< Voltar à homepage do Coiso
O Coiso
Memórias de um fumador
50 anos de história


15. O Internato (1978/79)

O meu último ordenado como jornalista, na RTP, era de catorze contos e quinhentos mensais; com os descontos, recebi, líquidos, doze mil quinhentos e vinte escudos. O meu primeiro ordenado como médico, em Janeiro de 1978, foi de dez mil setecentos e trinta e um escudos. Quer dizer, passei de cavalo para burro, em termos de ordenado. Aliás, este é um fenómeno interessante. Naqueles tempos, a profissão de médico tinha largo prestígio, mas os jornalistas ganhavam melhor. Hoje em dia, os jornalistas conseguiram suplantar os médicos, em termos de prestígio – e atrevo-me a dizer que se mantêm muito acima, em termos de vencimento. O problema é que as pessoas não precisam directamente dos jornalistas para nada – mas não podem passar sem os médicos. E todas as profissões essenciais para as pessoas, aquelas que têm um contacto directo com as populações, são sempre muito mal vistas: os médicos, os professores, os polícias. Eu já tinha dito isto, mais ou menos, no discurso do meu jantar de despedida, e referi-o mais uma vez, numa carta que enviei aos meus ex-colegas, em Junho de 1978. Depois de resumir as notícias que tinha visto no Telejornal da noite anterior, escrevo:

“Bem sei que estou afastado das lides jornalísticas há já alguns meses e que isso pode desfigurar a realidade. Qualquer pessoa acaba por esquecer os ensinamentos que lhe são ministrados, se não os pode por em prática. E foi após essa profunda auto-crítica que cheguei à conclusão que, apesar de tudo, o Telejornal informou o que era essencial.
Com efeito, caso não tivesse assistido a essa edição do Telejornal, ficaria sem saber que o 1º ministro assistira ao espectáculo do ballet nacional do Senegal, que o Chefe de Estado visitou um herdade de agro-pecuária, que o ministro da Administração Interna estivera em Terrugem e que o secretário de estado da Comunicação Social viajara até Paris. Como poderia eu ter dormido bem nessa noite, se desconhecesse todas essas informações?
Camaradas, parabéns! O vosso trabalho é irrepreensível! A História não esquecerá os vossos nomes e o povo ficará para sempre agradecido pelos serviços que diariamente lhe prestais!
Continuai! Não desanimeis! Apesar de ser incrível, a vitória será vossa! E essa é que é a grande tragédia!”

E a vitória foi mesmo dos media, não há dúvida. Os fazedores de opinião, as correias de transmissão dos vários poderes, os inventores de necessidades desnecessárias – são eles, de facto, que dominam o mundo. Quanto aos médicos, enfim, só pensam em dinheiro, cometem erros, são negligentes, fazem negócios estranhos com a indústria farmacêutica, chegam atrasados, são incompetentes, arrogantes e antipáticos, trabalham pouco – e são ricos, muito ricos!…
As minhas cartas para o Telejornal continuaram ao longo de todo aquele ano. Dava-me um certo gozo estar de fora e ver a merda que se ia fazendo na informação televisiva. Por exemplo, e para citar apenas casos recentes: assaltos a bombas de gasolina sempre houve; no entanto, a acreditar na comunicação social, esse tipo de assaltos só ocorreu durante um determinado período de tempo, em que não havia mais temas para eles desenvolverem. E quanto ao urânio empobrecido? Existe, nunca existiu, é perigoso, não faz mal nenhum a ninguém? Os assuntos vêm por revoadas; durante algum tempo, os media exploram o assunto até à exaustão, pesquisam, entrevistam especialistas, ouvem depoimentos, publicam comunicados e depois, de repente, saltam para outro assunto e deixam de falar do anterior, como se ele estivesse resolvido, ou melhor, como se ele nunca tivesse existido. Ao longo dos anos, temos assistido a muitos exemplos do que acabo de dizer. Alguém se lembra ainda daqueles “cirurgiões” filipinos que operavam os pacientes com as mãos, retirando-lhes pedaços de enxúndia de galinha como se fossem tumores que estavam a extirpar? A televisão mostrou imagens de filas intermináveis de pessoas que aguardavam a sua vez para serem operados, recordam-se? Que aconteceu a esses “cirurgiões”? Começaram a operar naquela altura, já deixaram de operar, foram desmascarados? Ninguém sabe. O assunto deixou de ter interesse para a comunicação social, deixou de passar nas televisões, deixou de aparecer nos jornais – logo, deixou de existir.
Em Setembro de 1978, o telejornal descobriu que havia quem fizesse operações em que a anestesia era feita através da acupunctura e um dos seus jornalista até se submeteu a uma operação com esse método e a reportagem foi transmitida. Escrevi logo a seguinte missiva:

