16. Moimenta da Beira (1979)
A viagem para Moimenta da Beira, no fim de Abril de 1979,
foi uma verdadeira epopeia, não só porque
a auto estrada do norte terminava, estranhamente, ali para
os lados do Carregado ou de Aveiras de Cima ou coisa que
o valha, mas também porque o Pedro, e sobretudo a
Marta, enjoavam. Como as curvas eram mais que muitas, cada
vez que apanhava uma série daqueles sinais triangulares
com três esses, havia um puto a vomitar no banco de
trás. Esta cena tornou-se de tal modo rotineira que,
a páginas tantas, começámos a trazer
sempre, debaixo do banco do carro, um velho penico de plástico.
Ao aviso de “Mamã! Vou vomitar”, eu abrandava
a marcha, o Pedro vomitava para o penico, a Mila dava-lhe
uma ajuda e, mais à frente, quando dava mais jeito,
eu encostava, lavava-se a boca à criança,
despejava-se o penico, tudo na maior das tranquilidades.
Com a Marta, claro que era mais complicado; ainda não
tinha dois anos e a sua capacidade de auto-controlo era
menor. Era portanto muito possível apanhar com um
ou dois vómitos em cima até Coimbra e mais
meia dúzia deles, entre Coimbra e Moimenta, onde
a estrada, segundo dizem, foi construída sob as ordens
de um inglês que a tudo respondia com “yes,
yes, yes” – daí os tais sinais triangulares
com três esses… Certa vez, comprámos
uns supositórios de Enjoim, a ver se conseguíamos
diminuir os vómitos dos putos durante a viagem –
o resultado foi: os vómitos mantiveram-se na mesma,
com a agravante dos putos, após cada vomitadela,
ficarem tão mal dispostos como antes de vomitar,
tontos e abazarucados, além de se terem cagado pelas
pernas abaixo várias vezes...
Quero com isto dizer que a viagem do Algueirão a
Moimenta da Beira era coisa para umas seis ou sete horas,
no mínimo.
O tal penico de plástico, por baixo do banco da frente,
só de lá saía quando mudávamos
de carro, para ir ocupar o seu novo lugar, e só há
uns anos deixou de circular connosco..
O R4 portou-se bem durante toda a viagem mas, assim que
chegou a Moimenta – e assim que se apercebeu que teria
que passar a circular, diariamente, entre Moimenta e Armamar,
e vice-versa – começou a fazer umas birras
valentes; mudaram-se as velas e os platinados, mas o disco
de embraiagem partiu; depois de substituído, foi
a vez do tubo de escape romper, seguido da bateria que se
descarregou completamente, para já não dizer
que o filho da mãe do carro, mesmo no pino do Inverno
beirão, com temperaturas negativas, teimava em ferver,
fazendo barulhos vulcânicos, qual Etna em perfeita
ebulição – o capot tão quente
que se podia estrelar ovos em cima, e nem pensar em abrir
o radiador, porque logo dele saia um géiser maior
que o do Yellowstone.
Estava na cara que o R4 não ia aguentar muito mais
tempo e, depois de uma ginástica ciclópica,
conseguimos que um Banco de Moimenta aceitasse umas letras
avalizadas pelo meu tio e lá comprámos, em
Junho, um Fiat 124 com nove anos, em quarta mão,
SO-53-80, por 140 contos.
Durante alguns dias, até parecíamos uns doutores,
com dois carros parados à porta de casa.
Um dia que fui fazer consultas a Armamar, deixei lá
o R4 a um tipo qualquer, a troco de trinta notas de mil.
Em menos de um ano, tinha perdido noventa contos, o equivalente
a quase nove meses de ordenado. Obrigado, ó Albertino
Henriques da Silva, que a terra te seja leve.
Em Moimenta, ficámos instalados em casa dos meus
tios, embora a ideia inicial fosse alugar um quarto na pensão
local. O Presidente da Câmara, que era do PSD –
o que, naquelas paragens equivalia, em 1979, a ser um perigoso
esquerdista – ainda nos prometeu uma casinha pré-fabricada,
mas era conversa de político.
Ficámos oito meses instalados em casa dos meus tios.
Éramos doze pessoas: nós os quatro, o meu
tio Zé Ricardo e a minha tia Ju, os pais da minha
tia, os Bondosos, os filhos dos meus tios, o Zé Artur
e o famoso Kiká, a avó Rita e ainda a Carla,
uma espécie de filha adoptiva que os meus tios tinham
trazido de S. Tomé.
