12. A Marta (1976)
A gravidez da Marta foi muito melhor vivida do que a do
Pedro. Em primeiro lugar, porque estava tudo legalizado.
Em segundo lugar, porque foi uma gravidez planeada e desejada
desde o início – enquanto a do Pedro só
se tornou desejada depois de nós nos consciencializarmos
de que íamos ser pais. Além disso, a nossa
vida estava muito mais estabilizada: o curso de Medicina
estava a correr bem e éramos quase finalistas, o
meu emprego na RTP estava seguro, continuava a ganhar mais
algum dinheiro com colaborações para outros
jornais e até a Mila arranjara um trabalho de monitora
da cadeira de Introdução à Clínica,
da responsabilidade do Professor Machado Caetano, na nova
Faculdade de Medicina do Campo Santana.
Em Julho, no dia 27, a Mizé deu à luz a Joana.
Passámos a ser seis lá em casa. Até
ao nascimento da Marta, em Novembro, o Pedro foi-se treinando
a ser o irmão mais velho e, durante alguns anos,
a Joana quase que funcionou com a filha do meio. Embora
as nossas vidas se tenham separado e levado rumos diversos,
a ternura que sinto pela Joana continua a ser semelhante
à de um pai, se é que me faço entender.
Assim, logo a partir de Julho, começámos a
saber o que era ter um bebé a chorar na Vivenda Buques
e Smites.
A Joana, com dias de vida e eu, com o meu look típico
dos anos 70
Entretanto, as minhas lides jornalísticas continuavam
em grande. O Álvaro Belo Marques, antes de ter partido
para Moçambique, ainda se aventurou com a edição
de um novo jornal, o “Página Um” que,
não oficialmente, seria o porta-voz da candidatura
do general Otelo à Presidência da República.
Convidou-me para sub-chefe de redacção. Foi
um gajo porreiro, o Álvaro (já repararam que
tive dois Álvaros importantes na minha carreira jornalística?),
mas eu não estava com muita vontade de experimentar
novas aventuras de êxito duvidoso. E, no entanto,
até tinha andado, com a Mila, numa manifestação
de apoio ao Otelo, quando ele se candidatou à Presidência
da República. Transcrevo excertos da carta que enviei
ao Álvaro:
“Falemos claro: a minha resposta é negativa.
Porquê? Porque o jornal não vai ser apartidário,
independente de esquerda e todos esses lugares comuns do
costume: vai ser sectário.
(…) Diz ainda o estatuto Editorial, que o jornal é
pelo Poder Popular e pela Revolução Socialista.
E quem define estes conceitos? O que é o Poder Popular
para o Página Um? Não será diferente
do semanário “Gazeta”, do jornal “Voz
do Povo”, do outro diário independente de esquerda
“O Diário”? E Revolução
Socialista, o que é, o que vai ser nas colunas do
Página Um? A insurreição armada para
amanhã? A tomada do poder pelos trabalhadores, não
guiados por uma vanguarda esclarecida, mas sim por uma vanguarda
desorganizada?
(…) E quem o financia? (…) Não virá
o dinheiro do estrangeiro, de outros grupos de esquerda
revolucionária? E esse dinheiro virá durante
quanto tempo?
(…) Fazer frete, por fazer frete, continuo mais uns
meses na TV, até ter as minhas tão ansiadas
férias de Verão, e escolherei depois outro
sítio para trabalhar.”
Nesta altura, eu já começava a ter dúvidas.
Terminado o curso, o que iria fazer: optar pela Medicina
ou continuar com o jornalismo? É que eu até
tinha carteira profissional de jornalista e tudo. Fui o
sócio efectivo nº 853 do Sindicato dos Jornalistas
e até exerci, durante algum tempo, o cargo de delegado
sindical do Telejornal. Recordo que o meu colega José
Eduardo Moniz (que foi meu subordinado quando eu era chefe
de edição) é agora o manda-chuva da
TVI, que o Joaquim Furtado já foi Director de Programas
da RTP, que o Joaquim Vieira, além de também
ter exercido o mesmo cargo do Furtado, foi Director do Expresso,
que o António Borga, passou do Telejornal para director
do “Diário”, conotado com o PCP e é,
agora, um dos responsáveis pela informação
da SIC. Onde estaria eu agora, se tivesse continuado no
jornalismo?
Cá está o meu cartão do Sindicato dos
Jornalistas, assinado pelo então Presidente, João
Contumélias que, se não me engano, era do
MRPP...
