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O Coiso
Memórias de um fumador
50 anos de história


13. O Curso de Medicina (1977)

No dia em que a Marta completou um ano de vida, o Sousa deixou de fumar. Foi o primeiro desertor que conheci pessoalmente. E ainda por cima, o Sousa era um grande militante do cigarro; fumava desde muito jovem e, nos seus melhores momentos, chegou aos três maços diários de SG gigante, uma das poucas marcas que eu nunca gostei porque me irrita a garganta. Na sequência de uma tosse mais persistente, foi fazer uma radiografia do tórax e a técnica de radiologia disse-lhe que achava que havia por ali uma manchinha qualquer. O Sousa entrou em pânico e, nesse mesmo dia, atirou com o maço de cigarros para o lixo e, até hoje, nunca mais fumou – ou melhor, ainda fumou um cigarro no dia 1 de Dezembro de 1977, data em que festejámos o primeiro aniversário da Marta com uma almoçarada no Algueirão, e por minha grande insistência: “Ó Arminda, deixe lá o homem fumar um cigarro que a neta faz um ano!” Afinal, a tal manchinha não correspondia, felizmente, a nada de patológico, mas o Sousa aproveitou o susto e deixou definitivamente o tabaco. Tinha 46 anos. Eu já fumo há mais anos do que os anos que o meu sogro fumou. Claro que isto não é nenhuma competição, mas penso que talvez um susto daqueles me ajudasse a abandonar o tabaco.. E daí…. A verdade é que já tive alguns sustos – todos eles imaginários, mas não menos assustadores por isso – e nenhum deles me levou a desistir. Pelo contrário, não há nada melhor para abafar um grande susto do que fumar um cigarrinho. Era o que fazia quando tinha as minhas grandes crises de extrassitolia, por exemplo, ou quando, de súbito, a angústia me apertava a garganta – como adiante se verá.
Claro que, sob o ponto de vista da sua saúde, a decisão de deixar de fumar, foi uma boa decisão para o Sousa. Hoje, o pai da Mila já ultrapassou os 70 anos e tem uma saúde e um vigor invejáveis. Em contrapartida, há mais de vinte anos que não tem o prazer de fumar um cigarrinho. E é este um dos grandes problemas da nossa civilização judaico-cristã: a oposição entre vício e prazer. Sejamos claros: a geração dos meus pais (e não só…) considerava, por exemplo, o sexo um vício; ainda hoje oiço algumas doentes minhas dizer que os maridos “têm muito vício”, querendo significar que os homens gostam bastante de ter relações sexuais. Afinal: o sexo é um vício ou um prazer? Bem sei que estou a forçar a nota e, continuando neste tom, acabo por estar a defender, por exemplo, a toxicodependência e o alcoolismo – ambos vícios e prazeres, ou só vícios, ou só prazeres? Mas vocês percebem o que eu quero dizer…
Grandes discussões que eu tinha com o Sousa nos tempos do PREC, mais precisamente no chamado Verão quente de 1975. Os fins de tarde no parque de campismo, eram passados com essas discussões sobre a política corrente. Nessa altura, o Sousa comprava o Diário de Lisboa e eu, o República, claro. E os que se lembram desses tempos sabem o que isso queria dizer: o Sousa simpatizava com o Cunhal e eu nadava em águas mais esquerdistas. Apesar de serem discussões pacíficas, a coisa, por vezes, parecia deitar lume porque eu só costumo ficar satisfeito quando consigo que o meu oponente concorde comigo. Confesso que acho que isto é um dos meus defeitos e sei que estou muito melhor, mas todos os que já discutiram comigo sabem que, nisso, eu sou um chato e só largo a presa quando a outra pessoa acaba por concordar comigo, por exaustão, por convicção ou, pelo menos, para que eu me cale de vez. Às vezes, discutia e mantinha uma determinada posição (mesmo discordando dela), só pelo prazer de discutir, de argumentar, de fazer valer os meus argumentos. Enfim, mais um prazer – ou um vício?…
Essas discussões com o Sousa, no entanto, nunca afectaram as minhas relações com os pais da Mila, que sempre foram as melhores. Se, no princípio, eles tiveram receio que o casamento apressado pusesse em risco o futuro da Mila, como brilhante aluna de Medicina (no liceu, a menina Mila dispensou sempre dos exames…), os factos vieram comprovar que nós éramos capazes de estudar, trabalhar e educar os filhos, tudo simultaneamente, e ainda nos sobrava tempo para a tal procura da Verdade. Mas é justo dizer-se que o Sousa e a Arminda estiveram (e estão) sempre prontos a ajudar-nos quando era preciso, na medida das suas possibilidades, e de um modo discreto e sem pedirem nada em troca, a não ser a satisfação de nos verem felizes.
