17. Correspondência da Beira (1979)
A epopeia da venda do Renault 4 e da compra do Fiat 124,
a nossa visita a Santiago de Cassurrães, a minha
fúria de coleccionista, a varicela da Marta, a entrada
do Pedro na vida de estudante, as refeições
na Açucarinha, as compras no Lápis, a Saúde
Escolar em Paraduça, o dia a dia no Centro de Saúde
de Armamar – tudo isso e muito mais descrevi, até
à exaustão, em cartas para o Zé e Mizé,
Luisa e Jorge, Paulo e Bela.
Vamos então reler essas cartas e, a propósito
delas, contar mais um pouco da nossa estada em Moimenta
da Beira.
Uma das grandes surpresas da Correspondência da Beira
foi o humor e a originalidade das cartas dos meus irmãos
que, criaram a CECA (Comissão Emanadora de Comunicados
e Abaixo-assinados), o CPTLF (Cooperativa Popular Toma Lá
Filosofia), o EPOLIT (Exército Popular de Libertação
da Turma) e a figura ímpar do Professor Doutor Ghozé
Pablito, pseudónimo do meu irmão Paulo, que
escrevia a maior parte das missivas, que eram constituídas
por uma sucessão louca de pequenas histórias,
peças de teatro super-rápidas, poemas minúsculos
e outras peças de alto valor literário, tudo
para animar o jovem casal de médicos em serviço
na província.
Fotografia dos três irmãos, contemporânea
do Dr. Ghozé Pablito e da Madame de Passevite.
Em resposta a uma dessas cartas malucas, escrevi, logo
no princípio de Maio:
“Maninhos:
Divide-se esta simpática cartinha em duas partes
distintas que, por se interpenetrarem, se tornam completamente
diferentes, confundindo-se. A primeira parte, que poderá
vir depois da segunda, é a parte séria, aquela
em que se pergunta pela saúde dos ausentes, se fala
das doenças dos presentes, se dão algumas
informações sobre o tempo. A segunda parte
– que poderá nem existir – é ensaística,
réplica às vossas cartas inéditas.
Mas, para manter as aparências de sanidade mental,
comecemos pela primeira parte:
a) Continuamos todos bem, embora a densidade populacional
desta velha casa beirã nos aborreça um pouco.
Com efeito, doze pessoas (das quais dez crianças
porque, pelos vistos, só eu e a Mila somos adultos…),
nesta casa com – aparentemente - sete divisões,
é demais. A confusão é tanta que, por
vezes, não sei bem se estou a dormir com a Mila ou
se é o tio Zé que ronca a meu lado, na cama.
Todas as manhãs é um alvoroço, a correr
de cama em cama: “Mas onde é que está
a Marta? Onde é que dormiu o Pedro?” E acabamos
por encontrar o gato a dormir com o Bondoso, a tia Ju debaixo
da cama, o Pedro em cima, a mudar a fralda à avó,
a Mila tentando acordar a Carla, pensando que se tratava
de mim e, quando o último habitante abandona a casa,
depois das abluções matinais, já são
horas do primeiro que saiu, regressar. Depois, o primeiro
tem sempre mais sorte, porque pode escolher o melhor colchão
e, quando o último chega, por vezes, tem que contentar-se
com um bocadito de alcatifa. Mas quando acontece chegarem
todos ao mesmo tempo, costuma haver sangue: todos tentando
conquistar a melhor enxerga. Até já pensámos
em nem sequer sair de casa!
(…) Frio, muito frio e alguma chuva. O termómetro
deve rondar os sete graus de manhã e à noite;
durante o dia não está tão frio mas
anda-se de canadiana e dorme-se de meias e camisola interior.”
Foi em Moimenta que usei pela primeira e última
vez na minha vida essa grande descoberta dos rurais portugueses:
as ceroulas, embora sob a forma de collants de lã!
Inacreditável num tipo que – e nisso, talvez
só nisso, saio ao meu pai – dorme sempre com
os pés de fora, mesmo em pleno Inverno, porque não
tolera o calor de um único lençol…
“Trabalho, muito trabalho. Mas, como não
há mais nada para fazer, trabalhamos o triplo do
que trabalhávamos em Lisboa e não estamos
nem metade cansados. Se se pára, boceja-se e vem
o tédio. Agora, dividimo-nos ao meio e, enquanto
um vai para Armamar, o outro fica no Centro de Saúde
de Moimenta que – embora ainda não oficializado
– já funciona.
Parabéns, muitos parabéns pelos êxitos
do conhecido agricultor e excelente arquivista, Ghozé
Pablito. Dá mais pormenores da EDP. E quanto ao Propedêutico,
explica melhor o que ainda falta fazer para te considerares
safo.”
O Paulo respondera a um anúncio e, nesse mesmo ano,
ou no seguinte, começou a trabalhar na EDP, depois
de ter terminado, efectivamente, o famoso ano Propedêutico.
“Hoje recebi, no hospital, um telefonema do pai.