A “Gazeta da Semana” foi outro projecto em
que estive envolvido durante 1976 – o primeiro projecto
sério, quero dizer, sem gracinhas. Era um semanário,
que começou a publicar-se em Abril e que se aguentou
até Janeiro de 1977. Era de esquerda, claro! Tão
de esquerda, que não havia chefe de redacção,
era o “colectivo de redacção”!
O director (interino) era o João Martins Pereira,
o director-adjunto (interino) era o Jorge Almeida Fernandes,
dos redactores e colaboradores faziam parte, entre outros,
o Adelino Gomes, o José António Salvador (que
agora faz roteiros de vinhos, acho eu…) e o Joaquim
Furtado. Denso que se fartava, o semanário tinha
vinte páginas, sem publicidade e apenas dedicava
duas páginas à actualidade internacional,
a maior parte das vezes com artigos sacados ao Libération.
Mas a partir do número dezassete, em Julho de 1976,
tudo mudou, com o início da minha colaboração,
modéstia à parte. Graças à experiência
adquirida na secção internacional do Telejornal,
onde tinha acesso a todos os telexes que chegavam das diversas
agências, podia dizer-se que eu possuía uma
bagagem razoável no que respeita à política
internacional. Ainda por cima, a esmagadora maioria dos
jornalistas portugueses andava demasiado enfronhada na política
nacional para ligar ao que se passava lá fora. Assim
sendo, eu até podia ser considerado um especialista
na matéria.
Logo no primeiro número da Gazeta em que colaborei,
enchi uma página com o artigo “Líbano:
no centro da guerra, o povo palestiniano”, em que
fazia um resumo das razões do conflito, com intuitos
pedagógicos, explicando onde ficava o Líbano,
como tinha nascido, que existiam, na região, dezassete
comunidades religiosas e assim por diante. Um artigo como
deve ser e que, devo dizê-lo, não era habitual
naqueles tempos, na imprensa portuguesa. Publiquei ainda,
no mesmo número, um artigo sobre Espanha, então
liderada por Adolfo Suarez, intitulado “Afinal quem
apoia o reformismo”. E, como já era costume,
só parei quando o jornal acabou. Logo no número
seguinte iniciei uma coluna, que denominei “Domingo
a domingo”, e em que fazia uma resenha dos principais
acontecimentos da actualidade internacional da semana, e
publiquei um extenso texto sobre o Peru (“O estado
de emergência; golpe de estado; a queda do governo”),
que incluía um mapa do país e uma pequena
ficha técnica com dados demográficos e outros,
o que não era habitual fazer-se nas publicações
nacionais. Gostei de colaborar na Gazeta e penso que fiz
um bom trabalho jornalístico durante aqueles meses
mas, enfim, um jornal sem publicidade, esperando sobreviver
só à custa dos leitores, tinha o seu destino
traçado desde o início (talvez por isso os
seus director e director-adjunto tenham sido sempre interinos…)
Ainda em 1976, colaborei também em alguns números
de uma publicação intitulada “25 de
Abril do Povo”, muito ligada à candidatura
do Otelo à Presidência, e à UDP, e ao
Joaquim Vieira. Colaboração militante, sem
receber nada em troca, ao contrário do que acontecia
com a Gazeta, em que ganhava uma pequena avença semanal,
de valor quase simbólico.
De tudo isto, posso concluir, talvez, que se tivesse continuado
a minha carreira de jornalista, talvez me tivesse tornado
uma espécie de especialista em política internacional,
sobretudo nas questões do Médio Oriente, que
sempre me fascinaram. Mas escolhi a Medicina, e não
estou arrependido, como adiante se confirmará.
Entretanto, no Algueirão, a reforma agrária
continuava de vento em popa, apesar de alguns percalços.
Durante o mês de Agosto, como já vinha sendo
hábito – e depois da nossa visita relâmpago
a Londres – fomos para o parque de campismo da Inatel,
na Costa da Caparica. Há muitos anos que os pais
da Mila mantinham, primeiro uma tenda e depois um roulote,
naquele parque, o que permitia umas férias baratas
ao ar livre. Mas, no Algueirão, o Zé e a Mizé
sofriam a bom sofrer com problemas de canalização.
A sanita da casa de banho do rés-do-chão entupia
constantemente e, daquela vez, foi definitivo o entupimento.
