10. O Algueirão (1975/76)
Camponeses recalcados? Não sei dizer mas, quando
começámos a pensar numa casa para vivermos
em conjunto, nunca nos passou pela cabeça um apartamento
– sempre imaginámos uma moradia, com muito
terreno à volta, terreno para cultivar, pois claro.
E não era difícil encontrar o que queríamos
naqueles tempos. Muita gente com segunda habitação,
estava sempre com receio que alguém lhes ocupasse
a casinha. Não se esqueçam que estávamos
em pleno PREC e as comissões de moradores, se tivessem
conhecimento de alguma casa que não estivesse habitada,
de pronto a ocupavam para depois a darem a alguma família
de operários, camponeses, soldados ou marinheiros,
não obrigatoriamente por esta ordem de prioridades.
Foi por isso que respondemos a um anúncio de uma
vivenda bifamiliar que estava para arrendar, em Algueirão.
Em Dezembro de 1975, já lá estávamos
todos a morar, eu, a Mila e Pedro, no rés-do-chão,
o Zé e a Mizé, grávida, no primeiro
andar.
Mas antes disso, ainda teria que passar por mais um desemprego.
Como o PREC continuasse animado, com os Governos Provisórios
a sucederem-se a um ritmo alucinante, previa-se que, a todo
o momento, os militares voltassem a fazer das suas. A redacção
do Telejornal reflectia bem essas lutas político-partidárias.
Havia os jornalistas próximos do PPD, havia os de
direita (poucos), havia os do PS, os do PC e havia os outros,
mais à esquerda, com ou sem filiação
partidária, nos quais eu me incluía. Neste
grupo, poderia também incluir, além do Joaquim
Furtado e do Adelino Gomes, o Joaquim Vieira que, mais tarde,
haveria de ser director do Expresso, o Avelino Rodrigues,
o Mário Cardoso e o Cesário Borga, autores
de “O Movimento dos Capitães e o 25 de Abril”,
um livro que descreve com bastante rigor as voltas e reviravoltas
que levaram ao golpe contra o Estado Novo. De todos estes
jornalistas do Telejornal, só de mim posso dizer,
com absoluta certeza, que não era militante de nenhum
partido, associação ou movimento, não
conhecia nenhum político pessoalmente e continuava
a desconfiar dos militares em geral. Mas enfim, gostava
de ser conotado com a extrema-esquerda, razão pela
qual não abandonava o tal UDP-look a que já
me referi e que incluía sempre uma camisa aos quadrados,
a barba comprida e descuidada, o cabelo a tapar as orelhas
e a cair em farripas sobre os ombros, os óculos mais
ou menos rectangulares, de aros pretos e, claro, o cigarrinho
aceso, no canto da boca. Aliás, o nosso aspecto era,
mais ou menos, semelhante. O Zé não usava
barba porque, por mais que se esforçasse, ela não
crescia e era tão mal semeada que metia dó;
mas o cabelo, pelo contrário, desenvolvia-se em largos
caracóis, que faziam lembrar as gravuras do Beethoven.
A Mila, que tinha passado toda a gravidez do Pedro com um
vestido de xadrez verde e branco e umas socas azuis escuras,
continuava a não largar um casaco largueirão
de lã, azul escuro e cor de rosa; além dos
olhos, sempre luminosos, e daquele sorriso de menina, a
sua imagem de marca eram as trancinhas. E até a Mizé,
chegada há tão pouco tempo ao grupo, acabou
por adoptar as camisas aos quadrados, para não destoar.
A tensão política que se vivia na sociedade
portuguesa, tinha eco na redacção do Telejornal.
Sempre que se falava em possível golpe de Estado,
as posições extremavam-se. Recordo o 28 de
Setembro, dia da manifestação da chamada Maioria
Silenciosa, conotada com a extrema-direita. Um dos telejornalistas,
que vinha ainda do tempo da Velha Senhora, colocou um revólver
em cima da secretária, mostrando, desse modo, que
estava disposto a resistir a qualquer possível saneamento.
Nessa altura, sinceramente, não senti medo –
tudo aquilo parecia uma brincadeira...
Para comprovar essa minha tendência, digamos romântica,
para a extrema-esquerda, devo contar o incidente da embaixada
de Espanha. No Verão de 1975, o ditador Franco, aqui
mesmo ao lado, em Espanha, assinou a condenação
à morte de quatro ou cinco militantes de um grupo
de extrema-esquerda denominado FRAP (Frente Revolucionária
Anti-fascista e Patriótica). Os fulanos foram mesmo
garrotados ou fuzilados, já não me lembro
bem, mas o método não interessa para o caso.