E todos ficaram felizes quando, em Outubro de 1977, Portugal passou a contar com mais dois médicos, que adoptaram os nomes clínicos de Dr. Artur Couto e Santos e Dra. Emilia Couto e Santos.
O quinto e o sexto anos de Medicina foram os mais trabalhosos de todo o curso. A eles dedicámos longas e penosas horas de estudo que, no entanto, deram os seus frutos.
E os frutos foram, no meu caso: 12 valores a Pediatria, 13 a Infecto-Contagiosas, Urologia e Cirurgia II, 14 a Cirurgia Cardiotorácica e Cirurgia Vascular, 15 a Otorrinolaringologia, 16 a Medicina I, Medicina II, Medicina III e Cirurgia III, 17 a Pneumotisiologia e 18 a Psiquiatria. Média final do Curso: 15 valores, a mesma média da Mila. Nada mau, para um estudante-trabalhador, não acham?…
Já repararam na nota de Psiquiatria? Foi a minha segunda melhor nota de todo o curso de Medicina (a primeira foi a do tal exame feito após a noite em claro, a embalar o Pedro, lembram-se?). A Psiquiatria entusiasmou-me – ou terá sido o professor Dias Cordeiro que, tendo assimilado o espírito do momento político do país, deu à cadeira de Psiquiatria um cunho muito pessoal? Por uma razão ou por outra, não faltei a uma única aula e participei em todas com o vigor que punha em tudo o que gostava. As aulas eram sessões de discussão de temas em grupo. Éramos uma turma relativamente pequena; sentávamo-nos em círculo e discutíamos o que nos vinha à cabeça, sempre com a moderação do professor. No final do semestre, não houve teste, nem exame, nem nada disso. Fomos todos ao Quarteto ver o famoso “Voando sobre um ninho de cucos”, do Milos Forman e, depois, o professor convidou-nos a fazer um texto sobre o filme e a apresentá-lo à turma. Nessa altura, eu andava armado em anti-psiquiatra. Tinha descoberto o David Cooper e o Ronald Laing e comprara todos os livros deles que havia no mercado nacional: “A Decadência da Família”, do Cooper, e “O Eu Dividido”, “A Psiquiatria em Questão” e “A Política da Família”, do Laing. Dentro da mesma área, lera ainda “A Revolução Sexual”, do Reich, para além da “Psicopatologia da Vida Quotidiana do Freud”. Baralhei na minha cabeça todas estas leituras, misturei-as com a interpretação do Jack Nicholson naquela espécie de inadaptado social, internado num asilo de loucos e escrevi um texto panfletário, intitulado “A Atitude da Sociedade perante o Doente Mental”, que me valeu 18 valores na cadeira de Psiquiatria!
A propósito de filmes importantes vistos em 1976 e 1977. Além do “Voando sobre um ninho de cucos”, lembro-me, também do escatológico “WR – Mistérios do Organismo”, do jugoslavo Dusan Makavajev e que era uma espécie de homenagem às ideias do Wilhelm Reich sobre a sexualidade, bem como “Um Filme Doce”, do mesmo realizador, cuja cena final mostrava dois amantes deitados numa cama de açúcar e em que ele começava a comê-la, literalmente, dando-lhe dentadinhas nos ombros e mastigando-lhe a carne com evidente agrado. Outros filmes da época: “História de Adéle H.”, do Truffaut, “Novecento” e “O Último tango em Paris”, do Bertolucci e ainda “Casanova”, do Fellini. Os realizadores europeus continuavam a dominar.
Quanto a livros, a Psiquiatria era um dos temas preferidos e, para além dos que já citei, li ainda, entre 1976 e 1977: “A Criança Atrasada e a Mãe” e “A Criança Doente e os Outros”, da Maud Mannoni, “Psicologia de Massas e o Fascismo” e “Escuta Zé Ninguém”, do Reich, “Chaves para a Anti-Psiquiatria”, da Chantal Brosseur, e “Acerca da Psicologia do Inconsciente”, do Jung.
Mas andava, também, um pouco fascinado com os fenómenos inexplicáveis e li, por exemplo, “Os Extraterrestres na História” e “O Livro do Mistério”, do Jacques Bergier, “O Livro do Misterioso Desconhecido”, “O Livro dos Senhores do Mundo” e “O Livro dos Mundos Esquecidos”, do Robert Charroux, “Ritos Estranhos do Mundo”, de Jacques Marcireau, “Os Segredos da Atlântida”, de Andrew Thomas, “O Mistério do Triângulo das Bermudas”, de Richard Winer, e “As Civilizações das Estrelas”, de Marcel Moreau. Tenho a impressão de que andava à procura de Deus. Não o encontrei, no entanto e depressa me fartei deste tipo de leituras.