A propósito, o Zé escreveu-nos uma carta hilariante,
de que vale a pena citar alguns excertos:
“Como sabeis, a vossa sanita estava entupida.
Fomos mostrá-la ao canalizador que, depois de uma
primeira auscultação, se mostrou apreensivo
e disse que talvez tivesse que escavacar, um dia destes,
as paredes. Ficámos logo muito ralados. No entanto,
e para tentar todas as hipóteses, propôs-nos
um apetecido entretenimento que consistiu em forrar uma
vassoura redonda com traparia e fazer com ela um martelo-pilão
(…)
O querido martelo-pilão entrou em funcionamento,
ao mesmo tempo que eu metia a mangueira pela janela e a
enfiava na sanita. Daí a momentos a sanita estava
obviamente cheia, enquanto o martelo-pilão ia trazendo
ao de cima, uma calda castanha, entrecortada por corpúsculos
pastoso de bosta. Um breve aroma começou a subir.
(…) A merda ia avançando por sobre tudo, enquanto
eu e o canalizador, consternados junto à cagadeira,
já tínhamos sopa por cima das solas. E então,
súbito, o desaire. O canalizador resolve abanar ligeiramente
a sanita para ver como é. O cheiro imenso. As pastas
já concretas e cilíndricas. A sanita oscila
ligeiramente. O espaço entre ela e o chão
aumenta de alguns milímetros. É o que basta
para alguns cagalhões mais ousados saltarem para
fora e correrem à volta dos nossos pés. (…)
E eis que ela salta fora. Fica prostrada uns bons palmos
fora do local, enquanto de um enorme e disforme buraco,
salta toda a casta de porcaria. (…) À nossa
vista, solene, reproduzida, perfeita, a feijoada, as almôndegas,
a sopetarra de entulho, uma lava mais sólida que
líquida, que se agita em bonita cloaca, de formas
indecifráveis.
(…) Rodeado de merda por todos os lados tomam-se decisões
drásticas. Mandei a Mizé buscar – veloz
– a concha da sopa.
Então, comecei a tirar para o caixote do lixo, dezenas
e dezenas de compressas, pensos higiénicos e cagalhões
boiantes, de tal modo que enchi um caixote só com
sólidos. (…) Foram minutos e minutos de colherada
para conseguir desentupir minimamente o buraco. Às
tantas, a concha da sopa não dava bem, de modo que
foi com a mão. A partir de certa altura já
quase amávamos aquilo e não notávamos
se era merda ou sopas de leite. Talvez fossem mesmo sopas
de leite.
(…) A concha, os panos, as vassouras, etc, vai ser
tudo, ou já foi, queimado. O canalizador deve cá
vir na sexta-feira para colocar a sanita. Até lá,
tapámos o buraco com aquela tampa redonda, não
vá aparecer algum democrata pelo cano acima.
(…) Depois deste episódio pensamos ser urgente
discutir se continuamos a cagar nas sanitas ou se o devemos
fazer na panela da sopa.”
Convenhamos que a carta é um pouco escatológica,
mas penso que valeu a pena transcrever estes nacos porque
mostram como nós transformávamos episódios
do quotidiano em grandes odisseias que eram, sempre, um
fartar de rir.
O que é verdade é que, muitas vezes, a realidade
ultrapassa a ficção. Foi para comprovar isso
mesmo que, a partir de 1976, comecei a juntar num dossier
alguns recortes de jornal e outros documentos insólitos
que se cruzavam comigo.
À redacção do Telejornal chegavam,
por vezes, comunicados que me deixavam boquiaberto. Alguns
vale a pena recordar, como este, datado de Março,
e que provinha dos doentes do Hospital Júlio de Matos
e que dizia, a dado passo:
“Vamos apoiar a justa luta dos trabalhadores
da enfermagem em greve nacional neste momento decisivo.
Os doentes do Hospital Júlio de Matos vêm por
este meio e esta via directa, junto do Governo português,
fazer sentir toda a justiça da Luta e Greve que toda
a classe trabalhadora de enfermagem trava neste momento
decisivo em todo o País.”
Os doentes esquizofrénicos, os paranóicos,
os maníaco-depressivos, todos os doentes mentais
do Júlio de Matos a apoiarem a justa luta dos enfermeiros?!
Isto era ou não era surrealista?
Este outro comunicado, também de Março, merece
uma atenção especial:
“Comunicado aos órgãos de Comunicação
Social
Sobre a correcta grafia da denominação e sigla
do Partido Comunista de Portugal (marxista-leninista).
