14. Os meus livros (1978/1979)
Apetece-me, agora, fazer uma pausa, acender um cigarro,
saborear um whisky e dizer-vos que nunca esperei estar tão
entusiasmado com as minhas memórias como estou. Gostava
até de ter uma daquelas bolsas que o Ministério
da Cultura dá para um tipo ficar em casa dois anos
para escrever um livro. Infelizmente, os meus doentes ocupam-me
boa parte do dia e, na prática, só escrevo
alguma coisa ao fim de semana, embora passe toda a semana
a pensar no que vou escrever, a relembrar factos, a imaginar
frases e a escrever pequenas notas em pedaços de
papel, para que a memória me não atraiçoe
na altura de escrever.
Já tinha pensado escrever as minhas memórias
várias vezes, mas ainda não tinha arranjado
a motivação necessária para meter mãos
à obra. À noite, antes de adormecer, tenho
muitas vezes o hábito de pensar coisas que gostava
de escrever. Enquanto o sono não chega – e,
às vezes, não chega mesmo – vou arquitectando
textos mentalmente. Nunca me agradava, no entanto, a volta
que dava aos acontecimentos que ia recordando. Até
ao dia em que me lembrei do primeiro cigarro. Achei que
o tabaco, que me acompanha desde os 13 anos, poderia ser
um bom pretexto para desenvolver a coisa. Aqui chegado,
estou satisfeito com o resultado, mas sobretudo com o gozo
que me está a dar escrever.
Publicar um livro sempre foi um dos meus sonhos, que acabei
por realizar com as “Cinquenta Histórias pouco
Clínicas mas muito Cínicas”, em 1997,
embora esse fosse um livro de circulação restrita
entre a classe médica, devido à especificidade
das histórias ali contadas. Mas já tinha feito
várias tentativas antes. Escrevi, por exemplo, um
livro intitulado “Os Inimigos da Ordem Pública”,
que cheguei a enviar para a Bertrand em 1978 e que, felizmente,
foi recusado com uma daquelas cartas simpáticas em
que o editor diz que “o nosso plano editorial se encontra
totalmente preenchido; creia, no entanto, que apreciámos
bastante o seu oferecimento”, blá, blá…
E digo que o livro foi, felizmente, recusado, porque, de
facto, não prestava. Chamei-lhe “Os Inimigos
da Ordem Pública” e pretendia ser um romance-parábola
sobre os acontecimentos após o 25 de Abril. Já
o reli algumas vezes e, embora lhe ache graça neste
ou naquele ponto, penso que é um projecto falhado.
Andava maravilhado com a escrita do Boris Vian, do “Arranca
Corações”, “O Outono em Pequim”
e a “Espuma dos Dias”, e apeteceu-me escrever
uma coisa assim parecida. O livro começava exactamente
com a nossa mudança para o Algueirão, eu era
o Rodrigo e a Mila, a Almendra e o livro começava
assim:
“Depois do golpe militar, Rodrigo decidira instalar-se
numa povoação for a da cidade, onde pudesse
desfrutar de uma calma e de um sossego que até aí
desconhecera.
Teve que esperar uma semana inteira porque as condições
atmosféricas não permitiam a mudança.
Ao oitavo dia, a chuva passou e Rodrigo telefonou à
empresa de camionagem. Meia hora depois, um enorme camião
descoberto surgia na esquina, precedido da banda filarmónica
do bairro, que vinha prestar-lhe as últimas homenagens.
Emocionado, Rodrigo assistiu da janela do seu pequeno apartamento,
já desprovido de móveis, ao desfile dos músicos
que, num compasso esplêndido, interpretavam algumas
marchas apropriadas ao momento. Agradeceu-lhes com um aceno
furtivo e abriu a porta aos carregadores, que logo começaram
a transportar os móveis escada abaixo, não
esquecendo de esmurrar as esquinas da estante contra o corrimão
e de raspar a tinta do roupeiro ao longo das asperezas da
parede.