A malta de esquerda, aqui em Portugal, ficou desvairada.
Uma manhã, no pátio da RTP, o Adelino Gomes
perguntou-me se, como responsável pelo noticiário
internacional, não estaria interessado em entrevistar
um membro da FRAP, que se encontrava clandestinamente em
Portugal. Pois claro que o queria entrevistar, vamos a isso!
Combinaram-se as coisas e o tal militante espanhol lá
apareceu. Levei-o para um gabinete do Telejornal, pedi ao
homem da câmara que o filmasse em contra-luz para
que a sua identidade não fosse revelada e fiz-lhe
uma entrevista em que as minhas perguntas foram apenas um
pretexto para que o homem destilasse todo o seu veneno contra
o regime ditatorial do Franco, lhe chamasse assassino, dissesse
cobras e lagartos, desse largas a toda a sua raiva pela
morte dos seus companheiros – enfim, um verdadeiro
comício. Peguei no filme – naquele tempo ainda
não se usava o vídeo – montei a entrevista
praticamente sem cortes, porque não tinha havido
tempos mortos na nossa conversa e a coisa foi para o ar
no Telejornal da hora do almoço, sem que ninguém
tivesse visionado aquilo, a não ser eu, claro. Foi
um escândalo! Como é que a televisão
portuguesa passava uma entrevista daquelas em que o líder
do país aqui do lado era vituperado daquela maneira?…
Por coincidência – ou talvez não –
nessa mesma madrugada, uma horda de militantes da extrema-esquerda,
foram ali à Praça de Espanha e destruíram
a embaixada espanhola, perante a passividade das autoridades
policiais. Não era difícil estabelecer a relação
entre a minha entrevista e a destruição da
embaixada, considerando aquela como um meio de incitamento
à violência revolucionária. E eu completamente
inocente, apenas tinha dado voz a um tipo que era do mesmo
partido dos fulanos que haviam sido fuzilados, ou garrotados,
já não me lembro, sem saber que, algures em
Lisboa, já se preparava o assalto à embaixada
de Espanha. Enfim, coisas do PREC.
A bagunça política era cada vez maior: o sexto
Governo Provisório esteve sitiado na Assembleia da
República pelos trabalhadores da construção
civil que, em greve, foram para lá com betoneiras
e escavadoras e não deixavam passar os ministros;
o chefe do Governo, o almirante Pinheiro de Azevedo vem
a uma varanda e grita para a multidão de trabalhadores:
“Bardamerda para o socialismo!”; o Otelo, no
COPCON, assinava mandatos de captura em branco porque não
podia estar a prender reaccionários 24 horas por
dia, também precisava de dormir, coitado; o chamado
grupo dos nove, chefiado pelo Melo Antunes conspirava na
sombra; o Governo americano andava preocupado…
A redacção do Telejornal era apenas um reflexo
disto tudo e, certo dia, os jornalistas decidiram fazer
greve: não havia mais Telejornal para ninguém,
já não me lembro porquê e isso também
pouco importa. O presidente da RTP era, então, o
general Eanes que, ao fim do dia, foi às instalações
do Telejornal reunir-se com os jornalistas. A reunião
prolongou-se pela noite dentro. Havia os indefectíveis,
que não cediam aos argumentos do general e que queriam
consumar a greve, havia os que eram contra a greve mas que
não ousavam dizê-lo, como medo das represálias
dos colegas e havia os que, como eu, estavam cheios de sono
– caramba, tinha aulas no dia seguinte, eram quase
cinco da matina, a Mila devia estar aflitíssima porque
eu não costumava chegar tão tarde e não
tinha tido oportunidade de a avisar e, sinceramente, já
me estava borrifando para que houvesse greve ou não,
queria era ir dormir! A reunião terminou quando o
sol nasceu, com os mais acérrimos defensores da greve
a abraçarem efusivamente o Eanes, como se tivessem
sido sempre grandes amigos e eu não percebi nada
daquilo, mas parece que aquilo é que era política.