“Algumas semanas atrás soube, através dos jornais, que um dos vossos – José Manuel Bento – houvera sido submetido a uma intervenção cirúrgica, na qual foi usada a acupunctura como método de anestesia.
Longe de mim a intenção de escarnecer dos métodos do meu colega paraguaio. Pelo contrário: eu próprio – apesar da minha formação médica clássica – possuo alguns conhecimentos de acupunctura, graças a meia dúzia de lições com a Dona Georgina – a melhor costureira do meu bairro.
Venho pois, por este meio, colocar-me à disposição para espetar agulhas em TODOS os elementos do Telejornal, sem excepção.”

Devagar, devagarinho, à medida que a Medicina ia tomando conta de mim, acabei por deixar de escrever aos meus ex-colegas. Vinte e tal anos depois, estou muito satisfeito com a minha decisão: apesar de o prestígio da classe médica ter diminuído aos olhos da opinião pública, apesar do prestígio da classe jornalística ter subido desmesuradamente, apesar de, como eu previra, a vitória ser deles, eu prefiro ser médico. Sem qualquer margem para dúvidas!
Mas voltemos ao Internato de Policlínica que, naqueles tempos, era de dois anos, durante os quais apenas podíamos exercer medicina tutelada, quer dizer, sempre com alguém mais graduado a vigiar os nossos actos médicos.
O Internato podia ser realizado em qualquer hospital do país e, pela nossa cabeça, nunca nos passou a hipótese de nos separarmos, indo cada um para seu hospital. Inscrevemo-nos, portanto, no Hospital de Cascais mas, à cautela, fiz publicar um anúncio no Diário do Ribatejo, que rezava assim:

“Casa – Precisa-se; Médico pretende alugar casa, em Santarém ou vilas próximas. Resposta a Avenida Bento de Jesus Caraça, 17 – Algueirão”

Ninguém respondeu. E acabámos por ficar colocados nos Hospitais Civis de Lisboa. Nada mau. Aliás, muito bom, porque já estávamos um bocado fartos do Hospital de Santa Maria e, pelo que tínhamos ouvido dizer, neste hospital, os internos limitavam-se a andar aos papéis, servindo quase como criados dos assistentes hospitalares, enquanto que, nos Hospitais Civis, trabalhava-se a sério e conseguia-se aprender alguma coisa de jeito.
Começámos o Internato por dois meses em Pediatria, no Hospital D. Estefânia e ficámos logo a gostar de ser médicos!
Tenho no meu álbum de recordações a primeira receita que passei. Foi uma embalagem de Fenistil em gotas, para a Marta, que nos custou sessenta e seis escudos. Cabe aqui dizer que os nossos filhos nos ajudaram muito nestes nossos primeiros anos de casados porque não nos chatearam muito com doenças. O Pedro foi sempre um puto saudável e só uma vez nos pregou um grande susto, com um febrão do caraças e rigidez da nuca. Felizmente, conhecemos, na Estefânia, o Manuel Marques, que se tornou pediatra das nossas crianças mas, acima de tudo, um grande camarada. Talvez sem se dar conta, ensinou-nos o bom senso que é preciso ter na clínica: o que é frequente, é frequente, o que é raro, é raro, percebem? A Marta, pelo contrário, deu-nos água pela barba com as suas otites de repetição e as suas bronquiolites, o que nos obrigou a comprar uma maquineta de fazer vapores, que carregava as já húmidas paredes do Algueirão, de mais bolor ainda. Mas, apesar de alguns sustos, conseguimos levar as coisas com alguma tranquilidade e os nossos putos cresceram de um modo saudável e sem grandes sobressaltos.


