperado daquela maneira?… Por coincidência – ou talvez não – nessa mesma madrugada, uma horda de militantes da extrema-esquerda, foram ali à Praça de Espanha e destruíram a embaixada espanhola, perante a passividade das autoridades policiais. Não era difícil estabelecer a relação entre a minha entrevista e a destruição da embaixada, considerando aquela como um meio de incitamento à violência revolucionária. E eu completamente inocente, apenas tinha dado voz a um tipo que era do mesmo partido dos fulanos que haviam sido fuzilados, ou garrotados, já não me lembro, sem saber que, algures em Lisboa, já se preparava o assalto à embaixada de Espanha. Enfim, coisas do PREC.
A bagunça política era cada vez maior: o sexto Governo Provisório esteve sitiado na Assembleia da República pelos trabalhadores da construção civil que, em greve, foram para lá com betoneiras e escavadoras e não deixavam passar os ministros; o chefe do Governo, o almirante Pinheiro de Azevedo vem a uma varanda e grita para a multidão de trabalhadores: “Bardamerda para o socialismo!”; o Otelo, no COPCON, assinava mandatos de captura em branco porque não podia estar a prender reaccionários 24 horas por dia, também precisava de dormir, coitado; o chamado grupo dos nove, chefiado pelo Melo Antunes conspirava na sombra; o Governo americano andava preocupado…
A redacção do Telejornal era apenas um reflexo disto tudo e, certo dia, os jornalistas decidiram fazer greve: não havia mais Telejornal para ninguém, já não me lembro porquê e isso também pouco importa. O presidente da RTP era, então, o general Eanes que, ao fim do dia, foi às instalações do Telejornal reunir-se com os jornalistas. A reunião prolongou-se pela noite dentro. Havia os indefectíveis, que não cediam aos argumentos do general e que queriam consumar a greve, havia os que eram contra a greve mas que não ousavam dizê-lo, como medo das represálias dos colegas e havia os que, como eu, estavam cheios de sono – caramba, tinha aulas no dia seguinte, eram quase cinco da matina, a Mila devia estar aflitíssima porque eu não costumava chegar tão tarde e não tinha tido oportunidade de a avisar e, sinceramente, já me estava borrifando para que houvesse greve ou não, queria era ir dormir! A reunião terminou quando o sol nasceu, com os mais acérrimos defensores da greve a abraçarem efusivamente o Eanes, como se tivessem sido sempre grandes amigos e eu não percebi nada daquilo, mas parece que aquilo é que era política. Foi aí que comecei a perceber que não estava muito interessado naquelas brincadeiras. Se me perguntarem qual foi a estratégia usada pelo Eanes para vencer aquela reunião, diria que foi simples: manter-se impassível ao longo daquelas horas todas, limitando o seu discurso a alguns monossílabos que, no seu tom de voz seco, adquiriam um significado especial, sublinhado pelos óculos escuros e as patilhas à campino. Nunca gostei do Eanes e, nas presidenciais, votei no Otelo, por uma questão de coerência ao folclore da época. Mais tarde, como gostava ainda menos do Soares Carneiro, acabei por votar no Eanes, um pouco contrafeito mas, enfim, o meu coração continua a bater sempre à esquerda, embora já com algumas arritmias…
