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O Coiso
Memórias de um fumador
50 anos de história


11. A minha Mãe (1976)

A minha mãe nunca fumou. Morreu aos 46 anos, de leucemia aguda. Adoeceu de repente, o diagnóstico foi estabelecido cinco ou seis dias depois e a ele sobreviveu poucas horas.
Falei pouco da minha mãe ao longo destas primeiras páginas mas ela esteve sempre presente. Ela está presente. Não sou crente. Morremos, acabou-se. No entanto, a memória fica. Se isso for a imortalidade da alma, nesse caso, a alma existe e é imortal. Porque a memória da minha mãe mantém-se dentro de mim; não um corpo, mas um sorriso, um olhar.
A minha mãe tinha olhos azuis, como os da Mila, e um rosto doce, sempre com um sorriso triste.


Eu e os meus pais, Março de 1954

Não me lembro da minha mãe verdadeiramente alegre. Lembro-me do tal sorriso triste e da a ver chorar, de vez em quando.
Terá sido infeliz, a minha mãe? Não sei, não tive tempo para falar com ela. Quando comecei a perceber melhor a vida e as pessoas, quando comecei a olhar um pouco para além do círculo fechado em torno de mim e dos amigos, já ela cá não estava.
No entanto, acho que tínhamos uma boa relação. Ela sempre foi muito terna para mim, e para todos. Era uma senhora doce. Eu acho que também não a desiludi como filho. Mas nunca compreendi bem a sua tristeza. Só muito mais tarde juntei as peças do puzzle e percebi que ela devia sofrer de uma neurose obsessiva, que nunca foi convenientemente tratada, embora, nos últimos anos, tivesse tomado anti-depressivos. Tinha medo dos venenos, quer dos reais, o pó para as formigas e baratas, o veneno dos ratos, quer os venenos que ela imaginava existirem. Quando vivíamos na Avenida Gomes Pereira, tínhamos um quintal com uma pequena horta, onde o meu pai cultivava tomates, feijão verde, alfaces e couves. Só muito mais tarde percebi aquela decisão quase irracional de nos mudarmos de uma casa com quintal para um primeiro andar atarracado na Rua Montepio Geral. A minha mãe tinha medo do quintal, da horta e dos venenos que o meu pai lá punha para afugentar caracóis, lesmas e outros predadores das hortaliças.
Mas no primeiro andar, a minha mãe também não se conseguiu livrar da sua obsessão. Atravessou períodos muito maus, em que não despia o roupão dias e dias seguidos e o seu rosto tinha uma tristeza tumular. Mas quando a crise passava, o tal sorriso triste bailava-lhe sempre nos lábios.
A recordação mais remota que guardo da minha mãe: ela, na cozinha, a preparar o almoço, e eu de volta dela, agarrando-lhe as saias. Eu devia ter quatro ou cinco anos. É uma memória quente, quase erótica, do calor que se desprendia do corpo dela. Mas recordo-me, sobretudo, do prazer que eu sentia em mostrar-lhe coisas que me entusiasmavam: as músicas de que eu gostava, passagens dos livros que lia, textos que escrevia, canções que compunha. Apesar de ter apenas a instrução primária, a minha mãe tinha um espírito aberto, gostava de aprender coisas novas, era uma mulher inteligente e o seu apoio, a sua ternura, a sua doçura, ajudaram, penso eu, a humanizar-me. Apesar de todo o radicalismo dos meus vinte anos, acabei por me transformar num tipo tolerante, e isso devo-o a ela.
Lembro-me muito bem do pão com manteiga, açúcar e canela que ela me preparava para o lanche e lembro-me de quando ela me fazia o risco ao lado e me penteava a popa com Brylcream, antes de me levar a casa da minha madrinha.
Lembro-me quando ela estava grávida do Paulo e eu tinha rubéola. Fiquei fechado no quarto durante uma semana, para não a contagiar. Como o meu quarto, na Avenida Gomes Pereira, tinha uma janela que dava para o quintal, a minha mãe ia-me visitar, pelo lado de fora e eu tinha saudades dela.
Lembro-me de quando ela me mascarava de cow-boy, no Carnaval, com um fato que ela própria fizera: tinha colete com estrela de xerife, calças com guarda-pó, botas com esporas, um grande chapéu de abas e, claro, um coldre com duas pistolas. O meu pai fotografava-me, a preto e branco e, depois, coloria as fotografias.