O Pedro e a Marta, lindíssimos, em Agosto de 1978.

Entretanto, pairava já a hipótese de irmos para a província cumprir os oito meses de estágio de Saúde Pública. A escolha era feita por sorteio e podia acontecer que eu fosse parar ao Alentejo e a Mila ao Algarve. Começámos a pensar em estratégias para ficarmos juntos num cu de Judas qualquer, que ninguém mais quisesse. E para isso, era essencial ter carro. E, para ter carro, talvez não fosse má ideia tirar a carta. Foi o que fiz, eficazmente, em 24 lições, na Escola de Condução Algueirão-Mem Martins. O meu instrutor era um cinquentão simpático e gordalhufo que, sabendo que eu era médico, apesar daquele ar de esquerdista em manifestação permanente, me dizia sempre: “Agora, vamos virar ao vosso lado esquerdo…” O exame foi ali nas imediações do Estádio da Luz, correu bem e, em pouco tempo, eu era já um médico encartado.
Faltava o carro.
Faltava, sobretudo, o dinheiro para o carro.
Como médicos, ganhávamos, os dois, cerca de vinte contos por mês; pagávamos três contos de renda, mais a água, a luz, o telefone e o gás e a paparoca. Sobrava pouco, claro. Como dinheiro também não havia, a coisa não estava fácil.
Vejamos os nossos gastos em alimentação e derivados, no mês de Maio de 1978: 2 084 escudos em carne, 1 350 em peixe, 606 em fruta, 474 em leite e iogurtes, 457 em detergentes e produtos de higiene, 300 em café, 230 em farinha para galinhas, 217 em Nestum e papas em geral, 217 em margarinas, 187 em batatas e cebolas (a produção do quintal não chegava…), 152 em brandy e gin, 121 em pão, 113 em hortaliças, 90 em cerveja, 89 em bolos, chocolates e rebuçados, 81 em bolachas, 72 em águas tónicas, 40 em óleo, 30 em queijo, 24 em açúcar, 17 em massas e 6 escudos em fósforos. Com os tostões, o total foi de 6 953 escudos.
Portanto, não é preciso fazer muitas contas para perceber que, para comprar um carro, seria, talvez, necessário assaltar um banco.
Este registo dos gastos perdurou durante vários anos. Ainda há meia dúzia de anos, guardava todas as facturas das compras no supermercado e, no fim do ano, fazia o total dos gastos. Quando o Pedro se casou e saiu de casa, deixei-me disso, mas a Mila continuou a registar os gastos de água, luz e telefone.
Apesar da estreiteza económica, ainda íamos, de vez em quando, jantar fora. O restaurante escolhido era “A Lanterna”, que ficava perto da nossa casa. Guardei uma factura de um desses jantares, em que os Buques e Smites jantaram pela módica quantia de 517 escudos. Característica dos jantares na Lanterna era a birra das meninas. A certa altura, a Joana ficava farta de estar na sua cadeirinha e começava a berrar; passado pouco tempo, e por solidariedade, a Marta afinava pelo mesmo tom. A berraria tornava-se de tal modo insuportável que, algumas vezes, a Mizé pegava na Joana e a Mila pegava na Marta e iam-se embora; ficavam os homens sozinhos a acabar de jantar: eu, o Pedro e o Zé…
O meu pai, que sempre foi um forreta dos antigos, lá acabou por me emprestar o dinheiro para o meu primeiro carro. Notem: emprestar, porque isso de dar é outra história completamente diferente. Foi assim que, no dia 26 de Julho fui ao stand de usados do Albertino Henriques da Silva, sito na Rua do Garrido, em Lisboa, comprar um Renault 4, de mudanças ao volante, matrícula LD-56-33, em quinta mão, por 120 contos (equivalente a um ano de ordenado)!