Ao fim de uma hora, toda a traquitana do costume estava
atafulhada no enorme camião, enquanto os dois carregadores
faziam prodígios de equilíbrio sobre o frigorífico
ou a mesinha de cabeceira.
O camião arrancou e Rodrigo atrás, num carro
emprestado pelo sogro que era desembargador.
A viagem durou quarenta e cinco minutos. Durante todo o
trajecto, Rodrigo, sempre atento aos acidentes da estrada,
prestava também atenção aos móveis
e utensílios que, com os solavancos imprevisíveis,
iam saltando do camião, estatelando-se em pleno asfalto,
transformados em cacos e destroços. Almendra, imperturbável,
de bloco em punho, ia tomando nota.
- Uma cadeira.
- Com essa faz cinco. À noite vamos ter que comer
caldo verde.
- O fogão. Um par de chinelos de quarto. Duas andorinhas
de feltro.”
E assim por diante. Depois, ao longo de vinte capítulos
e quase cem páginas, iam desfilando personagens mais
ou menos parecidas com os nossos heróis do 25 de
Abril: o major Deocleciano de Jesus, o tenente Judas Montenegro,
o Dr. Raul Godes (que seria o Cunhal), o professor Guedes
Rosa (que seria o Soares), o general Otlântico Silvério
de Pinho (que seria o Otelo), o general Tasco Gouveia (que
seria o Vasco Gonçalves) e outros personagens mais
ou menos relacionados com a realidade. A ideia fulcral da
trama era esta: todos eles conspiravam uns contra os outros,
de tal modo que se iam prendendo uns aos outros, deixando,
no entanto, sempre alguém em liberdade que pudesse
libertar alguns e prender outros; tudo isto ia evoluindo
para a queda do Poder por auto-degradação.
Os capítulos tinham nomes engraçados, que
nada tinham a ver com o conteúdo do capítulo,
também ao gosto do Boris Vian como, por exemplo,
“A Água não morre”, “ Cadáver
Insólito”, “Pedras Moídas”,
“Cascata Incansável” ou “Noites
Sardentas”. No último capítulo, escrevia:
“Quando Rodrigo e Almendra se levantaram naquela
manhã, já o Poder tinha caído.
Tão fraco e débil estava que o barulho da
queda não acordara ninguém.”
Em 1978, publicava-se tanta porcaria em Portugal (publicava-se?)
que estes “Inimigos da Ordem Pública”
também podiam ter sido dados à estampa. Ainda
bem que ficaram na gaveta, para eu não ficar, para
sempre, com essa mancha na minha reputação…
Apesar da recusa da Bertrand, eu não desisti. Ainda
não tinha percebido – como percebo hoje –
que as únicas histórias que tenho para contar
são as que, de facto, conheço, e não
as que invento, isto é, as histórias dos meus
doentes e a minha própria história.
E, como não desisti, avancei para outro romance,
que intitulei “A Tropa Fandanga” e que escrevi
em 1979 e que também era ao jeito de Boris Vian.
A trama envolvia dois casais burgueses, respectivos filhos
e amigos, e ainda o arcanjo Gabriel e o próprio Jesus
Cristo, em pessoa. Gosto desta parte:
“Os Costas e os Silvas eram amigos de longa data
(trinta e um de Dezembro) e, de vez em quando, promoviam
encontros, ora em casa de uns, ora em casa de outros.
Habitualmente, e mal terminavam os cumprimentos e outras
formalidades, entretinham-se a falar de banalidades.
- Vulgar. – dizia o Costa.
- O costume. – corroborava o Silva.
- Habitual. – afirmava o Costa.
- Sempre o mesmo. – confirmava o Silva.
As senhoras preferiam falar de doenças. Felizmente,
a Lélia aprendera, há poucos dias, o termo
artrose, e outro, derivado do anterior, e que era artralgias.