Todas estas confusões acabaram por desembocar no 25 de Novembro. Estava eu, muito descansado, a escrever notícias para o Telejornal da noite, quando apareceu o major Clemente e os seus camaradas pára-quedistas, que ocuparam a RTP. De repente, já havia colegas jornalistas a ensinar aos revoltosos quais eram os pontos estratégicos das instalações da televisão e até vi um colega com uma granada na mão, pronto para o que desse e viesse. E, dessa vez, tive medo. Um medo genuíno. Aliás, penso que foi uma das duas únicas vezes que me lembro de ter tido medo a sério; a segunda foi, muitos anos depois, numa viagem de traineira, entre a ilha da Boavista e a do Sal, em Cabo Verde. Aquela guerra não era, de facto, a minha. Então, eu andava a pedir adiamento da vida militar desde sempre e agora, de repente, quando já estava livre de, pelo menos, ir parar à guerra de África, vejo-me metido entre militares e civis, de armas na mão, para ver quem ia ficar com o poder? Nunca na vida!… Arrumei as minhas coisinhas e sai porta fora, acompanhado pelo Joaquim Vieira, a quem nunca perguntei se tinha tomado a mesmo decisão por solidariedade, por opção política ou por medo, como eu. À saída ainda fui interpelado por um grupo de militares revoltosos que quiseram saber o que é que nós íamos fazer. “Acabei o turno e vou para casa”, respondi naturalmente, e lá nos deixaram passar.
Quando cheguei a casa, anunciei à Mila: “Estou desempregado!” e contei-lhe o sucedido. Alguns de vocês lembram-se que, quando o major Clemente se dirigia ao espectadores, em directo, explicando porque tomara a RTP de assalto, a emissão foi cortada e passou a ser transmitida dos estúdios do Porto. Depois, não houve emissão durante dois ou três dias. Passado algum tempo, recebo um telefonema do Joaquim Letria (outra vez ele…) Era para eu voltar, que as coisas já estavam em ordem e ia haver novo reordenamento do telejornal.
Resultado: foi o meu terceiro golpe de Estado e a minha segundas promoção – fui nomeado sub-chefe de redacção, ou melhor, responsável pela última edição diária do Telejornal; o Avelino Rodrigues ficou com a primeira e o Cesário Borga com a edição principal. Toma! Às vezes, desertar tem as suas vantagens…
Sob o ponto de vista financeiro, a coisa melhorava. Eu, que já estava com um ordenado de onze contos e quinhentos, subi para os treze contos.
O aluguer da casa do Algueirão veio, portanto, numa altura economicamente favorável. De tal modo, que nos demos ao luxo de gastar cerca de trinta contos na mudança. Guardei uma lista dos gastos dessa mudança e vale a penar recordar alguns itens: Black and Decker (sempre detestei fazer furos nas paredes, mas a sua necessidade persegue-me…) – 625 escudos; cortinados – 896; colcha para a cama do Pedro – 362; colchão para a cama do casal – 1 444; vários metros de alcatifa, que deu para forrar o chão todo do rés-do-chão e ainda sobrou – 7 878; uma mesa de pinho, sólida, que ainda hoje existe e continua a ser uma excelente mesa de trabalho – 2 900; um radiador para aguentar o frio da serra de Sintra – 930; uma campainha para a porta da rua – 60; um ancinho – 46; uma televisão – 5 300 escudos.
No princípio de Dezembro de 1975, estávamos instalados na Avenida Bento de Jesus Caraça, no Algueirão, a cinco minutos da estação dos comboios. No rés-do-chão, a vivenda tinha uma divisão grande, com um arco a meio, que tapámos, para fazer o quarto do Pedro e o nosso quarto, uma sala, casa de banho e cozinha; no primeiro andar, com três divisões e outra casa de banho, instalaram-se o Zé a Mizé, com a barriga cada vez maior. E ainda havia um sótão, que transformámos em estúdio de pintura e onde, mais tarde, instalámos um comboio eléctrico com casinhas de Lego à volta, para os adultos brincarem. E havia ainda a cave, com mais três divisões e uma casa de banho minúscula, que estava ocupada pelo casal Pereira Velez, que eram assim uma espécie de caseiros. Tínhamos um jardim enorme, com relva e muitas roseiras, dálias, lírios e jacintos, um bom pedaço de terreno para cultivar, por trás da vivenda, um poço com bomba e tudo, dois enormes pinheiros, várias árvores de fruto, uma capoeira, um tanque que parecia um bebedouro para cavalos e – ironicamente – uma grande garagem com um terraço por cima, nós que nem carta de condução tínhamos!…