A viagem ao volante do Renault 4 até ao Algueirão foi uma verdadeira aventura. Nunca tinha conduzido carro algum, a não ser o da escola de condução – e logo com as mudanças ao volante! Dá cá a bengala, para meter a primeira, toma lá a bengala, para meter a segunda, dá cá a bengala outra vez, para meter a terceira, toma a bengala de volta, para meter a quarta, e enfia a bengala até ao tutano, para meter a marcha atrás. Houve momentos do percurso entre Lisboa e Algueirão que o Renault deslizou sem qualquer mudança metida porque eu não sabia positivamente o que estava a fazer!
Enfim, com a prática, adaptei-me e, às tantas, já achava que o Renault 4 era um carro do caraças. Entretanto, o Zé tinha comprado (ou o pai deu-lhe, ou emprestava-lhe de vez em quando?) uma Diane. Os Buques e Smites tinham dois carros, além do carro de pedais do Pedro, claro…
Foi em Outubro de 1978 que o Pedro começou o seu périplo escolar. Já com cinco anos, havia que inscrevê-lo na pré-primária, porque o infantário onde esteve até então (juntamente com a Marta e a Joana), não aceitava crianças dessa idade. Assim, foi inscrito no Colégio D. Afonso V, em Mem Martins, a quem pagávamos mil e quatrocentos escudos por mês e mais cinquenta escudos para “acompanhamento psico-pedagógico”. Coisa fina, hein?
O infantário onde os três miúdos andaram, chamava-se “O Comboio” e ficava mesmo perto da estação de comboios do Algueirão, o que dava muito jeito. De manhã, antes de sairmos para o hospital, carregávamos com a Marta e o Pedro até ao Comboio, onde eles ficavam até nós regressarmos de Lisboa. A dona do infantário era casada com um colega nosso, o Dr. Cutileiro que, alguns anos depois, nos daria alguma ajuda no início da nossa carreira.
O Internato de Policlínica decorreu sem sobressaltos, com alguns períodos mais interessantes e outros nem por isso. Além dos dois meses em Pediatria, de que gostámos bastante, sobretudo a Mila, estivemos também dois meses em Ginecologia e Obstetrícia, na Maternidade Magalhães Coutinho, onde fazíamos serviços de urgência; num desses serviços, o assistente hospitalar de serviço veio chamar-me certa noite, estava eu a dormitar; queria que eu fizesse um parto. Disse-me que ia ser fácil porque a mulher já tinha tido vários partos antes e, por ser multípara, aquilo devia ser canja. Borrado de medo, fui. Muito suor depois – mas sempre com o apoio do assistente e da enfermeira-parteira, lá nasceu um bebé e eu fiquei muito contente, não por ter ajudado ao parto, mas pelo facto daquilo ter terminado e ter corrido tudo bem. Preparava-me para voltar costas, quando o meu colega me disse: “Onde vais?… Isto ainda não acabou… são gémeos!…” Pequenas partidas que se pregavam aos novatos e que não tinham graça nenhuma. Partos, não obrigado!
Estivemos ainda quatro meses no Serviço de Doenças Infecto-Contagiosas do Hospital Curry Cabral, onde aprendemos muita coisa de clínica, quatro meses no Serviço de Medicina, onde só vimos cirroses e acidentes vasculares cerebrais, e mais quatro meses no Serviço de Cirurgia, ambos do Hospital dos Capuchos. Entretanto, fazíamos serviços de urgência no Hospital de S. José.