Costumam os órgãos de informação,
quer falada quer escrita, cometer vários erros quanto
à denominação e sigla do Partido Comunista
de Portugal (marxista-leninista).
No sentido de evitar repetições desses erros,
o PCP (m-l) esclarece:
1 – A sigla do Partido é PCP (m-l) ou PCP (M-L)
e não PC de P (m-l) ou PC de P (M-L), como é
hábito ver-se ou ouvir-se.
2 – As palavras marxista e leninista, assim como as
letras m e l, não se escrevem indistintamente, com
maiúsculas ou minúsculas, como fazem alguns
jornalistas.
Deve escrever-se com maiúsculas quando se trata de
um título todo em caixa alta: PARTIDO COMUNISTA DE
PORTUGAL (MARXISTA-LENINISTA) e PCP (M-L).
Em texto corrente, ou em título de caixa baixa, escreve-se:
Partido Comunista de Portugal (marxista-leninista) e PCP
(m-l).
Esperamos que esta nossa circular seja suficientemente clara
para que tais erros desapareçam dos órgãos
de informação.”
Acreditam nisto? Será que este comunicado foi escrito
por algum dos doentes do Hospital Júlio de Matos?
A profusão de grupúsculos éme-eles
era tal que, às tantas, ninguém sabia quem
era quem.
Mas a loucura dos comunicados insólitos também
atingia outros sectores mais institucionalizados. Vejam
este:
“Pinheiro de Azevedo às portas da morte.
O povo exige a verdade.
(…) Pinheiro de Azevedo, que toda a gente viu estar
de perfeita saúde, está às portas da
morte com outro enfarte do miocárdio no dia da mesa
redonda onde prometera dizer toda a verdade sobre as obscuras
actividades de Ramalho Eanes no 25 de Novembro e no Conselho
da Revolução.
A quem serve o ataque cardíaco de Pinheiro de Azevedo?”
E o comunicado continuava no mesmo tom, insinuando que
o chamado almirante sem medo, o tal que gritou “Bardamerda
para o socialismo!”, não estaria a ser vítima
de uma doença natural. O comunicado era da UDP e
está assinado pelo então deputado daquele
partido à Assembleia, Acácio Barreiros, conhecem?
Só para terminar, por agora, esta série de
documentos que fui guardando, tomem lá com um telex
que chegou à redacção do Telejornal
em Abril:
“Informem se estão interessados em assalto
a ourivesaria em Viseu, cujo valor do roubo oscila os 400
mil escudos?
Queríamos dizer interessados na notícia.”
Pois, na notícia, porque no assalto, nunca se sabe,
não é?…
Como vêem, era divertido ser jornalista em Portugal,
naquela época. Claro que, assim que acabava o meu
trabalho na redacção, não ia para os
bares beber copos com as fontes de informação,
ainda não existiam os restaurantes onde jornalistas
e políticos almoçam em conjunto e deixam escapar
algumas informações “sem querer”
e, no dia seguinte, vem tudo na primeira página do
Independente ou do Expresso, conforme a cor política
do jornalista ou do ministro – ou melhor, conforme
a conveniência de cada um em lixar esta ou aquela
personalidade. O jornalismo de hoje é outra coisa
e, sinceramente, não me apetece falar sobre isso,
pelo menos por enquanto.
Quando terminava o meu trabalho, ia para o Algueirão
plantar alfaces, ou regar o jardim, ou beber um grande gin
tónico e fumar um cigarrito à sombra dos nossos
pinheiros, ou brincar com o Pedro e com a Joana, ou fazer
festas na barriga da Mila, que estava quase a explodir.
E explodiu, exactamente no dia 30 de Novembro e, lá
de dentro, saiu a Marta, como estava planeado.
Mais uma vez, não tive coragem para assistir ao parto.