A nossa 1ª visita ao Algueirão; o Pereira Velez explica à Mila, ao Zé e à Mizé, como cuidar do jardim; o Pedro parece maravilhado com a extensão da coisa...

Pagávamos seis contos por mês por esta mansão ao sr. Almirante Belo, representante do filho, engenheiro, que pelos vistos, tinha fugido para o Brasil quando aconteceu o 25 de Abril. Cada casal pagava metade da renda e as contas da água, luz, gás e telefone também eram divididas a meias; assim como a cozinha, onde jantávamos quase sempre juntos. Chamávamos-lhe a Vivenda Buques e Smites, mas nunca ficou bem definido quem eram os Buques e quem eram os Smites.
A pouco e pouco, começámos a dar um toque pessoal à nossa casa. Numa das paredes do corredor do rés-do-chão, a Mila pintou uma graciosa girafa cor de rosa e eu acrescentei-lhe um balão que dizia “O chicharro vencerá!”, outra das nossas palavras de ordem preferidas. No tal bebedouro para cavalos, pintou-se um caldeirão sobre uma fogueira a arder e, na porta da garagem, a Mila pintou as traseiras de um autocarro. Sempre que os nossos pais nos iam visitar, achavam muita graça àquilo tudo mas, coitados, lá bem no seu íntimo, devem ter achado muito estranha aquela forma de vida. Tenho a certeza que, se as coisas não tivessem corrido como correram, não deixariam de nos recriminar: “estava-se mesmo a ver o que ia acontecer! Todos a viver na mesma casa! E a pintarem as paredes com bonecos idiotas! Só podia dar mau resultado!…” Por outro lado, acho que eles se acabaram por adaptar. Falo, sobretudo, dos meus pais e dos pais da Mila. Penso que, a pouco e pouco, todos eles foram percebendo que nós éramos felizes assim e, como se costuma dizer, se os filhos eram felizes, eles também eram felizes.
O primeiro grande acontecimento da Vivenda Buques e Smites foi o Natal de 1975 que – como éramos contra as instituições – foi sorteado e calhou no dia 17 de Dezembro. Era a primeira vez que passávamos um Natal em comunidade e sem os nossos pais.
Tínhamos mudado de família, de certo modo.
A nossa troca de presentes foi feita com discursos – uma tradição que mantivemos durante algum tempo. Nesse ano, eu e a Mila, um pouco tesos com o dinheiro gasto na mudança para o Algueirão, gastámos apenas quatro contos e duzentos e conseguimos dar prendas a toda a gente. O Pedro, por exemplo, recebeu um grande camião de caixa aberta, de plástico, claro, para poder carregar a terra do quintal. No entanto, a prenda mais marcante foi um carro de bombeiros, a pilhas, que o Zé a Mizé lhe deram e que, quando ligado, fazia um basqueiro infernal e tinha muitas luzes intermitentes. A reacção do puto foi de quase pânico, olhando para o monstro a dar voltas sobre si próprio, apitando insistentemente. Foi para o lixo há três ou quatro anos…
Entretanto, o Lemus fora para Estocolmo, como já disse, trabalhar como adido da embaixada portuguesa na Suécia. De lá, enviava-nos, de vez em quando, cartas cujo estilo literário é inigualável. Vale a pena citar um excerto de uma delas, escrita a 17 de Setembro de 1975:

“Recebi a vossa cartinha e, pressuroso, eis-me a responder, cheio de alegria.
Diz a Velha que eu prego partidas ao tovarich? Pois, o que me custa é ver aprendizes de burguês a levarem-se a sério. Isto aqui é muito perto, Leninegrado é na “outra banda”, e eles cá são topados. São uns burgueses que não querem aprender sueco – para não serem tomados por emigrantes! Sociedade sem classes? Pois.
Esta terra é cinco vezes e meia maior que Portugal e tem menos habitantes. Por isso é que é o país com mais telefones e automóveis do mundo, pois de outra forma não conseguiam falar uns com os outros. É mesmo uma vastidão. E é também um país muito alto. Mas isso vem nos compêndios. Tivessem estudado.
Tenho sido diariamente castigado com a República (entretanto ocupada pelos trabalhadores), que me é enviada pelo correio. Estou inocente, não pedi nada, juro. Mas aquilo é mau que se farta. Chiça. É pior que o Telejornal (desculpa Artur).
Acerca dos sobreviventes do Coiso, Pé de Cabra, Nabo e Suplemento do República, em suma, o último movimento humorístico válido existente em Portugal. O Barradas está interessado em vir. Parece que lhe arranjo uns ganchos para começar, e pode ficar na Pensão Lemus até ser crescido. Acerca da Velha é uma porra, que faz a Madame lacrimejar e o Rui ficar fodido da vida. Gosto do gajo que me pelo, e sinto-me, por vezes, desertar, deixando-o aí da maneira que vocês me dizem. Perdi a vergonha, incorrendo no risco de ele me mandar à merda, e quis emprestar-lhe massa. Recusou firmemente, dizendo que nunca me poderia pagar. Ora, se eu lho enviasse, o gajo devolvia-mo, era limpinho. Mas, sucede que não consigo gastar tudo o que ganho, pois vivo com uma simplicidade que, aí, não estava ao meu alcance. Além do mais, aqui não há putas nem copos. Sugiro, por conseguinte: já que vocês moram aí perto da Velha, podem (caso queiram) ir a uma mercearia ou super-mercado, adquirir judiciosos víveres para o Mário que lhe dessem, por exemplo, para um mês, ou quase. E renovar periodicamente a fornada. Digam-me rapidamente se consideram exequível a proposta, e quanto seria necessário, que eu enviarei a massa na volta do correio. É que não vejo mesmo outra solução. Olhem, e que tal pagarem as contas do gajo? Digam quanto é. Ou, já que aí estão e sabem melhor do que o gajo precisa, decidam da melhor maneira de evitar que aquele cabrão morra de fome. Lá que o gajo morra dos cancros das tias e das mães, isso é lá com ele, mas de fome, é uma porra. E parece que não é de arredar essa hipótese, pois já o Barradas me escreveu a esse respeito. Pois é, façam esse favor á minha consciência. Como o único auxílio que eu posso prestar ao Mário é, infelizmente, pecuniário, contem comigo até onde for necessário e eu puder. Mas, contem também com o orgulho dele e, nos pobres, o orgulho aumenta na razão directa das necessidades. Valeu?”

Foi assim que iniciámos uma nova fase das nossas relações com o Mário-Henrique, que vivia em Carcavelos. Sobretudo desde que nos mudámos para o Algueirão, começámos a ir regularmente visitar o Mário e levar-lhe mantimentos. Ele protestava sempre muito, brandia a bengala, que ainda hoje eu guardo (aliás, o único objecto do Mário com que fiquei), dizia muitas asneiras, mas acabava por aceitar porque tinha, de facto, fome. Terminado “O Coiso”, acabada a colaboração nos suplementos do República, o Mário vivia nem sei bem do quê. De vez em quando fazia umas traduções, nomeadamente, de livros de banda desenhada (e que boas e personalizadas traduções, as do Mário!), e pouco mais. A certa altura, sem dinheiro para o gin, chegou a aquecer álcool e a juntar-lhe açúcar e limão, para produzir, assim, uma caipirinha barata.


De vez em quando, íamos buscar o Mário, para almoçar connosco. E era isto: eu armado de aspirador, o Zé de barrete e com duas garrafas na mão, o Mário de funil na cabeça, a Mila com boné de capitão, a Mizé de boina e o Pedro, provavelmente espantado com estes adultos, de toucado de índio...