O estágio de Cirurgia, para mim, foi um sacrifício. Se não gostava de partos, também não ia muito à bola com o corte e costura da Cirurgia. Tive azar. Calhei com a única assistente hospitalar de Cirurgia daquela equipa. Não sei o que ela viu em mim, se foram os meus olhos, se foi o meu bigode, se foi a minha juventude, mas o que é certo é que engraçou comigo e fazia questão que a ajudasse em todas as operações. Operei que me fartei! Mas fartei-me mesmo! De tal modo, que nunca mais dei um ponto na minha vida de médico. A mulher perseguia-me: não só me chamava para ajudar em todas as operações no Hospital dos Capuchos, como me convidava (quase obrigava) a ajudá-la nas operações que ela fazia particularmente. E eu não queria, juro que não queria, e disse-lho; mas ela não desgrudava! Estaríamos perante um caso de assédio?… Não sei, mas também, nesses tempos, ainda não se falava dessas coisas… Fumar estava quase, quase a fazer mal à saúde, mas ainda não fazia e, quanto a assédio sexual, ainda não tinha sido inventado. Ajudei colecistectomias, apendicectomias (uma delas foi feita praticamente por mim, com instruções dadas por ela, por cima do meu ombro, demasiado perto para o meu gosto, diga-se…), herniorrafias e, até, uma mastectomia com enxerto cutâneo, que durou o dia quase todo. Certa vez que ela me “convidou” para a ajudar numa operação privada, pedi encarecidamente à Mila que lhe telefonasse horas antes da operação dizendo-lhe que eu não podia ir porque estava de diarreia e que iria a Mila na minha vez. A senhora não teve alternativa senão aceitar, porque não tinha mais ninguém que a ajudasse naquele dia, mas tratou muito mal a Mila, criticando-a pela maneira como punha as mãos, como entregava os instrumentos, como tinha o descaramento de ser tão jovem e ter uns lindos olhos azuis e ser a mulher do Artur (claro que esta última parte é inventada, mas penso que era o que estava subjacente…)
As urgências em S. José é que foram a nossa verdadeira escola de prática clínica. A equipa médica era numerosa e, nos chamados balcões, onde se atendia directamente os doentes, estavam os internos como nós; víamos o doente, fazíamos o nosso diagnóstico e, depois, chamávamos o assistente que confirmava, sugeria exames ou passava a receita. Eram sempre muito animados, esses bancos, quer de noite, quer de dia e nunca me esquecerei do fulano de etnia africana que deu entrada, certa noite, com uma faca de mato cravada na fenda ocular esquerda, mesmo entre o olho e o nariz; só ficara o cabo de fora. Foi o espanto geral quando vimos a radiografia e constatámos que o gume da faca entrara de tal maneira que não atingira o cérebro do homem. O gajo estava vivo e vesgo – nada mais.
E quanto aos Buques e Smites? Continuavam vivos e de boa saúde! Gostávamos cada vez mais da nossa vivenda e, para demonstrar o nosso amor por ela, até pintámos o quarto do Pedro de azul escuro, o nosso de vermelho escuro e a sala de cor de rosa. Tudo cores discretas, hein?