As peripécias daquela casa são contadas em
pormenor no próximo capítulo. Por agora, gostava
de me deter um pouco no meu tio Zé, outro dos grandes
fumadores que conheci – e o segundo desertor destas
memórias.
Três anos mais novo que a minha mãe, o meu
tio sempre teve fama de rebelde. Não conheço
a sua verdadeira história, nem é isso que
interessa para esta narrativa, que se baseia apenas na minha
memória. E a minha memória recorda a avó
Rita a contar que o tio Zé, aí por volta dos
20 anos, foi para S. Tomé, após conflitos
insanáveis com o meu avô Fernando.
Em S. Tomé, teve o apoio do meu tio Afonso, irmão
da minha avó, estabelecido por aquelas paragens equatoriais
há uns anos e que, mais tarde, se suicidou por razões
nunca explicadas.
Como funcionário público das ex-colónias,
o tio Zé vinha ao Continente de quatro em quatro
anos, por um período de seis meses e instalava-se
em nossa casa, para grande desespero do meu pai. Penso que
ele tinha ciúmes da vida de estúrdia do tio
Zé, que passava os seis meses da férias a
levantar-se ao meio-dia (com pequeno almoço na caminha,
servido pela avó Rita), passar o dia na boa vida
e chegar às tantas da manhã, muitas vezes
já um pouco entornado. Solteiro e bom rapaz, o Zé
Ricardo frequentava os bares e dancings todos de Lisboa,
dos melhores aos piores – daqueles que, como ele dizia,
eram tão escuros e tão maus que, quando um
criado deixava cair a bandeja, toda a gente começava
a dançar, pensando que a orquestra tinha começado
a tocar. O meu pai tinha também ciúmes das
boas relações que eu e o tio Zé estabelecíamos.
Se não estou em erro, ele esteve por cá quando
eu tinha os meus 13 ou 14 anos, exactamente no início
da minha carreira de fumador – era natural que me
sentisse atraído por um adulto que pegava em mim,
me metia no Mini que alugava durante aqueles seis meses,
e me levava a beber imperiais e a comer tremoços
a todas as cervejarias da Baixa. O meu tio fumava compulsivamente,
acendia uns nos outros – e isso também não
agradava ao meu pai. Mas, passados os seis meses, lá
ia o Zé Ricardo de volta para S. Tomé e só
o tornávamos a ver passados quatro anos. Deixou de
fumar há meia dúzia de anos, após um
valente enfarte do miocárdio, já depois dos
60 anos. É, portanto, o segundo desertor desta história…
O tio Zé Ricardo, a avó Rita e a minha
mãe, numa foto de Junho de 1951.
Outra coisa que me agradava no meu tio era a sua paixão
pela banda desenhada. E como todas as verdadeiras paixões,
muito pouco selectiva. Gostava de BD, qualquer tipo de BD
e lia tudo, Tio Patinhas, Patos Donalds, Mundos de Aventuras,
a turma da Mónica, o recruta Zero, tudo. Deitadinho
na cama, cigarrinho aceso, o tio Zé devorava livrinhos
de BD e depois deixava-os em pilhas, para eu ler também.
Foi graças a ele que aprendi a gostar de BD e, a
certa altura, comecei a comprar o TinTin, publicação
semanal, que tinha como chefe de redacção
o Diniz Machado. Começou a sair em 1968 e durou até
1982. Nos alfarrabistas das Escadinhas do Duque, consegui
arranjar todos os números atrasados. Tenho-os todos
bem encadernados pelo irmão do Sousa, o Nita, que
trabalhava numa oficina de encadernação, mesmo
ali ao pé do República.
Chegámos a Moimenta devendo dinheiro a quase toda
a gente. Os ordenados dos internos de policlínica
eram muito baixos, como já disse. Durante todo o
ano de 1978, cada um de nós recebeu, limpos, pouco
mais de 160 contos. Em Julho de 1979, finalmente, comecei
a ganhar, como médico, o que ganhava como jornalista,
no final de 1978! Mas, entretanto, com as despesas que o
R4 foi dando e com os atrasos nos pagamentos dos nossos
vencimentos – uma vez que a Administração
que nos pagava deixou de ser a de Lisboa e passou a ser
a de Viseu (embora, segundo creio, ambas as cidades se situem
neste imenso país…) – devíamos
dinheiro ao meu pai (a quem fiz questão de pagar
até ao último tostão), ao Jorge e à
Luisa e ao Zé e Mizé (contas de telefone,
da luz, da água). E, no entanto, tínhamos
um carro novo, daqueles com dois carburadores, fosse lá
isso o que fosse….