As tardes que passávamos com a Velha eram sempre um fartar de rir. O Mário tinha sempre uma história nova para contar e, a certa altura, pedimos-lhe que nos deixasse gravar as suas histórias. Acho que foi o Zé que ficou com as cassetes mas, o que tinha graça, era estar ali, no pequeno quarto do Mário, com um molhão de discos ao canto (foi ele que me emprestou um disco do Boris Vian, que eu nem sabia que cantava), vários instrumentos musicais da América Latina pendurados nas paredes, a ouvir as suas histórias malucas. Chamava-nos “meninos” e, de facto, era o que nós os quatro parecíamos, sentado à volta do Vovô Gasosa, a ouvir como é que ele se apaixonou por uma domadora de cavalos russa que estava sempre a perguntar-lhe “Gostas de mim? Gostas de mim? E eu, que já lhe tinha dito uma vez que gostava dela, fartei-me. Por isso, vim-me embora!”.
Apesar de nos divertirmos bastante quando estávamos com o Mário, ficávamos sempre um pouco deprimidos quando lá íamos. Qual seria o futuro dele? Ali estava um tipo genial, com uma capacidade criativa delirante, que escrevia como ninguém que, apesar das mãos anquilosadas, ainda desenhava bem, e que passava os dias fechado num minúsculo quarto de uma velha casa em Carcavelos, sem nada para fazer. É verdade que, como dizia o Lemus, o seu orgulho era desmesurado e o Mário seria incapaz de colaborar com quem não tivesse as suas ideias políticas, fossem elas quais fossem. Obviamente que o Mário era comunista, mas não do PCP, nem dos outros pêcês que se reclamavam da verdadeira doutrina marxista-leninista (frase anarquista nas paredes de Lisboa: “Vota MRPP – tem mais Lenine!”); a certa altura pareceu-me entusiasmado com o Partido Revolucionário do Proletariado, do Carlos Antunes e da Isabel do Carmo, e com o Otelo e os GDUP (Grupos Democráticos de Unidade Popular) – mas isso também eu, na altura em que achava que o poder tinha mesmo que vir das bases. Mas enfim, por uma razão ou por outra, o Mário lá estava, isolado, sem nada para fazer, e com fome!
Entretanto, a nossa reforma agrária ia de vento em popa. Depois de uma de troca de cartas com o almirante Belo, conseguimos que o casal Pereira Velez se fosse embora da cave. Pagávamos a água e a luz aos velhotes e ainda uma pequena mensalidade (uns míseros duzentos escudos por mês), porque não fomos capazes de exigir que eles saíssem quando nós alugámos a vivenda. Imaginávamos que eles eram assim uma espécie de caseiros, a viver de uma magra reforma e seria contra os nossos princípios democráticos desalojá-los. Acabámos por descobrir que, afinal, o Pereira Velez tinha um monte no Alentejo e até estava muito bem na vida; vivia ali, naquela cave apenas há três anos, por conveniência do almirante, com quem tinha relações de interdependência que nunca conhecemos e, desse modo, guardava-lhe a propriedade de uma possível ocupação. A páginas tantas, começámos a ter o nosso jardim invadido pela família do Pereira Velez, que lá ia passar fins de semana, e mais um filho que vivia em Guimarães e que veio a Lisboa tratar de negócios e se instalou na cave durante várias semanas, gastando a água e a luz que nós pagávamos sem dar cavaco, e mais os cães de caça que o Pereira tinha fechados na capoeira e que serviam para procriação. Em resumo: por vezes, nós sentíamo-nos estranhos na nossa própria casa.
Assim que os velhotes se foram, desatámos a cultivar a terra a toda a força. Plantámos uns quantos cedros junto ao muro da frente, de modo a formarem uma sebe e, no terreno de trás, semeámos muita coisa.
Colheita de 1976: 23,360 kg de ervilha, 36,750 kg de batata, 10,550 kg de cereja, 23,600 de fava, 17,600 kg de cebola, 102 alfaces, 1,600 kg de alho, 12,440 kg de abrunhos, 45,030 kg de ameixa amarela, 1,740 kg de ameixa vermelha, 3,270 kg de ginja, 1,400 kg de groselha, 4,150 kg de nêspera, 2,400 kg de alperce, 20,340 kg de feijão verde, 4,600 kg de uva, 14,380 kg de pêras, 4,350 kg de rainha-cláudias, 2,780 kg de pêssego, 16,390 kg de tomate, 12,290 kg de figo. A obsessão das listas, outra vez... Pelas nossas contas, a preços da época, esta primeira colheita devia valer cerca de quatro contos. Uma fortuna!