Foi aí que comecei a perceber que não estava
muito interessado naquelas brincadeiras. Se me perguntarem
qual foi a estratégia usada pelo Eanes para vencer
aquela reunião, diria que foi simples: manter-se
impassível ao longo daquelas horas todas, limitando
o seu discurso a alguns monossílabos que, no seu
tom de voz seco, adquiriam um significado especial, sublinhado
pelos óculos escuros e as patilhas à campino.
Nunca gostei do Eanes e, nas presidenciais, votei no Otelo,
por uma questão de coerência ao folclore da
época. Mais tarde, como gostava ainda menos do Soares
Carneiro, acabei por votar no Eanes, um pouco contrafeito
mas, enfim, o meu coração continua a bater
sempre à esquerda, embora já com algumas arritmias…
Todas estas confusões acabaram por desembocar no
25 de Novembro. Estava eu, muito descansado, a escrever
notícias para o Telejornal da noite, quando apareceu
o major Clemente e os seus camaradas pára-quedistas,
que ocuparam a RTP. De repente, já havia colegas
jornalistas a ensinar aos revoltosos quais eram os pontos
estratégicos das instalações da televisão
e até vi um colega com uma granada na mão,
pronto para o que desse e viesse. E, dessa vez, tive medo.
Um medo genuíno. Aliás, penso que foi uma
das duas únicas vezes que me lembro de ter tido medo
a sério; a segunda foi, muitos anos depois, numa
viagem de traineira, entre a ilha da Boavista e a do Sal,
em Cabo Verde. Aquela guerra não era, de facto, a
minha. Então, eu andava a pedir adiamento da vida
militar desde sempre e agora, de repente, quando já
estava livre de, pelo menos, ir parar à guerra de
África, vejo-me metido entre militares e civis, de
armas na mão, para ver quem ia ficar com o poder?
Nunca na vida!… Arrumei as minhas coisinhas e sai
porta fora, acompanhado pelo Joaquim Vieira, a quem nunca
perguntei se tinha tomado a mesmo decisão por solidariedade,
por opção política ou por medo, como
eu. À saída ainda fui interpelado por um grupo
de militares revoltosos que quiseram saber o que é
que nós íamos fazer. “Acabei o turno
e vou para casa”, respondi naturalmente, e lá
nos deixaram passar.
Quando cheguei a casa, anunciei à Mila: “Estou
desempregado!” e contei-lhe o sucedido. Alguns de
vocês lembram-se que, quando o major Clemente se dirigia
ao espectadores, em directo, explicando porque tomara a
RTP de assalto, a emissão foi cortada e passou a
ser transmitida dos estúdios do Porto. Depois, não
houve emissão durante dois ou três dias. Passado
algum tempo, recebo um telefonema do Joaquim Letria (outra
vez ele…) Era para eu voltar, que as coisas já
estavam em ordem e ia haver novo reordenamento do telejornal.
Resultado: foi o meu terceiro golpe de Estado e a minha
segundas promoção – fui nomeado sub-chefe
de redacção, ou melhor, responsável
pela última edição diária do
Telejornal; o Avelino Rodrigues ficou com a primeira e o
Cesário Borga com a edição principal.
Toma! Às vezes, desertar tem as suas vantagens…
Sob o ponto de vista financeiro, a coisa melhorava. Eu,
que já estava com um ordenado de onze contos e quinhentos,
subi para os treze contos.
O aluguer da casa do Algueirão veio, portanto, numa
altura economicamente favorável. De tal modo, que
nos demos ao luxo de gastar cerca de trinta contos na mudança.
Guardei uma lista dos gastos dessa mudança e vale
a penar recordar alguns itens: Black and Decker (sempre
detestei fazer furos nas paredes, mas a sua necessidade
persegue-me…) – 625 escudos; cortinados –
896; colcha para a cama do Pedro – 362; colchão
para a cama do casal – 1 444; vários metros
de alcatifa, que deu para forrar o chão todo do rés-do-chão
e ainda sobrou – 7 878; uma mesa de pinho, sólida,
que ainda hoje existe e continua a ser uma excelente mesa
de trabalho – 2 900; um radiador para aguentar o frio
da serra de Sintra – 930; uma campainha para a porta
da rua – 60; um ancinho – 46; uma televisão
– 5 300 escudos.