Cá estou eu, talvez com 5 anos, mascarado de cowboy, no parapeito da janela do meu quarto; a minha mãe confeccionava o fato e o meu pai coloria a fotografia

Lembro-me como tapou os cortinados e o candeeiro do meu quarto com panos vermelhos, quando eu tive sarampo e me agarrou na mão, com força, quando a enfermeira me veio dar uma injecção.
Lembro-me da aflição dela quando me despejou um tacho de água a ferver por cima do ombro direito. O Paulo estava doente, o Dr. Mayonne ia dar-lhe uma injecção e a seringa tinha que ser fervida. A minha mãe vinha da cozinha com o tacho cheio de água a ferver e eu fui de encontro a ela; a água derramou-se sobre o meu ombro e eu nem senti nada mas, quando me tiraram o pull-over aos losangos verdes e brancos, que ela tricotara para mim, a pele do ombro foi toda atrás.
Lembro-me das camisolas que a minha mãe me tricotava. Eram as camisolas mais bonitas lá da rua. Camisolas com grandes âncoras e nós de marinheiro, que se chamavam poveiras. Apesar de eu ser mais baixo que o Vitinho e que o Carlitos, era óbvio que era o mais importante, graças às camisolas que a minha mãe tricotava.


Da esquerda para a direita: o Vitinho, o Carlitos (também conhecido por Vargas) e eu, com uma das camisolas tricotadas pela minha mãe; à frente, o Paulo. Notar que todos estamos bem armados...

Lembro-me das intermináveis colchas de renda que a minha mãe fazia, obsessivamente. Era com o dinheiro que ganhava com a vendas dessas colchas, que ela me ajudava a mim e à Mila, nos nossos primeiros meses de casados, já que o Zé Couto era um forreta dos antigos.
Lembro-me da minha mãe a cuidar do Paulo e da Bela, quando eles eram bebés e, sinceramente, não me lembro de ter ciúmes.
Lembro-me de algumas discussões entre os meus pais; eu tomava sempre o partido da minha mãe, silenciosamente, claro. Nessas alturas, odiava genuinamente o meu pai.
Lembro-me que gostava muito de falar com a minha mãe, de lhe contar alguns episódios escolares, mas só os que a divertissem, nunca os que a pudessem entristecer ainda mais. Gostava de lhe contar os meus sucessos e sentir que ela ficava feliz com eles. Durante muitos anos após a sua morte, sempre que me acontecia alguma coisa boa na minha vida, sentia o impulso de pegar no telefone e partilhar com ela a minha felicidade.
Lembro-me do sorriso dela, no terceiro aniversário do Pedro. O Pedro foi uma das melhores coisas que podiam ter acontecido à minha mãe e ela pouco se gozou da sua companhia. Em Agosto de 1976, dois meses antes de falecer, ficou com o Pedro durante uma semana, enquanto nós fomos a Londres. Os dois davam-se muito bem.


Os meus pais com o Pedro, na Costa da Caparica, Agosto 1976.

A minha mãe percebeu o que a Mila significava para mim e recebeu-a bem. Talvez tenha sentido um choque quando se apercebeu que o filho mais velho ia sair de casa, assim, de repente. Ou talvez estivesse tão triste no meu casamento porque estava a atravessar uma das suas crises. Mas o Pedro veio alegrá-la e, nos últimos três anos da sua vida, a avó Mariazinha até parecia mais alegre.
Mas a morte levou-a.
A minha mãe nunca fumou. Nunca teve uma doença física grave. Mas morreu aos 46 anos. Porque as coisas são assim, sem regras; aconteceu por acaso e não como prémio ou castigo de coisa nenhuma.
Se havia alguém que não merecia ser castigada era a minha mãe.

 

 



Próximo capítulo: "A Marta" (1976)

 

Actualizado em: 22 de Novembro
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