Descobrira, entretanto, o prolixo e verborreico Henry Miller e devorei “Sexus”, “Plexus” e “Nexus” (não obrigatoriamente por esta ordem), “Trópico de Cancer” e “Trópico de Capricórnio” e ainda “Sexo em Clichy”. Todos lidos em voz alta para a Mila, que era um hábito que mantivemos durante alguns anos e que servia para acabarmos por ler os mesmos livros simultaneamente; eu lia meia dúzia de páginas, a Mila lia outra meia dúzia e assim sucessivamente. Convenhamos que poupávamos tempo e estávamos sempre a par no que respeita à Cultura. Ainda hoje gosto de ler em voz alta, para que a Mila possa ouvir e tomar conhecimento das coisas ao mesmo tempo que eu, embora essa prática já não seja tão frequente. Mas naquela altura era sempre assim: o Artur e a Mila, até no que respeita aos livros, faziam tudo em conjunto.
Outro autor que descobrimos nesses tempos foi o Gabriel Garcia Marquez e logo ficámos apaixonados pela sua escrita multitudinária. Foi então que lemos, por exemplo, “O Enterro do Diabo”, “A Incrível e Triste História de Cândida Erendira” e “Ninguém Escreve ao Coronel”.
Mas não pensem que as minhas leituras eram só cultura. Também comprei, li e utilizei os conhecimentos de um livrinho chamado “A Reparação de Móveis”, que nos ajudou a alguns trabalhos de carpintaria verdadeiramente fantásticos. Construímos, por exemplo, uma pequena estante, com várias prateleiras e duas gavetas, que pintei de vermelho; depois, a Mila desenhou e pintou, numa das gavetas, a Mafalda, do Quino. Era a estante da Mafalda e durante muitos anos, no quarto dos miúdos, serviu para eles guardarem os seus livros da Anita e do Astérix.
Eu acabei o Curso de Medicina no dia 12 de Outubro e a Mila no dia seguinte. Ao reler o que escrevi até agora nestas minhas memórias, o curso de Medicina quase que parece algo secundário na minha vida. Parece que o fui fazendo sem grande convicção enquanto, no centro das atenções, estava a escrita, a política, a literatura, a tal procura da Verdade. Claro que não é bem assim. O curso era muito importante para nós; no fundo, nós sabíamos que, mais tarde ou mais cedo, a Medicina acabaria por ser o centro da nossa vida. Mas, meus amigos, entre os 18 e os 25 anos aconteceram-nos tantas coisas, descobrimos tantas coisas, tantas coisas aconteceram à nossa volta que, sinceramente, o curso foi apenas mais uma delas. E, devido à minha condição de estudante-trabalhador, nunca fiz uma grande vida de estudante, passeando pelos corredores do Hospital, bebendo cafés no Toxinas, participando nas reuniões associativas ou frequentando a Cantina Universitária. Ia ao Hospital quando precisava mesmo de ir, assistia às aulas que tinha mesmo que assistir e o resto era estudar em casa, socorrendo-me dos caderninhos de apontamentos que a Mila me fazia. Talvez por isso mesmo, não tenho grandes recordações dos professores e não posso dizer, por exemplo, que Fulano foi um verdadeiro mestre em Anatomia ou que as aulas de Sicrano eram sempre um espectáculo. Lembro-me bem das aulas de Histologia do Dr. Paes de Sousa, sempre eloquente e provocador (ainda hoje), recordo as aulas loucas do Professor Halpern (o que tal que nos deu 19 valores), que nunca sabia onde ficava o interruptor da sala ou onde raio é que deixara o giz ou o apagador e escrevia fórmulas desenfreadamente no quadro, ao mesmo tempo que falava sem parar, lembro-me ainda das aulas de Anatomia Patológica do Professor Horta, sempre muito concorridas e interessantes, da sacanice da Dra. Estela que me atrapalhou de tal maneira no exame de Medicina II, que foi a única a cadeira cujo exame tive que repetir, e pouco mais.
Na noite de 13 de Outubro, fomos festejar a licenciatura para o Restaurante Sol Mar: eu, a Mila, o Zé, a Mizé, a Luisa e o Jorge. A irmã da Mila casara-se com o Jorge em Dezembro de 1976. Foi o segundo casamento a que assisti. Depois desse, só voltei a assistir a uma cerimónia semelhante, quando o Pedro se casou, 22 anos depois... A Luisa e o Jorge estavam com 21 anos e começaram a acompanhar-nos com mais frequência. Foi um jantar de arromba! A cerveja foi à discrição, num total de 88 escudos, mamámos 260 escudos de costeletas, 240 de caril de frango e 280 de bifes na grelha, rematando com a exorbitância de 50 escudos em cafés… Quer dizer, com a gorjeta, pagámos mil e cinco escudos pelo jantar! Nunca nenhuma refeição nos tinha custado mais que mil paus! Ficámos um pouco ralados mas, um dia não são dias, e nós tínhamos acabado o curso, caramba!