Agradeço que lhe digam que nunca falo muito ao telefone
porque, invariavelmente, está uma freira ao meu lado.
E nunca me senti à vontade perto das esposas de Cristo.
Contentes, muito contentes andam os putos, cada um na sua
escola, travando novos conhecimentos todos os dias e entendendo-se
muito bem com o Zé. Com o Kiká (horrível,
este diminutivo!…) a coisa não é tão
boa, mas nunca está cá em casa, nem se dá
por isso (quase…)”
Os putos não tiveram, de facto, problemas em arranjar
amigos. Alguns slides registaram para a prosperidade os
nossos filhos, muito corados, graças ao frio beirão,
que enrija os ossos e enche a cara de cieiro, em alegre
comunhão com putos autóctones, geralmente
junto a carros antigos e abandonados que fui fotografando,
como um velho Skoda dos Bombeiros.
“Próspera, muito próspera, esta
vila de Moimenta. Interessada, muito interessada pelo Astro.
Bêbados, muitos bêbados, ao domingo, nas ruas.
Devotos, muito devotos os seus habitantes.”
Para quem já não se lembra, a televisão
ainda era a preto e branco; depois da “Gabriela, Cravo
e Canela” – a primeira telenovela brasileira
a passar na televisão portuguesa e que até
nós víamos – veio toda aquela série
interminável de telenovelas que nunca mais largaram
o pequeno écran, como sói dizer-se. Naquele
momento, era “O Astro”, que dominava o dia a
dia das pessoas. A nossa relação com a televisão
sempre foi pacífica: nunca dominou as nossas rotinas
mas também não a recusávamos liminarmente.
Em 1977, penso eu, foi graças à televisão,
por exemplo, que entrámos em contacto com essa trupe
de génios chamada Monthy Pyton. Admiradores incondicionais
do John Cleese e seus capangas. Sempre!
“(…) Lembrem-se do vosso irmãozinho,
aqui desterrado, doudo, doudinho de todo por colecções.
Guardem-lhe todos os rótulos e embalagens que arranjarem.
Rótulos de refrigerantes, vinhos, vinagres, tira
nódoas, sabonetes, pastilhas elásticas, chocolates,
pastas dentífricas, lâminas para a barba, pensos
higiénicos – tudo! Mas só em bom estado.
E introduzam as vossas cartas em sobrescritos impressos.
Pois é, também faço colecção
de envelopes timbrados.
(…) Falemos da miscegenação das raças.
É um fenómeno antropologicamente interessante.
Toda a gente culta sabe que o mulato surge do cruzamento
de um branco com uma negra, ou vice-versa. E qualquer pessoa
poderá imaginar – se tiver imaginação
para tanto!… - os estranhos híbridos que resultarão
do cruzamento de um esquimó com angina de peito com
uma cigana maneta; de um negro africano com uma sueca com
bicos de papagaio; de uma norte-americana maníaca
com um chinês malcriado; de uma tailandesa virgem
com um holandês careca; de um moçambicano recém
fuzilado com uma francesa em menopausa; de uma portuguesa
com um negócio de capelista na Amadora com um australiano
criador de gado. Mas o que ninguém consegue imaginar
é o resultado do casamento de uma portuguesa porca
com um português imundo, ambos de raça branca.
Têm trinta segundos para responder.
Aqui vai a resposta: pois o resultado é um fedor
de fugir. Trata-se de um indivíduo de oito anos,
por exemplo, crónico da 1ª classe que, embora
aparentemente de raça branca, possui dois pés
(que sorte!) completamente negros! O mesmo se passa com
as mãos, a cara e algumas regiões do corpo,
habitualmente identificadas como refeguinhos e preguinhas.
O fedor é tal que – acabada a consulta –
se abrem todas as portas e janelas para arejar…
Encontramos destes indivíduos (curiosos híbridos,
na verdade…) quando visitamos as escolas da região,
fazendo aquilo a que se chama saúde escolar. E não
é pobreza, não! É merda! Uma alegre,
profunda e longa tradição de merda, que já
vem do tempo dos Afonsinos. Consta que a cabeça de
um dos aios de D. Afonso Henriques rolou, quando o pobre
homem sugeriu ao eminente monarca que, pelo menos anualmente,
lavasse os sovacos reais. Só o frete de tirar a cota
de malha e aquela trapalhada toda! Está provado que
os cadáveres dos antigos reis cheiram muito pior
que os dos mais recentes ministros.
Outra curiosidade antropológica da região
refere-se ao aparelho genital de algumas mulheres. Com efeito,
há por aqui senhoras que, desgraçadamente,
não possuem vagina. Em seu lugar têm, por exemplo,
boca do corpo (o que também é frequente em
Lisboa…), virgina ou mesmo BENZINA! Ao contrário
do que acontece por aí, aqui não se mede nem
se tira a febre – pesa-se. Não se tem papeira
ou parotidite – tem-se trasorelho. Há quem
tenha fracturado a costela de uma vértebra. Penduram-se
embrulhinhos com ervas ao pescoço dos recém
nascidos para afastar os maus olhados. Espremem-se as mamas
das bebés para que possam amamentar no futuro. Vai-se
ao bruxo frequentemente e, de vez em quando, ao médico.