No princípio de Dezembro de 1975, estávamos
instalados na Avenida Bento de Jesus Caraça, no Algueirão,
a cinco minutos da estação dos comboios. No
rés-do-chão, a vivenda tinha uma divisão
grande, com um arco a meio, que tapámos, para fazer
o quarto do Pedro e o nosso quarto, uma sala, casa de banho
e cozinha; no primeiro andar, com três divisões
e outra casa de banho, instalaram-se o Zé a Mizé,
com a barriga cada vez maior. E ainda havia um sótão,
que transformámos em estúdio de pintura e
onde, mais tarde, instalámos um comboio eléctrico
com casinhas de Lego à volta, para os adultos brincarem.
E havia ainda a cave, com mais três divisões
e uma casa de banho minúscula, que estava ocupada
pelo casal Pereira Velez, que eram assim uma espécie
de caseiros. Tínhamos um jardim enorme, com relva
e muitas roseiras, dálias, lírios e jacintos,
um bom pedaço de terreno para cultivar, por trás
da vivenda, um poço com bomba e tudo, dois enormes
pinheiros, várias árvores de fruto, uma capoeira,
um tanque que parecia um bebedouro para cavalos e –
ironicamente – uma grande garagem com um terraço
por cima, nós que nem carta de condução
tínhamos!…
A nossa 1ª visita ao Algueirão; o Pereira
Velez explica à Mila, ao Zé e à Mizé,
como cuidar do jardim; o Pedro parece maravilhado com a
extensão da coisa...
Pagávamos seis contos por mês por esta mansão
ao sr. Almirante Belo, representante do filho, engenheiro,
que pelos vistos, tinha fugido para o Brasil quando aconteceu
o 25 de Abril. Cada casal pagava metade da renda e as contas
da água, luz, gás e telefone também
eram divididas a meias; assim como a cozinha, onde jantávamos
quase sempre juntos. Chamávamos-lhe a Vivenda Buques
e Smites, mas nunca ficou bem definido quem eram os Buques
e quem eram os Smites.
A pouco e pouco, começámos a dar um toque
pessoal à nossa casa. Numa das paredes do corredor
do rés-do-chão, a Mila pintou uma graciosa
girafa cor de rosa e eu acrescentei-lhe um balão
que dizia “O chicharro vencerá!”, outra
das nossas palavras de ordem preferidas. No tal bebedouro
para cavalos, pintou-se um caldeirão sobre uma fogueira
a arder e, na porta da garagem, a Mila pintou as traseiras
de um autocarro. Sempre que os nossos pais nos iam visitar,
achavam muita graça àquilo tudo mas, coitados,
lá bem no seu íntimo, devem ter achado muito
estranha aquela forma de vida. Tenho a certeza que, se as
coisas não tivessem corrido como correram, não
deixariam de nos recriminar: “estava-se mesmo a ver
o que ia acontecer! Todos a viver na mesma casa! E a pintarem
as paredes com bonecos idiotas! Só podia dar mau
resultado!…” Por outro lado, acho que eles se
acabaram por adaptar. Falo, sobretudo, dos meus pais e dos
pais da Mila. Penso que, a pouco e pouco, todos eles foram
percebendo que nós éramos felizes assim e,
como se costuma dizer, se os filhos eram felizes, eles também
eram felizes.
O primeiro grande acontecimento da Vivenda Buques e Smites
foi o Natal de 1975 que – como éramos contra
as instituições – foi sorteado e calhou
no dia 17 de Dezembro. Era a primeira vez que passávamos
um Natal em comunidade e sem os nossos pais.
Tínhamos mudado de família, de certo modo.
A nossa troca de presentes foi feita com discursos –
uma tradição que mantivemos durante algum
tempo. Nesse ano, eu e a Mila, um pouco tesos com o dinheiro
gasto na mudança para o Algueirão, gastámos
apenas quatro contos e duzentos e conseguimos dar prendas
a toda a gente. O Pedro, por exemplo, recebeu um grande
camião de caixa aberta, de plástico, claro,
para poder carregar a terra do quintal. No entanto, a prenda
mais marcante foi um carro de bombeiros, a pilhas, que o
Zé a Mizé lhe deram e que, quando ligado,
fazia um basqueiro infernal e tinha muitas luzes intermitentes.
A reacção do puto foi de quase pânico,
olhando para o monstro a dar voltas sobre si próprio,
apitando insistentemente. Foi para o lixo há três
ou quatro anos…
Entretanto, o Lemus fora para Estocolmo, como já
disse, trabalhar como adido da embaixada portuguesa na Suécia.