No dia 28 de Outubro, teve lugar outro grande jantar, mais precisamente um jantar organizado pela redacção do Telejornal, simultaneamente para festejar a minha licenciatura em Medicina e para, de algum modo, a minha partida das lides jornalísticas. Claro que isto ainda não estava definitivamente decidido, já que eu, ainda na dúvida do que queria fazer, pedi uma licença sem vencimento por dois anos – exactamente o tempo que demorava o meu estágio, o chamado Internato de Policlínica. No entanto, parecia evidente que a RTP não me ia conceder tanto tempo de licença sem vencimento e, sinceramente, eu já andava um bocado farto das guerras televisivas permanentes.
O jantar – que acabou por ser de despedida – foi no Restaurante “O Jacinto”, ao Campo Grande e contou com a presença de cerca de 50 jornalistas da televisão. Embora possa ser um pouco fastidioso - e porque estas são as minhas memórias – acho que vale a pena referir quem foi ao meu jantar de despedida: António Esteves, José Alberto de Sousa (vi-o, anos depois, na televisão de Macau), Fernando Balsinha (ainda continuará a assessorar políticos?), Nuno Vasco, Adriano Gouveia, Helder de Sousa (especialista em rallies), Francisco Maninho (que realizava telejornais), Nuno Coutinho (um fumador selecto), Herculano Carreira (deu-me um grande apoio na redacção de notícias internacionais), Manuel Ricardo, Luís Marinho e Lucinda (trabalhavam com as notícias que chegavam via Eurovisão), Bessa Tavares (foi depois chefe do desporto), Mário Cardoso, Avelino Rodrigues e Cesário Borga (destes três já falei, mas só tenho visto o Borga, como correspondente da RTP em Espanha), Pedro Luís de Castro (que tinha uma grande mota e que foi ao Algueirão almoçar connosco; toda a gente tirou slides em cima da máquina, incluindo o Pedro), António Luís Rafael (vi-o, em tempos, a fazer reportagens de Moçambique), José Galvão (antigo lançador do peso, homem da câmara, sempre com histórias engraçadas para contar, como da vez em que convenceu uma série de peregrinos de Fátima a entrar no carro de exteriores da RTP e encostarem o peito a uma câmara, pensando que estavam a fazer um rastreio de tuberculose), Joaquim Vieira (de quem já falei), Ana Diniz, José Alberto Machado, José Eduardo Moniz (um dos grandes responsáveis pelo actual telelixo – como consegues dormir à noite, pá?), Pedro Mariano (que vi, há tempos, como correspondente da RTP em França), Armando Carvalho (que também foi chefe de redacção e que, embora fosse conotado com a direita, desenvolveu comigo uma relação de quase aluno-professor, em que ele era o professor, claro), Botelho da Silva, Adriano Cerqueira (um fumador com classe, sempre com o cigarro quase ao nível dos lábios e que continua obcecado pela fórmula um), Raul Durão (que penso que trocou o jornalismos pela apresentação de programas), António Santos (o desgraçado que estava a ler o Telejornal quando o capitão Clemente entrou por ali dentro no 25 de Novembro e que, anos mais tarde, fez “As longas noites de FM”, assim uma espécie de Pão Comanteiga bem comportado), José Manuel Marques (o tal chefe de redacção que me ensinou a escrever notícias para televisão), Bessa Ferreira, Fernando Midões (que também fazia crítica de teatro e que fumava que nem uma chaminé), Saint-Maurice (um repórter da velha guarda), José Ladeiras, Manuel Freire, Manuel Varela, Sarsfield Cabral (que continua a explicar-nos o inexplicável, economicamente falando, claro), João Facha, Mário Rui, Júlio Fernandes, Carlos Franco, José Teles (que depois foi para o Jornal Novo, e a quem apelidava de “o perigoso José Teles”, talvez porque desprezasse “Os Contos do Gin Tónico”, argumentando que eram uma cópia de um outro livro de um qualquer obscuro escritor francês), Luís Alberto Ferreira (o tal que me levou, ao engano, para o Jornal de Notícias), Filinto Lapa, Carlos Albuquerque (com umas barbas que faziam lembrar as do Carlos Antunes do PRP, que era um amador de fotografia e, literalmente, comia os cigarros, conduzia um Saab do princípio do século passado e, mais tarde, foi correspondente da RTP em Angola) e Ana Rosado (que trabalhava na Documentação e me ajudou bastante nas pesquisas para a elaboração de algumas notícias internacionais)..
Perante todos estes convivas, li um discurso de despedida que era um autêntica provocação. Transcrevo:

“Alguém disse que o jornalismo e o Estado são as duas grandes mafias da actualidade. Eu diria que constituem uma única mafia. É através dos órgãos de informação que o Estado nos tenta fazer acreditar que faz o que nós queremos.
Com efeito, a informação é um dos principais sustentáculos do Poder – e isto, tanto o jornalismo situacionista, como o que se declara da Oposição, tanto nas sociedades ocidentais, como nas de Leste.
As organizações políticas limitam-se a lutar pela reforma da sociedade – mesmo as que se dizem anti-reformistas. Nenhuma delas sugere uma mudança radical do sistema. O que não é para admirar, já que tudo o que seja organização, cheira a burocracia. Exigem-se mais infantários para armazenar as crianças, mais asilos para encarcerar os velhos, melhorias salariais para que as pessoas comprem o que não lhes faz falta, direito ao trabalho quando ainda não está provado que o trabalho seja essencial.
Vejam bem que as organizações políticas que não estão no Poder até têm o descaramento de exigir que o governo caia, que os ministros se demitam, que o presidente se vá embora. E para quê? Para que sejam substituídos por outros governos, outros ministros e outros presidentes..
É que não há governos bons e governos maus. Há governos.
E se há governo, sou contra.
Quem facilita e incrementa esta grande confusão é a imprensa. Há jornais que apoiam o Poder e há jornais que o atacam, em prol de outro Poder. Nenhum põe em causa o sistema. E querem-nos fazer crer que os prédios são melhores que as pequenas construções, que os automóveis são preferíveis às bicicletas, que é necessário reservar alguns espaços para parques infantis e por aí fora.
É também graças aos órgãos de informação que se continua a confundir ciência com tecnologia. As viagens espaciais – tal como são realizadas na nossa civilização – não traduzem um avanço da ciência mas da tecnologia. E as suas intenções são as mesmas, quer a Este quer a Leste – maior poder. E com o avanço da tecnologia, a ciência recua.
É por isso que o jornalismo é o principal sustentáculo do Poder, do Estado burocrático e opressor, da ditadura da tecnologia e do previamente planeado sobre a ciência e a espontaneidade, da ditadura do sistema sobre os homens..
Quem quiser continuar a ser jornalista, que continue.
Mas que divulgue como e quando se plantam as alfaces, como se livram as hortas das pragas de gafanhotos, lagartas e lesmas, como se torna fértil uma zona árida sem recorrer a produtos químicos, como se toca flauta e bombo, como se conversa com as pessoas, como se vive. Sobretudo, que ignore o Poder e os seus lacaios – tanto os que o exercem, como os que gostariam de o exercer..
Como previa, a esmagadora maioria das pessoas ri-se – o que vem confirmar a minha tese. Não levais isto a sério – o que prova que tenho razão no que digo.
Resta-me acrescentar que espero que, um dia destes, os jornalistas constituam uma espécie em vias de extinção. Paulatinamente, serão substituídos pelos mensageiros da correspondência colectiva.”