Foi pois sentindo um certo contentamento interior, que começou:
- Ultimamente tenho andado com umas artralgias neste joelho
que, se me sento, não me consigo levantar sozinha!
- Coitada… - comentou a Margarida Silva, com uma pontinha
de inveja.
- Pois é… mas o médico asseverou-me
que isto é tudo da artrose em último grau
que tenho já vai para uns seis meses…
A Margarida quase impou de inveja. Mas também não
tinha razão para isso. No último encontro,
fora ela que se pavoneara com a cifoescoliose e os osteofitos.
Era natural que a Lélia procurasse a desforra.
Graças a anos de prática, as senhoras conseguiam
manter conversas do género durante horas, e quase
se esqueciam dos maridos – o que também não
era difícil. Quando uma pessoa se habitua a determinada
coisa ou pessoa, acaba por se esquecer dela, a menos que
a utilize. A língua, por exemplo. Desde que nascemos
que a transportamos connosco na boca, e raramente nos lembramos
dela. E mesmo quando a utilizamos, o que acontece diariamente
quando comemos e quando falamos, não damos por ela.
É provável que certas utilizações
que algumas pessoas conferem às respectivas línguas,
lhes dêem uma consciência maior da existência
desse órgão.
Tanto quanto conseguimos apurar, tanto a Lélia como
a Margarida pouco utilizavam os maridos, pelo que é
natural que, por vezes, se esquecessem deles.
Isso permitia ao Gustavo e ao João, estabelecerem
conversas obscenas, sem que fossem incomodados:
- Sexo, gajas boas, conas. – dizia o Costa.
- Isso, isso… conas, grandes pinocadas! – acrescentava,
galvanizado, o Silva.
- E muitas gajas, boas coxas… - continuava o Costa.
- E grandes mamas e valentes cus! – não deixava
de assinalar o Silva.
Por vezes, os dois homens viam-se obrigados a falar a meia
voz, para evitar que as mulheres ouvissem – o que,
a um ouvinte dissimulado, que se tivesse insinuado discretamente
na sala, poderia provocar um riso saudável:
- Sé, gá bô, cô.
- Is, is… cô, gran pin.
- E mui gá, bô cô.
- E gran ma e valen cu.”
E assim por diante. No decorrer da história, aparece
um herói, chamado Germano que, associado a amigos
e cúmplices, acaba por tomar o Poder, também
com a ajuda da Lélia Costa que, depois de ter sido
visitada pelo arcanjo Gabriel e dele se ter tornado amante,
se transforma numa mulher livre e decidida. O livro termina
assim:
“O Germano levantou a mão direita e fez
estalar o polegar contra o pai de todos. Era o sinal. O
general Vale de Mar Rios discou os números.
- Está lá? É do Edifício Oficial?
Daqui fala um dos chefe dos revoltosos.
- Que deseja? – perguntaram do outro lado.
- Nós queremos o Poder!
- E são muitos?
- Somos montes! – respondeu o general.
Do outro lado do fio hesitaram.
- Então?! Dão-nos o Poder ou não?!
- Podem vir buscá-lo quando quiserem.
- Obrigado; com licença.
O general desligou o telefone, virou-se para os revoltosos,
que continuavam a postos e, emocionado, disse:
- O Poder é nosso! O preço da batata desce
amanhã!
E foi a apoteose. Os revoltosos ficaram de cócoras
por curtos momentos, mas logo saltaram de contentamento,
abraçando-se uns aos outros, como gostariam que os
outros se abraçassem.
A banda atacou uma marcha alegre, com vigor. Na mesa da
presidência, de lágrimas nos olhos, o Germano
agradecia as felicitações e distribuía
já algumas batatas que guardara para aquela ocasião”
Nunca cheguei a dactilografar “A Tropa Fandanga”;
mantém-se em manuscrito em três caderninhos
e penso que assim vai ficar, porque não tenho pachorra
para passar tudo aquilo a limpo. Tem algumas partes com
graça mas, no fundo, parece-me um conto à
Mário-Henrique, mas muito maior. E, como a Velha
dizia, “não sei escrever coisas compridas,
pá!”