Era (quase sempre) um fartar de rir, na Videnda Buques e Smites; notem o ar divertido da Marta e da Joana, enquanto o Pedro se enfronha na leitura. À esquerda, um dos ícones daqueles tempos: um tijolo pintado pelo Zé, representando a capa do Sexus, do Henry Miller.

E pensámos até em comprar a vivenda ao senhorio; com que dinheiro é que eu não faço ideia. Em Setembro, enviámos-lhe uma longa carta, em que dizíamos, por exemplo:

“a cave podia-se por em comunicação com a casa pelo interior e, com um bom isolamento, chão de cortiça e uma ventilação eficiente, seria habitável, dando origem a largo espaço útil para a família, que pode crescer, ou a algum familiar a que tenhamos que dar a mão; a cozinha é um bocado escantilhada, mas com a parede da casa onde está o tanque deitada abaixo e com a dispensa ao lado da chaminé redesenhada, ficava com a operacionalidade que agora não tem; o corrimão da escada está caindo: vamos retirando as placas à medida que abanam, não vão elas cair em cima de alguma criança; podia-se por um de madeira, onde as mesmas crianças se agarrassem sem estarem sempre a correr o risco de ir escada abaixo; as portas da garagem estão a cair de podres; agora que o Artur comprou uma viatura modesta (por razões clínicas), é um factor aborrecido, mas não temos lata para lhe pedir que mande por um novo porque é uma coisa muito cara que nem é de primeira necessidade; mas caso o burgo fosse da catraiada, pois punha-se uma daquelas portas de levantar, que são muito práticas; a água continua a faltar dia sim, dia sim, apesar do poço (cujo motor está agora trabalhando bem, depois do conserto a que o mandámos ao Porto); o ideal era fazer de lá uma segunda conduta para as casas de banho, pelo menos, para não andarmos a chapinhar a casa com baldes acima e abaixo; em opção, poder-se-iam instalar depósitos nesses mesmos locais, que se enchiam com o motor; enfim, os melhoramentos iriam por aí fora…
(…) estará o sr. Almirante vendo que, das duas, uma:
1) ou pretende vender a casa pelo seu preço “justo” e apenas por esse (e nós, não só não podemos comprar como, se o fizéssemos, ficávamos com tais encargos que não fazíamos obras)
2) ou medita longamente com o seu filho sobre a possível venda sob o estatuto de “casa alugada”, buscando-se um acordo razoável para ambas as partes, com a certeza de quase toda a possível quantia ser paga no acto da venda, sem recurso a empréstimos bancários, sempre morosos e prejudiciais para o vendedor.”


Nesta foto de Setembro de 1976, a Mila pinta a porta da nossa garagem, ainda sem carro...

E a carta continuava neste tom por cerca de quatro páginas. O homem deve ter ficado tão assustado que julgo que nem nos respondeu. Ele, afinal, até estava a pensar em reaver a casa sem qualquer outro encargo, usando o estratagema do senhorio-emigrante! Nós é que não sabíamos isso, nessa altura.
Entretanto, também o Zé já tinha deixado o jornalismo. Acabado o curso de Matemática, tinha sido convidado para assistente universitário e aceitou, enquanto a Mizé fazia o estágio pedagógico para se tornar professora.
Em relação ao Mário-Henrique, mantinha-se a nossa preocupação. De Bruxelas, onde agora estava, trabalhando na embaixada, o Lemus perguntava pela Velha e nós respondíamos que estava mal, doente, sem cheta, com o Vodka (o cão tipo salsicha) também doente, sozinho em Carcavelos, sem apoio algum, a não ser as nossas entregas regulares de víveres.
Ingenuamente, pensámos em trazer o Mário para a nossa cave e escrevemos-lhe isto, em Dezembro:

“Velhão:
A questão é simples: tu estás à rasca, sem ninguém que cuide de ti, com o cão a mijar e a cagar a casa toda, sem paciência para porra nenhuma.
Por isso, considera-te convidado para passar uns dias connosco – digamos, até a crise reumática aliviar um pouco.
Eis o que te prometemos: a maior discrição possível, solidão ou companhia, conforme o teu desejo, almoço e jantar assegurados, na cama, música e leitura dentro das nossas possibilidades; o Vodka virá também, e entender-se-á com a Ginja, no quintal, evidentemente; enquanto cá estiveres, chamaremos alguém que fará um orçamento do arranjo da cave, com vista à tua futura instalação.
Assim que receberes esta carta, pegas no telefone e dizes: sim ou não.
E na peida!”