Eu e a Mila, arrancando a relva do jardim, para plantar flores...

A vida no Telejornal também corria de feição. Ao fim de seis meses como chefe de edição, decidi pedir a demissão, juntamente com o Avelino Rodrigues e o Cesário Borga. A minha carta de demissão, enviada ao director de então, um senhor chamado Veiga Pereira, veio publicada noutros órgãos de informação e dizia assim:

“Que papel faz o sub-chefe de uma redacção que, não colaborando na orientação dessa redacção (porque nunca o chamam para isso), a executa diariamente?
Que só sabe qual o redactor que vai ao estrangeiro cobrir tal ou tal acontecimento, quando a reportagem já está em curso?
Que só toma conhecimento das reportagens do dia quando elas já estão feitas?
Que…”

E seguiam-se mais uma série de outras perguntas semelhantes... O que acontecia é que aqueles três chefes de edição eram, ao fim e ao cabo, uma fachada de esquerda (porque nós os três éramos de esquerda, claro), já que quem tomava as decisões quanto ao conteúdo e a forma do Telejornal eram outros que não nós.
A carta terminava assim:

“O papel desse sub-chefe de redacção é o de fantoche.
Estou farto de o representar.
Por isso, considero-me demitido a partir de hoje”

A carta seguiu no dia 20 de Abril de 1976. Cinco dias depois completar-se-iam exactamente seis meses de exercício do cargo de chefe de edição, o que queria dizer que, embora a administração me pudesse tirar o cargo, já não me poderia tirar a categoria. Desconhecendo esta minudência burocrática, enviei a carta antes do tempo. Mais uma vez, a administração da RTP foi condescendente para comigo e manteve-me a categoria. No final de 1976, já ganhava catorze contos e quinhentos por mês.
E como prémio, até me deram, em Setembro, a minha primeira reportagem no estrangeiro. Fui a Cabo Verde, à Cidade da Praia, fazer a reportagem de um encontro qualquer entre o então ministro dos Negócios Estrangeiros, Medeiros Ferreira e o seu homólogo angolano. Foi uma experiência interessante. Além da equipa da RTP, constituída por mim, um assistente de som e o homem da câmara, também foi uma equipa da RDP, chefiada pelo Henrique Garcia, que haveria, depois, de ir também para a televisão. A minha equipa ficou instalada na Pousada Praia-mar, na Cidade da Praia e mamou sete almoços e oito jantares, quase todos à base de atum, pela módica quantia de um conto e quinhentos, tudo incluído!
Foi a segunda vez que andei de avião. A primeira tinha sido em Agosto desse ano, quando eu e a Mila conseguimos, finalmente, juntar dinheiro para realizar um pequeno sonho: ir a Londres. Foi uma viagem pobrezinha, com os tostões todos contados, mas que nos deu muito gozo.
E, nessa viagem, seguia já uma passageira clandestina: a Marta.
Como a vida nos estava a correr de feição – e já que não tínhamos tido possibilidade de planear o Pedro – em Março decidíramos planear uma menina. Utilizando um esquema complicado de só ter relações numa determinada altura do período fértil da Mila, conseguimos acertar na menina.
Quando a Mila estava grávida do Pedro, embora nós acreditássemos piamente que só podia ser um Pedro, costumávamos dizer que, caso fosse uma menina, lhe chamaríamos Rita. Agora, que a Mila estava grávida de uma menina, hesitávamos entre Rita e Marta.
A súbita morte da minha mãe, que se chamava Maria Rita, fez-nos inclinar definitivamente para Marta.
A minha mãe morreu em Setembro. A Marta nasceu em Novembro. Não se chegaram a conhecer. Ambas perderam com isso.

 



Próximo capítulo: "A minha mãe" (1976)

 

Actualizado em: 2 de Novembro
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