Ainda em 1979, durante o nosso estágio de Saúde
Pública, em Armamar, comecei outro livro que intitulei
“O Tau do Vô”, ou ainda “Cazebá
Lá”. E isto merece, imediatamente, uma explicação.
Durante oito meses, vivemos em casa do meu tio José
Ricardo, em Moimenta da Beira, enquanto fazíamos
o nosso estágio de Saúde Pública em
Armamar, mesmo junto ao Douro. O filho mais novo do meu
tio tem a mesma idade da Marta (dois anos nessa altura);
chama-se Ricardo, mas ainda é conhecido pelo diminutivo
de Kiká, que era como ele conseguia, então,
pronunciar o seu nome; o avô do Kiká, o sr.
Bondoso, era um homem que gostava de caçar e, para
o efeito, tinha a competente espingarda, a quem o Kiká
chamada “tau” – daí, “O Tau
do Vô”. Quanto ao outro título, a ideia
provém da Colmeia. Certa tarde, estávamos
a estudar na cave da Colmeia, como de costume, quando entra
um indivíduo, que não devia regular muito
bem da cabeça e que, tentando fazer-se passar por
estrangeiro, se nos dirige, perguntando: “Cazebá
lá?”. Perante o nosso espanto, e fazendo muitos
gestos, ele foi repetindo a pergunta “Cazebá
lá?… Cazebá lá?”, apontando
para o fundo da sala. Finalmente percebemos que o tipo queria
saber se “a casa de banho era lá”…
- ficou “Cazebá Lá”.
Andei às voltas com este romance durante muito tempo
e, de vez em quando, voltava a ele, tentando dar-lhe uma
forma definitiva, porque achei que tinha umas ideias interessantes.
No entanto, nunca consegui acabá-lo. Contava a história
de uma família que vivia na Mansão da Selva;
havia o Jerónimo, que coleccionava tudo, a sua mulher
Lurdes, a criada Matilde, que se deitava com o patrão
e com alguns gorilas da Selva e com os caçadores
que por ali passavam, a tia Raquel que, embora tecnicamente
morta, teimava em continuar viva, apesar de já cheirar
muito mal, o avô, cujo único interesse era
partir para a caça com o seu tau, a Bárbara,
filha do Jerónimo e da Lurdes, que começava
a despertar para a sexualidade e, a páginas tantas,
um desconhecido que aparecia, vindo não sabia de
onde e pergunta: “Cazebá lá?”,
após o que se tranca na casa de banho. Havia também
uma estrada que ligava a Mansão à Cidade mas
que mudava de direcção sem avisar; uma pessoa
metia-se à estrada, em direcção à
Cidade, mas podia muito bem ir parar a outro sítio
qualquer. A coisa continuava a cheirar a Boris Vian. Transcrevo
um pedaço:
“- Ó paizinho, deixe-me ir à Cidade
amanhã.
- Nem pensar nisso! Tens tudo o que precisas aqui na Selva:
ar puro, clorofila, animais e os teus pais, o teu Avô
e, pelos vistos, a vaca da tua tia, que teima em manter-se
viva!
A Lurdes ergueu-se de repente, deixando cair um dos lados
de um dos losangos cinzentos.
- Jerónimo! Proíbo-te terminantemente de falar
assim da tia Raquel!
E, quando se levantou, levou a mão à boca,
mas falhou o gesto e acertou em cheio no olho, que logo
começou a lacrimejar e a pôr-se vermelho mas,
apesar do incómodo, Lurdes concluiu a sua exclamação,
enquanto esfregava a pálpebra contra o globo ocular
afectado, tentando diminuir o prurido.
- A pobre senhora está muito mal e há que
ter respeito pelos mais velhos!