Claro que o Mário-Henrique não aceitou a nossa proposta e a nossa cave continuou vazia, embora não por muito tempo, como já se vai ver…
O meu pai, entretanto, andava a pensar em casar novamente – o que não agradava muito aos meus irmãos e nada à minha avó que, por força das más relações que sempre tivera com o Zé Couto, partira para Moimenta da Beira, onde foi viver para casa do meu tio José Ricardo, irmão da minha mãe, outro grande fumador. A companheira que o meu pai escolheu não parecia ser boa rês mas, sinceramente, eu andava demasiado embrenhado na minha própria vida, que não liguei muito ao assunto. Lá de Moimenta, a boa da minha avó recebia informações das vizinhas dos meus irmãos e parecia estar a par de tudo o que se passava. Pediu-me ajuda. Que o meu irmão não fazia nada, que a minha irmã andava com más companhias, que a companheira do meu pai só queria era o dinheiro (qual dinheiro?) e coisas do género. Respondi-lhe com uma carta violentíssima, dizendo-lhe que me estava borrifando para a namorada do meu pai, que não queria saber se ela era boa ou má pessoa, mas afirmando que estava disposto a ajudar os meus irmãos, no que fosse preciso.
O meu pai acabou mesmo por casar novamente, o que precipitou, também, o casamento do meu irmão – mas isso é uma história que será contada a seu tempo.
E no que respeita às artes?
Pela minha parte, ainda me considerava um poeta. Embora já não tivesse paciência para escrever e “publicar” livros de exemplar único, ainda não tinha desistido de escrever poemas, de vez em quando.
No Natal de 1978, ofereci à Mila um pequeno opúsculo, dactilografado em papel de embrulho e encadernado em cartão tosco. Era um livrinho com sete páginas em que escrevi um poema intitulado “Amo-te”. Terminava assim:

“Amo-te/ pela descoberta permanente/
pela luta constante/ pela dissidência consciente/
pela loucura/ pela lucidez/
por sermos náufragos/ numa ilha superpovoada/
por sermos diferentes/ e iguais/
e avançarmos/ verticais/
por entre os corpos/ que rastejam/
Amo-te/ no dia-a-dia/
Na noite-a-noite/ na rotina impossível/
No quotidiano imaginário/ no beco sem saída/
Na corrida sem meta/ no acordar difícil/
No adormecer cansado/ na dúvida/ na certeza/
Amo-te/
Porque sim.”