De lá, enviava-nos, de vez em quando, cartas cujo
estilo literário é inigualável. Vale
a pena citar um excerto de uma delas, escrita a 17 de Setembro
de 1975:
“Recebi a vossa cartinha e, pressuroso, eis-me
a responder, cheio de alegria.
Diz a Velha que eu prego partidas ao tovarich? Pois, o que
me custa é ver aprendizes de burguês a levarem-se
a sério. Isto aqui é muito perto, Leninegrado
é na “outra banda”, e eles cá
são topados. São uns burgueses que não
querem aprender sueco – para não serem tomados
por emigrantes! Sociedade sem classes? Pois.
Esta terra é cinco vezes e meia maior que Portugal
e tem menos habitantes. Por isso é que é o
país com mais telefones e automóveis do mundo,
pois de outra forma não conseguiam falar uns com
os outros. É mesmo uma vastidão. E é
também um país muito alto. Mas isso vem nos
compêndios. Tivessem estudado.
Tenho sido diariamente castigado com a República
(entretanto ocupada pelos trabalhadores), que me é
enviada pelo correio. Estou inocente, não pedi nada,
juro. Mas aquilo é mau que se farta. Chiça.
É pior que o Telejornal (desculpa Artur).
Acerca dos sobreviventes do Coiso, Pé de Cabra, Nabo
e Suplemento do República, em suma, o último
movimento humorístico válido existente em
Portugal. O Barradas está interessado em vir. Parece
que lhe arranjo uns ganchos para começar, e pode
ficar na Pensão Lemus até ser crescido. Acerca
da Velha é uma porra, que faz a Madame lacrimejar
e o Rui ficar fodido da vida. Gosto do gajo que me pelo,
e sinto-me, por vezes, desertar, deixando-o aí da
maneira que vocês me dizem. Perdi a vergonha, incorrendo
no risco de ele me mandar à merda, e quis emprestar-lhe
massa. Recusou firmemente, dizendo que nunca me poderia
pagar. Ora, se eu lho enviasse, o gajo devolvia-mo, era
limpinho. Mas, sucede que não consigo gastar tudo
o que ganho, pois vivo com uma simplicidade que, aí,
não estava ao meu alcance. Além do mais, aqui
não há putas nem copos. Sugiro, por conseguinte:
já que vocês moram aí perto da Velha,
podem (caso queiram) ir a uma mercearia ou super-mercado,
adquirir judiciosos víveres para o Mário que
lhe dessem, por exemplo, para um mês, ou quase. E
renovar periodicamente a fornada. Digam-me rapidamente se
consideram exequível a proposta, e quanto seria necessário,
que eu enviarei a massa na volta do correio. É que
não vejo mesmo outra solução. Olhem,
e que tal pagarem as contas do gajo? Digam quanto é.
Ou, já que aí estão e sabem melhor
do que o gajo precisa, decidam da melhor maneira de evitar
que aquele cabrão morra de fome. Lá que o
gajo morra dos cancros das tias e das mães, isso
é lá com ele, mas de fome, é uma porra.
E parece que não é de arredar essa hipótese,
pois já o Barradas me escreveu a esse respeito. Pois
é, façam esse favor á minha consciência.
Como o único auxílio que eu posso prestar
ao Mário é, infelizmente, pecuniário,
contem comigo até onde for necessário e eu
puder. Mas, contem também com o orgulho dele e, nos
pobres, o orgulho aumenta na razão directa das necessidades.
Valeu?”
Foi assim que iniciámos uma nova fase das nossas
relações com o Mário-Henrique, que
vivia em Carcavelos. Sobretudo desde que nos mudámos
para o Algueirão, começámos a ir regularmente
visitar o Mário e levar-lhe mantimentos. Ele protestava
sempre muito, brandia a bengala, que ainda hoje eu guardo
(aliás, o único objecto do Mário com
que fiquei), dizia muitas asneiras, mas acabava por aceitar
porque tinha, de facto, fome. Terminado “O Coiso”,
acabada a colaboração nos suplementos do República,
o Mário vivia nem sei bem do quê. De vez em
quando fazia umas traduções, nomeadamente,
de livros de banda desenhada (e que boas e personalizadas
traduções, as do Mário!), e pouco mais.
A certa altura, sem dinheiro para o gin, chegou a aquecer
álcool e a juntar-lhe açúcar e limão,
para produzir, assim, uma caipirinha barata.