Que tal? Digam lá se eu era ou não era, já naquela altura, um verdadeiro militante anti-globalização?
Basicamente – e retirando os adornos radicais daquele discurso – continuo de acordo com o escrevi então. Penso, de facto, que os órgãos de informação, os media, como agora se chamam, são uma arma do Poder, nomeadamente das multinacionais, que servem para criar, nas pessoas, necessidades que, de facto, elas não têm. E depois, são os jornalistas que decidem que notícias devem e não devem ser divulgadas, que histórias merecem ou não merecem ser investigadas, são eles, afinal, que fabricam a realidade. Como já alguém disse: se não passou na televisão (ou na rádio, ou nos jornais) é porque não aconteceu.
A minha carreira jornalística estava, portanto, terminada. Em Janeiro de 1978 começava o meu Internato e, no mês seguinte, recebia uma carta da RTP dizendo aquilo que eu já sabia oficiosamente: que o meu pedido de licença sem vencimento fora recusado pela administração. Nessa carta, dizia o capitão José Águas, presidente da Comissão Administrativa:

“Embora seja de lamentar a perda da colaboração deste jornalista, não pode a RTP conceder uma licença sem vencimento por 2 anos, pelo que indefiro a pretensão”.

E o Armando de Carvalho, então editor-chefe interino, acrescentou, à mão, o seguinte:

“Lamento também que a situação não tenha tido outra saída. Por mim, considero que não beneficiaremos nada com ela, no campo profissional.”

E pronto, toda a gente lamentava a minha saída, menos eu. De súbito, ao começar a ir diariamente para o Hospital D. Estefânia, vestir a bata, colocar o estetoscópio ao pescoço e ver doentinhos, percebi que, para mim, o jornalismo tinha acabado.
Mas voltemos um pouco atrás, para recordar a nossa vida na Vivenda Buques e Smites que, invariavelmente, era sempre um fartar de rir. Foram muito bons os anos vividos em comunidade com o Zé, a Mizé e a Joana. E muitas vezes, a casa enchia-se com a visita da Luisa e do Jorge e de alguns dos seus amigos, tudo malta com cerca de 20 anos, e também do meu irmão Paulo, então com 16 anos, e da minha irmã Bela, com 15. O nosso quintal dava para muitas brincadeiras, para além da reforma agrária, propriamente dita, que ia de vento em popa. A certa altura, fartámo-nos da relva do jardim, que era muito áspera e decidimos tirá-la toda, para a substituir por relva mais macia. Projecto frustrado. Não só a sacana da relva tinha raízes até aos antípodas, como a nova relva que semeámos nasceu torta e nunca se endireitou. Mas não fazia mal – o que interessava era cavar, cavar, poder popular!
Foi em 1977 que começámos a adoptar alguns animais para alegrar a família. O primeiro foi um gatinho bebé, a quem o Pedro deu o nome de Nuno; depois, um outro gatão enorme, vadio, mau como as cobras, e que nos mijava os sofás permanentemente, apesar (ou por causa) dos biqueirões que eu lhe dava com as botas de salto de prateleira, e a quem o Pedro deu o nome de Carlos (carregando muito no erre), em homenagem ao grande Carlos Lopes, que dominava o orgulho nacional. Mais tarde veio o galo Badalo, a galinha Balbina e o pato Manfredo. E ainda tivemos uma malograda cadelinha, chamada Ginja, que acabou por morrer, penso eu, por incúria nossa, porque nunca a levámos a um veterinário (teria sido esgana ou atropelamento?). E não posso esquecer, também, a gata Panqueca, uma tarada que estava permanentemente com o cio e que, por causa disso, subia para o telhado através da janela do sótão e, depois, não conseguia regressar sem a ajuda de um de nós, sempre munido de uma luva de jardineiro, por causa das suas arranhadelas desesperadas. Foi da Panqueca que nasceram mais dois gatos: o Mascarilha e o Gin Tónico. Enfim, era um verdadeiro “Fungagá da Bicharada” – disco do José Barata Moura que o Pedro (e nós todos, por acréscimo) sabia de cor e salteado.
Às tantas, lembrámo-nos de fazer um cartão de visita comunitário que dizia, em cima, “Vivenda Buques e Smites”; depois, seguiam-se os nomes todos: Artur, Mila, Pedro, Marta, Zé, Mizé, Joana, Badalo, Balbina e Manfredo, sem distinção entre humanos e restantes animais.