A minha paixão pela Medicina começou, verdadeiramente,
com este estágio nas terras do demo, como lhes chamava
Aquilino Ribeiro. Enfiados no Centro de Saúde de
Armamar, inserido num hospital com instalações
óptimas, metade delas fechadas por falta de médicos,
sem ninguém que nos orientasse, fomos atirados aos
bichos e gostámos. O Hospital de Armamar, dizia-se,
tinha sido construído com dinheiro doado por um habitante
local que fez fortuna a fabricar botas da tropa no tempo
da 2ª Guerra Mundial e era um edifício enorme
tendo em conta a pequenez da vila de Armamar, situada no
alto de um monte, separada da Régua por uma estrada
incrível, com centenas de curvas e contra-curvas.
Além do edifício mastodôntico do hospital,
Armamar tinha meia dúzia de casinhas tipicamente
beirãs, uma igreja românica e um café,
onde aguardávamos a chegada da carreira que unia
Régua a Moimenta. As constantes avarias do Renault,
obrigavam-nos, muitas vezes, a apanhar a camioneta que,
embora tivesse um horário oficial, passava quando
calhava, fazendo depender a hora da sua passagem do atraso
do comboio que ligava o Porto à Régua. Resultado:
passávamos muito tempo no tal café, fumando
cigarros e ouvindo, no rádio, os Bee Gees a esganiçarem-se
com o “Tragedy”. O Travolta, o disco sound e
o “Saturday Night Fever” estavam na berra, mesmo
nas terras do Demo.
No Hospital de Armamar, trabalhavam colegas do Porto, fazendo
o chamado Serviço Médico à Periferia
e, quando tínhamos dúvidas, eram eles os nossos
mestres (sempre tinham mais um ano de experiência,
caramba!…) Fazíamos consultas de Saúde
Materna, Saúde Infantil e Planeamento Familiar; fazíamos
ainda a chamada Saúde Escolar, que consistia em visitar
as escolas do concelho e fazer testes de visão e
audição às criancinhas, verificar se
tinham as vacinas em dia (a enfermeira encarregava-se das
vacinas), ver se os putos tinham piolhos ou sarna e cáries
dentárias.
Gostámos tanto deste trabalho que, passado pouco
tempo, trabalhávamos também no Centro de Saúde
de Moimenta, voluntariamente, já que este Centro
não tinha recebido estagiários. E notem a
palavra estagiários – nós éramos,
de facto, estagiários mas, no entanto, éramos
nós que coordenávamos e executávamos
e fiscalizávamos o nosso trabalho. Algumas vezes,
escrevemos ao Dr. Manuel Marques, o tal pediatra dos nossos
filhos, tirando algumas dúvidas e ele sempre nos
respondeu. Ensino de Medicina à distância –
hoje chama-se, Telemedicina…
Muitos episódios curiosos do nosso trabalho como
médicos foram por mim descritos em cartas que enviei
para os meus irmãos, para o Zé e Mizé,
ou para a Luisa e o Jorge e, para não me repetir,
deixo o seu relato para o próximo capítulo,
onde analiso o que chamei de “Correspondência
da Beira”.
A casa dos meus tios, com doze pessoas a bordo, era a grande
confusão, nas chamadas horas de ponta, isto é,
de manhã, quando toda a gente se levantava e preparava
para os respectivos afazeres, e à noite, quando todos
regressavam.
A Marta e o Kiká, com quase 2 anos, frequentavam
uma creche oficial, com umas instalações óptimas,
mas sem uma única educadora, e o Pedro, com 6 anos
(entrou na Escola Primária em Outubro), a pré-primária.
A carrinha ia buscar os mais pequenos ao Largo Humberto
Delgado, onde fica a casa do meu tio, mesmo em frente ao
edifício da Câmara Municipal e, à tarde,
ia depositá-los na Açucarinha, onde ficavam
à guarda da avó Rita, até que nós
chegássemos.
A Açucarinha era o restaurante que os Bondosos tinham
montado, depois de regressarem de S. Tomé, fugindo
da descolonização.