Hoje em dia já não escreveria coisas destas mas há que dar o desconto – tinha 25 anos e tinha a mania que era escritor...
No que à música diz respeita, a chamada música clássica continuava a comandar, embora as minhas preferências começassem a ser, digamos, mais modernas: Stravinsky, Prokofiev e Chostakovitch. Delirava com a décima sinfonia deste compositor russo, sobretudo com a barulheira infernal dos instrumentos de percussão. Ou seja, sem dar por isso, o rock and roll estava a voltar, pé ante pé, ou melhor, batimento ante batimento. Também a música brasileira, do Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil me dizia muito, sobretudo aquelas musiquinhas do Chico em que as palavras subentendiam muita coisa. Dos portugueses, para além do inevitável Zeca Afonso, andava mergulhado “em vermelho, em multidão”, com o GAC (Grupo de Acção Cultural), ligado ao José Mário Branco.
Filmes importantes em 1978 e 1979: “Annie Hall”, “O Testa de Ferro”, “Nem Guerra nem Paz”, “Play it Again Sam” e “Interiores”, do ou com o Woody Allen, “Bonnie and Clyde”, do Arthur Penn, “Feios, Porcos e Maus”, do Ettora Scola, “Encontros Imediatos do 3º Grau”, do Spielberg, “Inserts”, do John Byrum, com o Richard Dreyfuss, “A Última Sessão”, do Peter Bogdanovich, “O Cow-boy da Meia Noite”, do John Schlesinger, com o Dustin Hoffman, “Nashville”, do Robert Altman, “Taxi Driver”, do Martin Scorcese, com o De Niro, “Frankenstein Junior”, do Mel Brooks, “Super Homem”, do Richard Donner, “A Via Láctea”, do Bunuel – e ainda, “O Rei das Berlengas”, do Artur Semedo, com o Mário Viegas.
Estava eu sentado no Estúdio 444, com a Mila ao lado, a ver o Artur Semedo, armado em Marquês de Pombal, a alimentar um leão com jesuítas em forma de bolos, quando senti uma revolução dentro do meu peito e comecei a suar abundantemente. Durante os primeiros minutos não percebi o que me estava a acontecer, mas a sensação de morte eminente era tão, digamos, eminente, que puxei pelo braço da Mila e saí do cinema a correr. Cá fora, percebi que o meu pulso estava arrítmico. Mas o que era aquilo? Começámos a andar devagarinho por ali fora, Fontes Pereira de Melo abaixo, Avenida da Liberdade, Restauradores e a crise foi abrandando. Quando chegámos à estação do Rossio, para apanhar o comboio para o Algueirão, já a crise tinha passado. Foi essa a minha primeira crise de extrassístoles, situação que haveria de me acompanhar durante mais de dez anos e que me causou os momentos mais amargos da minha vida. Mas, naquela altura, embora tivesse ficado apavorado, não liguei muito ao assunto e, alguns dias depois, voltámos ao cinema para acabar de ver as peripécias do Mário Viegas, grande admirador do Mário-Henrique, também.
Finalmente, os livros de 1978 e 1979. Redescobri o Eça de Queiroz e comprei todos os seus livros que encontrei. Do Eça, pouco conhecia, além do “Suave Milagre”, que era o que nos impingiam na “Selecta Literária”, o livro de leitura obrigatória nas aulas de Português do Liceu. Fiquei maravilhado com o seu sarcasmo, a sua ironia, a finura com que escrevia. Descobri também o Almada Negreiros, e comprei as suas obras completas. Continuei fiel ao Garcia Marquez, comprando “Cem Anos de Solidão” e “O Outono do Patriarca”. Gostei muito do Jorge de Sena e comprei “Os Grão-Capitães”, “O Físico Prodigioso” e “Antigas e Novas Andanças do Demónio”. Comecei, também, a interessar-me por policiais e iniciei-me, naturalmente, com a Agatha Christie.
Terminada a parte lisboeta do nosso Internato Policlínico, estávamos prontos para os nossos oito meses de estágio de Saúde Pública.
Como já disse, a escolha das vagas era feita por sorteio. Cada candidato tinha um número e tudo começava pelas vagas dos Açores e Madeira, que eram as mais temidas. Claro que havia colegas oriundos das ilhas, que se ofereciam para ocupar algumas dessas vagas, mas não era suficientes; as restantes eram sorteadas entre a malta toda. Das ilhas safámo-nos, após grandes momento de angústia. Quando chegou a vez das vagas do Continente, decidimos não sofrer mais e oferecemo-nos, voluntariamente, para ocupar as duas únicas vagas existentes em Armamar, que tinham sobrado dos colegas do Porto. Fomos aplaudidos por todos os colegas em delírio: dois palermas que querem ir para trás do sol posto! Palmas!
Foi uma decisão pensada, evidentemente.. O meu tio José Ricardo, a minha tia Ju e a minha avó Rita viviam em Moimenta da Beira, a meia dúzia de quilómetros de Armamar, e sempre nos poderiam dar algum apoio, a nós e às crianças, já que nunca nos passou pela cabeça ir fazer o estágio para um lado qualquer e deixar a Marta e o Pedro com os avós.
Portanto, atenção Moimenta – aí vamos nós!




 

 

 



Próximo capítulo: "Moimenta da Beira (1979)"

 

Actualizado em: 18 Abril 2003
O MELHOR DO PÃO COMANTEIGA
Textos seleccionados do Pão
CROMOS DO COISO
Cromos antigos para a troca e sites recomendados

O MELHOR DO PAU DE CANELA
Textos selecionados deste jornaleco de 1985

HISTÓRIAS POUCO CLÍNICAS
...mas muito cínicas
O MELHOR DO UMA VEZ POR SEMANA
Textos seleccionados deste programa sexual de 1986

COISAS DO COISO
textos e bonecos seleccionados que sairam no Coiso em papel

CAUSAS DO COISO
Como tudo começou

DICIONÁRIO PORRINHA
COMENTÁRIOS AO COISO
E-MAIL
Vá... enviem-me um e-mail!
Zona Privada
Este é o Coiso do Artur Couto e Santos.
Se tiver algum comentário a fazer ao meu Coiso, carregue aqui:

arturcs@netcabo.pt