De vez em quando, íamos buscar o Mário,
para almoçar connosco. E era isto: eu armado de aspirador,
o Zé de barrete e com duas garrafas na mão,
o Mário de funil na cabeça, a Mila com boné
de capitão, a Mizé de boina e o Pedro, provavelmente
espantado com estes adultos, de toucado de índio...
As tardes que passávamos com a Velha eram sempre
um fartar de rir. O Mário tinha sempre uma história
nova para contar e, a certa altura, pedimos-lhe que nos
deixasse gravar as suas histórias. Acho que foi o
Zé que ficou com as cassetes mas, o que tinha graça,
era estar ali, no pequeno quarto do Mário, com um
molhão de discos ao canto (foi ele que me emprestou
um disco do Boris Vian, que eu nem sabia que cantava), vários
instrumentos musicais da América Latina pendurados
nas paredes, a ouvir as suas histórias malucas. Chamava-nos
“meninos” e, de facto, era o que nós
os quatro parecíamos, sentado à volta do Vovô
Gasosa, a ouvir como é que ele se apaixonou por uma
domadora de cavalos russa que estava sempre a perguntar-lhe
“Gostas de mim? Gostas de mim? E eu, que já
lhe tinha dito uma vez que gostava dela, fartei-me. Por
isso, vim-me embora!”.
Apesar de nos divertirmos bastante quando estávamos
com o Mário, ficávamos sempre um pouco deprimidos
quando lá íamos. Qual seria o futuro dele?
Ali estava um tipo genial, com uma capacidade criativa delirante,
que escrevia como ninguém que, apesar das mãos
anquilosadas, ainda desenhava bem, e que passava os dias
fechado num minúsculo quarto de uma velha casa em
Carcavelos, sem nada para fazer. É verdade que, como
dizia o Lemus, o seu orgulho era desmesurado e o Mário
seria incapaz de colaborar com quem não tivesse as
suas ideias políticas, fossem elas quais fossem.
Obviamente que o Mário era comunista, mas não
do PCP, nem dos outros pêcês que se reclamavam
da verdadeira doutrina marxista-leninista (frase anarquista
nas paredes de Lisboa: “Vota MRPP – tem mais
Lenine!”); a certa altura pareceu-me entusiasmado
com o Partido Revolucionário do Proletariado, do
Carlos Antunes e da Isabel do Carmo, e com o Otelo e os
GDUP (Grupos Democráticos de Unidade Popular) –
mas isso também eu, na altura em que achava que o
poder tinha mesmo que vir das bases. Mas enfim, por uma
razão ou por outra, o Mário lá estava,
isolado, sem nada para fazer, e com fome!
Entretanto, a nossa reforma agrária ia de vento em
popa. Depois de uma de troca de cartas com o almirante Belo,
conseguimos que o casal Pereira Velez se fosse embora da
cave. Pagávamos a água e a luz aos velhotes
e ainda uma pequena mensalidade (uns míseros duzentos
escudos por mês), porque não fomos capazes
de exigir que eles saíssem quando nós alugámos
a vivenda. Imaginávamos que eles eram assim uma espécie
de caseiros, a viver de uma magra reforma e seria contra
os nossos princípios democráticos desalojá-los.
Acabámos por descobrir que, afinal, o Pereira Velez
tinha um monte no Alentejo e até estava muito bem
na vida; vivia ali, naquela cave apenas há três
anos, por conveniência do almirante, com quem tinha
relações de interdependência que nunca
conhecemos e, desse modo, guardava-lhe a propriedade de
uma possível ocupação. A páginas
tantas, começámos a ter o nosso jardim invadido
pela família do Pereira Velez, que lá ia passar
fins de semana, e mais um filho que vivia em Guimarães
e que veio a Lisboa tratar de negócios e se instalou
na cave durante várias semanas, gastando a água
e a luz que nós pagávamos sem dar cavaco,
e mais os cães de caça que o Pereira tinha
fechados na capoeira e que serviam para procriação.
Em resumo: por vezes, nós sentíamo-nos estranhos
na nossa própria casa.
Assim que os velhotes se foram, desatámos a cultivar
a terra a toda a força. Plantámos uns quantos
cedros junto ao muro da frente, de modo a formarem uma sebe
e, no terreno de trás, semeámos muita coisa.