O meu tio, cansado da vida de solteiro, acabara por se casar,
já na casa dos trinta, com uma simpática professora
primária, a minha tia Ju, cuja paciência e
bondade me fazem recordar, por vezes, a minha mãe.
O resultado dessa união consistiu em dois filhos:
o Zé Artur, nascido no mesmo dia em que o Pedro nasceu,
mas três anos antes, hoje recém licenciado
em Direito, mas ainda jogador profissional de futebol, primeiro
no Torres Novas e, depois, no Fátima; e o Ricardo,
mais conhecido por Kiká, da mesma idade da Marta.
O meu tio, depois de regressar de S. Tomé e de se
instalar em Moimenta, abriu uma papelaria, “O Lápis”,
nome que eu sugeri.
Era no Lápis que me abastecia de tabaco, jornais
e publicações de BD, tendo uma conta corrente,
que liquidava no fim de cada mês. Quanto às
refeições, está-se mesmo a ver que
comíamos na Açucarinha, onde tínhamos
outra conta corrente. A mãe da Ju e a avó
Rita cozinhavam e foi aí que aprendemos a gostar,
por exemplo, de rojões com castanhas assadas, embora
nos tivéssemos fartado da sempre eterna vitela assada.
Lá em casa, as doze pessoas acondicionavam-se conforme
podiam. Eu, a Mila e a Marta, partilhávamos a cama
num quarto interior, com pouco mais de cinco metros quadrados,
onde só cabia a tal cama e, para ela caber, tirou-se
a porta, que foi substituída por um cortinado. Viva
a intimidade! No tecto do quarto, uma pequena janela para
o telhado, deixava entrar luz demais para se dormir até
tarde no fim de semana, luz de menos para o resto. Nós,
que sempre tentámos autonomizar os nossos filhos
desde muito cedo, deitando-os na caminha deles, no quartinho
deles, víamo-nos obrigados a dormir com a Marta.
Resultado: até aos sete ou oito anos, era frequente
a Marta, por volta das cinco ou seis da matina, sair do
quarto dela e vir ter connosco à cama, dormindo as
últimas horas de sono na companhia dos paizinhos,
para matar saudades. No que respeita à coabitação
com a minha filha, na mesma cama, queiram ler, por favor,
o capítulo que se segue.
Quanto ao Pedro, coitado, não teve outro remédio
senão dormir com o primo Zé Artur, no mesmo
divã de abrir e fechar, na sala e, durante oito meses,
conviver com a tenaz enurese do Zézinho. O Pedro,
tão asseadinho – asseado até demais
– que, graças a nós, pais inexperientes,
aprendeu a fazer as suas necessidades fisiológicas
no bacio quase ao mesmo tempo que aprendeu a andar, a ter
que aturar a urina nocturna do primo. O asseio precoce do
Pedro foi um dos nossos maiores erros. Tão limpinho
o Pedro se tornou que, a certa altura, era capaz de passar
um dia inteiro sem mijar; e depois, quando o queria fazer,
a pressão do globo vesical era tal, que não
conseguia fazer nada. Para castigo (dele, que devia ser
nosso), teve uma prostatite aos 19 anos, porra!
Em Outubro, o Pedro fez a sua estreia na instrução
primária, na Escola de Moimenta da Beira, onde ficou
até Dezembro. Quando já estava adaptado à
professora, aos seus métodos de trabalho e ao seu
sotaque tipicamente beirão, terminámos o estágio
de Saúde Pública, regressámos, por
um mês, ao Algueirão, e o Pedro – por
conveniência nossa – foi para a escola de Queluz,
para poder ficar perto da casa dos avós. Lá
se manteve durante o mês de Janeiro de 1980 e, no
mês seguinte, ingressou na Escola Primária
de Mourão, distrito de Évora, onde ficámos
colocados para fazer o Serviço Médico à
Periferia. Quer dizer que, na primeira classe, o nosso filho
andou em três escolas, começando a aprender
o sotaque beirão e terminando por falar alentejano.
Se, em Novembro de 1979, ele dizia: “Mila, tenho que
fazer os deberes”, em Março de 1980, dizia:
“Mila, estou fazendo os deveres”…
Por isso, o Pedro sempre teve uma grande queda para línguas…
A semana que antecedeu o início da sua vida de estudante,
foi fatídica para o Pedro. Começou a comer
mal, a ter dores de barriga e náuseas e os seus olhos
azuis sobressaíam estranhamente das olheiras cavadas.