Setembro 1977 – Zé com o Nuno ao colo, Mizé, com a Joana, eu e o Pedro, Mila com a Marta – todos no quintal do Algueirão.

Quando o Pedro fez 4 anos, um dos avós ofereceu-lhe um carrinho de pedais. Foi, de facto, o nosso primeiro carro. O Zé já tinha carta de condução, mas nada de carro e nós, nem carta tínhamos, quanto mais carro. Penso que todos nós experimentámos o carrinho de pedais do Pedro, quintal abaixo, quintal acima.
Qualquer coisa servia para nos divertirmos. O esquentador estava avariado? Desmanchava-se para arranjar mas, entretanto, aproveitava-se para tirar uns slides com a cobertura do esquentador a servir de armadura e uma panela na cabeça
Outro dos nossos divertimentos era a visita à Feira de S. Pedro de Sintra, onde comprávamos sementes, bolbos e outros artigos para a nossa reforma agrária.
E continuava a correspondência com o Lemus. No princípio de 1977, pouco depois de termos conseguido que o Pereira Velez saísse da cave, escrevi esta carta ao Lemus:.

“Calço 42 mas não tenho culpa. Acredito que a situação é insustentável mas não apresento nenhuma proposta alternativa. Se todos corrêssemos atrás de um só, o tipo cansar-se-ia pela certa. Portanto, é melhor que cada um corra atrás do seu fantasma, ou vice-versa. Podes mandar a caixa das cassetes que na volta do correio eu pago. Acredita que pago. Hoje é Janeiro. Dizem-me que amanhã já é Fevereiro. Na verdade, estas realidades são efémeras.
O bolor cresce nas nossas paredes mais ou menos com o triplo da velocidade de crescimento das nossas criancinhas, que são três: a 1ª, a 2ª e a 3ª. Quando o bolor cresce, cortamo-lo com a tesoura da poda, ou a pesoura da toda. Quer dizer: levamos as paredes ao barbeiro. O casal cá de baixo acabou por desistir de tentar coexistir e foi-se embora. Perdemos um casal de burros, ganhámos uma cave com muito bolor e nenhuma banheira.
Se a vida aí é chata e aqui também é, conclui-se que a chateza está dentro de nós, não na vida.
Será que os anões só recebem salário mínimo? Foram atropelados na auto-estrada do norte três indivíduos de nome Manuel Fernandes, sendo um pai, outro avô e outro filho. Qual o nome do primeiro? Já pensaste que nunca serás capaz de subir o Quelimanjaro? Que serás impotente perante a rainha do Sabbat? Que és totalmente ignorante no que diz respeito ao dialecto dos bijagós? Já reparaste que, afinal, nada sabes, nada fazes, nada és?
E que tal um gin tónico para abrandar esta amargura existencial? Escreve – mas sê mais verborreico. Essa tua mudez torna-me ciclónico.”

Escrever e receber cartas destas foi uma das melhores coisas que me aconteceram. Infelizmente, o hábito foi-se perdendo com os anos e, hoje em dia, é raro receber uma cartinha que tenha graça…
Não me lembro em que data calhou o Natal de 1977, mas nele também participaram, além dos Buques e Smites, a Luisa e o Jorge, o Paulo e a Bela. Como já disse, a nossa troca de presentes era sempre acompanhada de um discurso e penso que vale a pena transcrever algumas partes do meu discurso desse ano:

“Comecemos pelo Pedro, nobre jovem – pioneiro dos Buques e Smites, sempre connosco desde a primeira hora, apanágio da futura juventude subversiva, capaz de inverter e destruir as instituições. Para o caso de se sentir na obrigação de fugir para as montanhas, para não ser apanhado pelas várias polícias do pensamento, talvez necessite deste objecto para enxergar os seus perseguidores…
(E o Pedro recebia, como presente, uns binóculos)
Passemos ao casal Pinheiro. É do conhecimento geral que grande parte da existência recente do casal tem sido dedicada à confecção de objectos decorativos/artísticos. No entanto, esse facto poderia passar despercebido a quem, distraidamente, visitasse esta santa casa, omitindo o sótão – verdadeiro santuário da tinta de esmalte Alvamar, Robbialac e outras. Há que evitar essas imperdoáveis omissões, assinalando o sótão e a sua utilidade com o devido relevo. Daí este presente.
(E o Zé e a Mizé receberam um cartaz feito por nós e que dizia “Aqui pinta-se”)
A Mila que, como sabem, é minha esposa, receberá, como não poderia deixar de ser, o lote mais numeroso de presentes. Isto sem desprimor dos restantes presentes, até porque a quantidade não corresponde, forçosamente, à qualidade. O primeiro desses presentes foi adquirido na feira de S. Pedro e, tudo indica ter sido já utilizado algumas vezes, quem sabe por alguma jovem receosa, para transportar a primeira urina da manhã.
(E a Mila recebia o primeiro dos muitos frascos de vidro que lhe ofereci nesse Natal; foi outra das nossas manias – os frasquinhos de vidro, coloridos, que depois alinhávamos em prateleiras de pinho feitas por nós)
É a vez da dupla Jó-Lisa – jovem casal preocupado com questões de descendência ( a irmã da Mila bem tentava engravidar, mas a coisa não estava fácil). Caberá aqui recordar que problemas idênticos surgiram já ao longo da História portuguesa. Cite-se, apenas, o caso de D. Fernando que, incapaz de fecundar D. Leonor, provocou o Interregno. Mas há males que vêm por bem e, se não fora o Interregno, D. João das Regras não teria ficado na História. Pois, nas noites em que este jovem casal se sinta tentado a cismar na questão, sugerimos que pegue no presente que se segue.
(E ambos receberam um puzzle)
O mancebo Paulo, meu fraterno irmão, está a propedeutizar-se, como sabeis (a frequentar o chamado ano Propedêutico, agora substituído pelo 12º ano, esclareça-se, e que era ministrado através da televisão). Dia a dia, sentado no sofá, olhos postos no écran, bebe a sabedoria exalada das bocarras professorais e consta que, com todo o seu apego ao estudo, daqui a uns três anos, deverá frequentar o 4º ano propedêutico. O presente que se segue pretende constituir uma ajuda, ainda que magra, para a aquisição dos famosos textos de apoio.
(E o Paulo recebia dinheiro – infelizmente, não registei quanto; seria interessante saber…)
A Bela, minha excelente e eficaz irmã, adora as ciências quintanistas, razão pela qual se tornou profissional (queria eu dizer que ela tinha chumbado no 5º ano do liceu, seguindo as pisadas do irmão mais velho, afinal). Apesar de não possuir textos de apoio, talvez necessite de algum livro que melhor clarifique a sua mente.
(E a Bela recebia, também, dinheiro)
Pela primeira vez, também as meninas presenciam, embora com total desprezo, uma cerimónia como esta. O seu total desinteresse merece, da nossa parte, esta única prenda.
(E a Marta e a Joana recebiam bonecos confeccionados por nós)”

E assim prosseguia o discurso, ao longo de setenta e nove presentes, todos precedidos de um pequeno texto – presentes de onde se distinguiam, para além dos frasquinhos de vidro, potes, vasos, tijolos e pedras pintadas por nós, brinquedos vários para o Pedro, um letreiro que dizia “Aqui não se pinta”, para colocar à porta do quarto do casal Pinheiro, livros, etc., etc.
Com dois novos médicos e menos um jornalista, chegava ao fim o ano de 1977. Para mim, a escrita ia conhecer um período de interregno, no que respeita à publicação dos meus textos. Embora continuasse a escrever, só três anos depois, com o Pão Comanteiga, os meus textos seriam divulgados, dessa vez, através da rádio.
Mas isso são outras histórias…



 

 

 



Próximo capítulo: "Os meus livros" (1978/1979)

 

Actualizado em: 13 de Janeiro 2003
O MELHOR DO PÃO COMANTEIGA
Textos seleccionados do Pão
CROMOS DO COISO
Cromos antigos para a troca e sites recomendados

O MELHOR DO PAU DE CANELA
Textos selecionados deste jornaleco de 1985

HISTÓRIAS POUCO CLÍNICAS
...mas muito cínicas
O MELHOR DO UMA VEZ POR SEMANA
Textos seleccionados deste programa sexual de 1986

COISAS DO COISO
textos e bonecos seleccionados que sairam no Coiso em papel

CAUSAS DO COISO
Como tudo começou

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