Quando a Mila foi para a Maternidade, para ter o Pedro,
fiquei na Sala de Alunos, a ser entrevistado pelo Zé,
sobre a sensação de ser quase-pai –
entrevista que, depois, publiquei num dos “Textos
a propósito”. A Mila estava com soro, a induzir
o parto, mas a coisa nunca mais avançava e eu acabei
por regressar a Queluz, e o Pedro acabou por nascer pouco
depois da meia-noite, estava eu a dormir placidamente. Com
o parto da Marta, quis acompanhar a Mila até ao fim
mas, no último momento, fiquei à porta do
quarto, encostado à ombreira, enquanto a enfermeira
dava uma ajuda à Mila que, mais uma vez, se portou
tão bem que não precisou de episiotomia em
nenhum dos partos. Ainda não eram sete da tarde quando
a Marta nasceu. No dia seguinte, fui visitar a mãe
e a filha à Maternidade e, ao debruçar-me,
para beijar a Mila, caiu, do meu cabelo, um bicharoco no
lençol da cama. Estava com um grande camada de piolhos,
que o Pedro deve ter trazido do infantário! A princípio,
ainda pensámos tratar-se de algum bicho que eu trouxera
lá do quintal, mas a experiência da Arminda
desfez todas as dúvidas: eram mesmo piolhos e estávamos
todos minados, excepto a Martinha, claro...
A Marta era um bebé pequenino e delicioso, com cara
de menina, indiscutivelmente. Se, com o Pedro, a coisa já
era notória, com a Marta ainda mais: as mamas da
Mila quase afogavam a miúda; mas ela agarrava-se
a elas com afinco, que o instinto de sobrevivência
é sempre mais forte.
Com cerca de 1 mês, a Marta sorri para a Mila
À Marta, não escrevi poemas. Já tinha
desistido de ser poeta. Também não houve angústias
durante a sua gravidez, como acontecera com o Pedro. Tudo
fora planeado e a coisa foi muito menos ansiogénica.
Substitui os poemas por dezenas de slides, que era uma das
nossas manias de então: a Marta a tomar banho, vista
de frente, de lado e trás, a Mila a introduzir um
mini-clister à Marta, que era obstipada e, depois,
o resultado, a grande cagada na fralda, vista de cima, de
frente e de lado, a Marta a mamar, afundada nas enormes
mamas da Mila, sob o olhar examinador do Pedro, a Marta
bocejando, a Marta dormindo, a Marta sorrindo, a Marta berrando.
Diz-se que uma imagem vale um milhão de palavras
e eu que, no meu dia a dia, escrevia milhares de palavras
como forma de ganhar a vida, preferia fixar a Marta em imagens
do que escrever poemas e outros textos, como fiz com o Pedro.
E também já não houve todas aquelas
teorias de como iríamos educar a menina, e ensinar-lhe
os grandes pintores e os grandes escritores, embora exista
uma foto em que eu tenho a Marta sentada ao meu colo e estou
a mostrar-lhe a “Revolução Sexual”,
do Wilhelm Reich, mas era tudo brincadeira. Penso que é
sempre assim com o segundo filho, mais descontracção,
menos angústias, mais “savoir faire”.
No Natal de 1976 que, nesse ano, calhou no dia 21 de Dezembro,
já éramos sete na Vivenda Buques e Smites
e na troca de presentes destacaram-se as prendas manufacturadas.
Tínhamos começado a pintar pedras da calçada,
calhaus rolados que íamos buscar à praia e
toda a espécie de pedras que nos sugerissem determinadas
formas. Colávamos as pedras com cola Araldite e,
depois, pintávamos com tinta de esmalte. Fazíamos
de tudo: maços de cigarros (ainda tenho para aí
um SG filtro em pedra, pintado pelo Zé), betoneiras,
táxis, camionetas, casinhas, tudo. O Zé era
o maior entusiasta desta arte, mas todos nós alinhávamos,
incluindo o Pedro que, por essa altura, me ofereceu um prato
pintado por ele.
Foi nesta família de artistas que aterraram a Joana
e a Marta. Cada uma à sua maneira, foram ocupando
o lugar que lhes cabia na família.
Com apenas quatro meses de diferença nas idades,
a Joana e a Marta funcionavam praticamente como irmãs
e foram crescendo quase em paralelo; nascia um dente a uma
e, passado pouco tempo, nascia um dente à outra;
a Joana começava a andar e, pouco tempo depois, a
Marta fazia o mesmo.
Foi muito bom ver os nossos três filhos crescer juntos,
em liberdade, com espaço para correrem e saltarem
e brincarem, com o Pedro sempre a dirigir as duas miúdas
que, no entanto, não se deixavam dominar facilmente.
A Marta, aliás, foi sempre muito afirmativa e demonstrava-o
bem, com as suas monumentais birras. Mas, como a Mila bordou
numa colcha para a cama da nossa filha: “É
bom ser Marta”.
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