Esteve quase a entrar em pânico, mas acabou por se
adaptar bem.
Duas imagens que ficaram em slide: nós os quatro,
a Luisa e o Jorge, almoçando algures em Armamar e
o Pedro olha para a objectiva da máquina fotográfica
com olhos de pedir socorro, não deixem que eu vá
para a escola!; o outro: nós, à porta da escola
primária, no primeiro dia de aulas, o Pedro de mala
na mão e, ao lado, um burro. Brincadeira, claro…
A paixão inicial pelo nosso trabalho de Saúde
Pública foi esmorecendo ao longo dos meses e, no
fim do estágio, só queríamos fugir
de Moimenta a sete pés. Mas, no início, o
arrebatamento da paixão levou-me a equacionar a possibilidade
de fazer o curso na Escola de Saúde Pública
e tentar ficar por aquelas bandas a fazer o Serviço
Médico à Periferia e – quem sabe –
radicar-me nas terras do Demo. Mas o isolamento foi mais
forte que toda a força dessa paixão.
Quando fazia bom tempo, tentávamos caldear esse isolamento
dando um salto à Barragem do Vilar, que fica ali
perto e era o que havia de mais parecido com o mar, num
raio de várias centenas de quilómetros. Agora,
que vivo em Almada há vinte anos, percebo perfeitamente
o chamado apelo do mar. Da varanda da minha casa vejo boa
parte do grande estuário do Tejo (“the big
lake”, como lhe chamavam uns holandeses que os meus
filhos conheceram no Algarve); e, se tiver muitas saudades,
em cinco minutos estou frente a frente com o Atlântico.
Posso passar semanas, talvez meses, sem o ver, mas sei que
o posso admirar sempre que quiser, sem grande esforço.
Isso não havia em Moimenta.
Uma tarde na Barragem do Vilar: a Carla, o Pedro, o
Zé Artur e a Marta de mão dada com a Mila.
Mas havia a Barragem do Vilar. Metíamo-nos os quatro
no carro, mais o Zézinho e o Kiká, e mais
algum miúdo que por lá andasse na altura e
íamos tomar um banho e apanhar sol. Teve graça
no princípio. Mas depois, depois…
O ambiente em casa do meu tio não era mau, mas era
o ambiente da casa do meu tio. Não tínhamos
espaço para os nossos livros, não tínhamos
espaço para os nossos discos – não tínhamos
espaço…
Com o meu tio, as coisas também não andavam
bem. Nunca cheguei a perceber o busílis da questão,
mas não era raro o José Ricardo chegar a casa
depois da meia noite, já um pouco ébrio, muito
nervoso, comendo cigarros e, apanhando-me a jeito, fazer
muitas queixas, com meias palavras e frases deixadas a meio,
que eu nunca percebia nem perguntava o que queriam dizer,
caso contrário, a conversa, em vez de esmorecer por
volta das duas da manhã e terminar às três,
só acabaria quando o sol nascesse. Diz o Tom Waits
numa das suas canções que só tem problemas
com a bebida quando não a consegue arranjar. Com
o meu tio, parecia passar-se algo de semelhante naqueles
tempos. Costumava dizer: “até para se ser bêbado
é preciso ter classe!” E ele tinha-a. Apesar
dos muitos copos bebidos, apesar dos olhos pequeninos e
brilhantes e do óbvio bafo a álcool, nunca
o vi a cambalear ou a fazer figuras tristes.
A história das constantes avarias do R4, o facto
de estarmos a pagar meia renda da casa do Algueirão,
com tão pouco dinheiro disponível, a promessa
não cumprida do Presidente da Câmara, que nunca
chegou a arranjar-nos uma casa – tudo isso pesou na
nossa decisão de não continuarmos em Moimenta.
E foi assim que, em Dezembro de 1979, regressámos
ao Algueirão, embora por pouco tempo.
Os oito meses em Moimenta foram muito ricos em episódios
mais ou menos rocambolescos e, desde o início que
me apercebi que aquele iria ser um período interessante
da nossa vida. Por isso mesmo, desatei a escrever cartas
à família toda, guardando sempre a cópia.
Juntei dezenas delas num dossier que intitulei “Correspondência
da Beira”.
Desfolhando as cartas que escrevi e as respectivas respostas,
percebi que tinha ali mais um capítulo destas memórias,
que será o próximo…
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