Colheita de 1976: 23,360 kg de ervilha, 36,750 kg de batata,
10,550 kg de cereja, 23,600 de fava, 17,600 kg de cebola,
102 alfaces, 1,600 kg de alho, 12,440 kg de abrunhos, 45,030
kg de ameixa amarela, 1,740 kg de ameixa vermelha, 3,270
kg de ginja, 1,400 kg de groselha, 4,150 kg de nêspera,
2,400 kg de alperce, 20,340 kg de feijão verde, 4,600
kg de uva, 14,380 kg de pêras, 4,350 kg de rainha-cláudias,
2,780 kg de pêssego, 16,390 kg de tomate, 12,290 kg
de figo. A obsessão das listas, outra vez... Pelas
nossas contas, a preços da época, esta primeira
colheita devia valer cerca de quatro contos. Uma fortuna!
Eu e a Mila, arrancando a relva do jardim, para plantar
flores...
A vida no Telejornal também corria de feição.
Ao fim de seis meses como chefe de edição,
decidi pedir a demissão, juntamente com o Avelino
Rodrigues e o Cesário Borga. A minha carta de demissão,
enviada ao director de então, um senhor chamado Veiga
Pereira, veio publicada noutros órgãos de
informação e dizia assim:
“Que papel faz o sub-chefe de uma redacção
que, não colaborando na orientação
dessa redacção (porque nunca o chamam para
isso), a executa diariamente?
Que só sabe qual o redactor que vai ao estrangeiro
cobrir tal ou tal acontecimento, quando a reportagem já
está em curso?
Que só toma conhecimento das reportagens do dia quando
elas já estão feitas?
Que…”
E seguiam-se mais uma série de outras perguntas
semelhantes... O que acontecia é que aqueles três
chefes de edição eram, ao fim e ao cabo, uma
fachada de esquerda (porque nós os três éramos
de esquerda, claro), já que quem tomava as decisões
quanto ao conteúdo e a forma do Telejornal eram outros
que não nós.
A carta terminava assim:
“O papel desse sub-chefe de redacção
é o de fantoche.
Estou farto de o representar.
Por isso, considero-me demitido a partir de hoje”
A carta seguiu no dia 20 de Abril de 1976. Cinco dias depois
completar-se-iam exactamente seis meses de exercício
do cargo de chefe de edição, o que queria
dizer que, embora a administração me pudesse
tirar o cargo, já não me poderia tirar a categoria.
Desconhecendo esta minudência burocrática,
enviei a carta antes do tempo. Mais uma vez, a administração
da RTP foi condescendente para comigo e manteve-me a categoria.
No final de 1976, já ganhava catorze contos e quinhentos
por mês.
E como prémio, até me deram, em Setembro,
a minha primeira reportagem no estrangeiro. Fui a Cabo Verde,
à Cidade da Praia, fazer a reportagem de um encontro
qualquer entre o então ministro dos Negócios
Estrangeiros, Medeiros Ferreira e o seu homólogo
angolano. Foi uma experiência interessante. Além
da equipa da RTP, constituída por mim, um assistente
de som e o homem da câmara, também foi uma
equipa da RDP, chefiada pelo Henrique Garcia, que haveria,
depois, de ir também para a televisão. A minha
equipa ficou instalada na Pousada Praia-mar, na Cidade da
Praia e mamou sete almoços e oito jantares, quase
todos à base de atum, pela módica quantia
de um conto e quinhentos, tudo incluído!
Foi a segunda vez que andei de avião. A primeira
tinha sido em Agosto desse ano, quando eu e a Mila conseguimos,
finalmente, juntar dinheiro para realizar um pequeno sonho:
ir a Londres. Foi uma viagem pobrezinha, com os tostões
todos contados, mas que nos deu muito gozo.
E, nessa viagem, seguia já uma passageira clandestina:
a Marta.
Como a vida nos estava a correr de feição
– e já que não tínhamos tido
possibilidade de planear o Pedro – em Março
decidíramos planear uma menina. Utilizando um esquema
complicado de só ter relações numa
determinada altura do período fértil da Mila,
conseguimos acertar na menina.
Quando a Mila estava grávida do Pedro, embora nós
acreditássemos piamente que só podia ser um
Pedro, costumávamos dizer que, caso fosse uma menina,
lhe chamaríamos Rita. Agora, que a Mila estava grávida
de uma menina, hesitávamos entre Rita e Marta.
A súbita morte da minha mãe, que se chamava
Maria Rita, fez-nos inclinar definitivamente para Marta.
A minha mãe morreu em Setembro. A Marta nasceu em
Novembro. Não se chegaram a conhecer. Ambas perderam
com isso.
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