Jerónimo não se deixou ficar e replicou:
- Respeito?!…. Falas em respeito?!… Então
e as obscenidades que a velha diz?…
Lurdes compôs o lado do losango que caíra e
confirmou:
- Infelizmente, é verdade. A embolia deve-lhe ter
afectado qualquer estrutura cerebral e ela agora sente-se
compelida a dizer obscenidades… Há mais casos
descritos… li numa revista… Há que aceitar
isso como um contratempo da grave doença que a atingiu…
Já telefonámos ao Dr. Macedo, que prometeu
vir cá o mais depressa possível, mas parece
que tem muito que fazer na Cidade. Ainda hoje falei neste
problema ao Avô, antes de ele ir para a caça.
Temos que arranjar um médico permanente na Selva.
Dando um pulinho absolutamente ridículo, não
se sabe bem porquê, Jerónimo respondeu:
- Nunca! Não quero mais estranhos aqui na Selva!
Bem basta os fulanos da ferroviária, que nunca se
sabe onde param!…
O diálogo atingia uma intensidade dramática
considerável e Bárbara temia uma das tremendas
cenas entre os pais, que terminavam, habitualmente, com
fuga de um deles para a Selva, perseguido pelo outro, de
faca de mato em punho, ante a complacência do Avô,
que limpava a carabina ou enfeixava os grigomantes no arame,
afim de os pendurar no fumeiro, como é hábito
fazer-se nestas regiões. Ao contrário de Bárbara,
Matilde adorava aquelas discussões, sobretudo quando
era o Jerónimo a fugir, pois queira dizer que o patrão
passaria a noite na Selva e ela iria ter com ele para um
serão de adultério, sob os olhos luminosos
dos bichos.”
O tom era este mas, ao fim de umas cinquenta páginas,
comecei a não conseguir dar a volta à história,
talvez porque a história não tinha volta possível
e desisti.
Os anos de 1978 e 1979 foram portanto aqueles em que tentei
mesmo escrever um livro com princípio, meio e fim
– e não consegui. No final dos anos 70 andava
mesmo apaixonado pela escrita do Boris Vian e acreditava
que um romance devia ser assim: o texto dividido em capítulos,
a estrutura tradicional de um romance, mas com acontecimentos
que destruíssem essa trama. Para outros dois projectos
de livros, só fiquei com o título e, talvez,
alguns parágrafos. O primeiro chamar-se-ia “Veneno
em copo de cristal”, e o título penso que diz
tudo – não há nada de mais clássico
que um copo de cristal, por isso, deitava-lhe veneno lá
dentro. Pois... O segundo, tinha o título contraditório
de “Memórias de um amnésico”,
e a ideia ainda me permitiu escrever alguns textos que saíram
na revista do Pão Comanteiga. Em 2001 li mais um
romance do Boris Vian, “A Erva Vermelha”, e
já não achei muita graça à coisa.
Há uns anos atrás, comecei a magicar nas minhas
memórias, mas só agora arranjei vontade de
as organizar. Ainda pensei em começar mesmo pelo
princípio, com a primeira recordação
que guardo de mim próprio, ao colo da minha avó,
os dois, fechados na varanda da casa da Rua Cláudio
Nunes, onde só morei até aos três anos.
O que estaríamos os dois a fazer na varanda, fechados?
E por que razão esta imagem ficou na minha memória?
Que acontecimento traumático fez com que ela permanecesse
estes anos todos bem nítida no meu cérebro?
No entanto, foi graças à recordação
do primeiro cigarro que consegui lançar-me na escrita
das memórias. E as coisas começaram a fluir…
Foi neste pequeno quintal que brinquei durante 10 anos,
dos 3 aos 13. Agora, olho para ele e parece-me exíguo,
mas deu para grandes partidas de futebol, sessões
de cinema, corridas de bicicleta. Lá ao fundo, junto
ao muro, o meu pai colocou uma baliza e era também
ali que se pendurava o lençol para a projecção
dos filmes. À direita, ficava a horta e até
um baloiço, onde eu ia e vinha, enquanto cantarolava
o tema da série Thunderbird.
Claro que ficaram para trás muitos
episódios que não referi, e que talvez não
sejam muito importantes. Lembro-me, por exemplo, do Campelo,
que morava no prédio ao lado, num segundo andar e
com quem eu costumava jogar batalha naval; o puto estava
lá em cima, à janela e eu, cá em baixo,
no meu quintal e eu ganhava sempre, porque ia mudando o
sítio dos submarinos constantemente. O Campelo tinha
uma irmã, chamada Célia e que foi a minha
primeira paixão platónica. Lembro-me do dia
em que a minha mãe deu à luz o Paulo, em casa,
como era tradição na família, e o meu
pai me levou a passear, avenida abaixo, certamente para
eu não ouvir as queixas da minha mãe. Lembro-me
bem da aparelhagem de som do pai do Vitinho, que tinha uma
potência para mim desconhecida, e onde nós
ouvíamos os Walker Brothers, em altos berros, cantando
“The sun ain’t gonna shine anymore”. Lembro-me
bem do Carlos Vargas, filho da porteira do prédio
do lado, e que foi o meu único amigo de infância
que apareceu no funeral da minha mãe. Lembro-me do
dia em que eu regressava do colégio e, à janela
da minha casa, estava o Paulo e a minha mãe; o Paulo
tinha conseguido, finalmente, deitar a chucha fora e eu
dei-lhe um pontapé, de modo a que ela fosse parar
ao asfalto; depois, um carro passou-lhe por cima e já
não havia mais chupeta para o Paulo. Lembro-me da
nossa vizinha de cima, a Dona Maria José, que tinha
dois filhos já muito altos e um deles, que era engenheiro,
ainda me chegou a dar umas explicações de
Matemática. Lembro-me do vendedor de tabaco, à
porta do estádio da Luz, que gritava: “Olhó
tabaco, olhó tabaco, cá está o tabaco!”
Tinha uma baliza pequenina e, à sua frente, colocava,
lado a lado, dois maços de Português Suave;
quem conseguisse marcar um golo naquela baliza, sem deitar
os maços de tabaco abaixo, levava os cigarros à
borla. Lembro-me de jantar coelho à caçadora
aos domingos, enquanto, na televisão passava mais
um episódio do Mascarilha (“Aiô Silver!”).
Lembro-me de um jogo que o meu pai manufacturava e que consistia
numa placa de madeira, onde ele pregava pregos, que faziam
as vezes de jogadores; havia uma baliza de cada lado e jogava-se
com um berlinde, impulsionado por meia mola da roupa; ao
batermos com a mola no berlinde, este ia fazendo ricochete
nos vários pregos e, por vezes, era golo! Lembro-me
de uma explicadora de francês que eu tive, na Estrada
de Benfica, e que tinha os incisivos superiores muito afastados,
pelo que ciciava o passé composé. Lembro-me
da garagem que existia um pouco abaixo da nossa casa; o
guarda da garagem era negro e fazia arranjos em calçado
– foi o primeiro negro que conheci e a minha avó
dizia que ele devia ser já muito velho “porque
os pretos nunca aparentam a idade que têm...”.
Lembro-me da vivenda onde viviam os Lobo Antunes, que eram
muitos e do bairro que foi construído em Santa Cruz
de Benfica, só com vivendas, e onde a minha mãe
sonhava ter uma casa; era um bairro com rendas subsidiadas
e, sempre que íamos às compras, ao mercado
de Benfica, passávamos por algumas dessas vivendas
ainda em construção e a minha avó atirava
para lá com uma moeda de um tostão –
com esse gesto mágico, pretendia influenciar o sorteio
da Câmara, de modo a que a casa nos saísse
na rifa, o que nunca aconteceu, claro...
Mas tudo isto se passou antes de eu me tornar fumador e
parece que só o tabaco deu consistência à
minha existência.
Ou teriam sido os 13 anos?…
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