Curiosidades!…”
Curiosidades, de facto, próprias de médicos
em princípio de carreira, ainda muito influenciados
pela ciência desinfectada da Faculdade. Hoje em dia,
vinte e tal anos depois, já é difícil
ser surpreendido por algum doente, embora, quando um doente
me pede que eu lhe passe uma embalagem de ampolas bebíveis
“Tonicha”, em vez de “Tonicê”,
eu ainda fique hesitando entre o espanto e o encolher de
ombros…
A 18 de Maio, escrevi uma carta para o Zé e Mizé,
em que falava, nomeadamente, da Carreira, com a qual travámos
conhecimento graças ao mau funcionamento do R4. Transcrevo:
“A avaria do transporte individual permitiu-nos
conhecer “A Carreira”. Pois a Carreira liga
Viseu á Régua, passando por Moimenta e Armamar
e servindo todas estas terreolas. Percorre a distância
entre Moimenta e Armamar (25 quilómetros) em cerca
de uma hora – já que as paragens, pelo caminho,
são longas, descarrega o cesto, carrega o caixote,
recados para o motorista, etc. – e a troco de vinte
oito escudos, o que para nós os dois sai mais caro
do que ir de carro. Mas para se conhecerem os horários
da Carreira, é uma verdadeira epopeia. Após
várias tentativas infrutíferas, chegámos
ao café Octávio, onde a patroa nos informou,
de cor, o horário. E toda a gente ficou surpreendida
por nós querermos um horário impresso! Não
há, nunca se viu tal coisa! A camioneta vem de Viseu,
chega aqui a Moimenta entre as oito e as oito e trinta e
chega a Armamar quando chegar, nunca antes das nove. E de
Armamar para cá, tudo depende do comboio Porto –
Régua. Se o trem chegar a horas, a Carreira está
em Armamar às 18 horas. Senão... É
só esperar…
(…) É altura de falarmos do Dr. Nelson –
figura milleriana. Ainda só conversámos com
ele uma única vez, exactamente na tarde da nossa
chegada a Armamar, mas o homem, sedento de ouvidos que o
escutassem, agarrou-nos com ambas as mãos e, no largo
da Câmara, contou-nos toda a sua vida.
Tendo 70 anos, o Dr. Nelson é do tempo em que os
animais falavam. Logo após a licenciatura, exilou-se
voluntariamente em Vila Seca – a cerca de seis quilómetros
de Armamar – para onde foi tomar conta de um pequeno
hospital (hoje asilo). Nessa altura, ele fazia de porteiro,
enfermeiro, parteiro, farmacêutico e médico.
Para além dos doentes, não havia mais ninguém
no hospital, a não ser o Dr. Nelson. Munido de um
precioso caderninho, trazido da Faculdade, e com a ajuda
de uma balança de precisão, ele próprio
fabricava os medicamentos que receitava. Sem nunca ter sido
particularmente instruído, fez mais de um milhar
de partos, sem um único insucesso. E durante 25 anos
foi o único médico do concelho. Na década
de sessenta, já cansado, foi encarregado pela Secretaria
de Saúde, de levar a cabo, no concelho, a Campanha
Nacional de Vacinação. Como é fácil
de imaginar, era difícil convencer os pais da necessidade
em vacinar os filhos. Pois se eles nem estavam doentes!…
Depois de várias tentativas frustradas – e
apesar do seu feroz anticlericalismo – acabou por
recorrer aos padres. E começou a vacinar as crianças
aos domingos, depois da missa. Mas mesmo assim, muitas delas
ficavam por vacinar. Vai daí, pediu a colaboração
das autoridades, isto é, da GNR. E aí vão
os garbosos cabos intimar as mães faltosas a apresentarem
os seus filhos à vacinação. E foi assim
que o Dr. Nelson conseguiu vacinar todas as crianças
do concelho de Armamar. Presentemente, definitivamente cansado,
limita as suas actividades a uma restrita medicina particular
em Vila Seca e a meia dúzia de peritagens médicas,
a pedido da Câmara. Nomeado, compulsivamente, subdelegado
de Saúde, aceitou com a condição de
não por os pés no Centro de Saúde.
A sua teoria é de que os policlínicos devem
estar à vontade. E assim, quando o Centro precisa
de enviar algum documento oficial, o empregado da secretaria
(outro milleriano) dactilografa e, ás segundas ou
quintas à tarde, vai até à Câmara
pedir a assinatura do Dr. Nelson e o selo branco do Centro,
que o doutor transporta no carro.”
Percebe-se que deveria ser este famoso Dr. Nelson, de quem
não recordo sequer se tinha bigode ou usava óculos,
a tutelar e orientar o nosso estágio de Saúde
Pública. Pois…
A 24 de Maio, o Zé e a Mizé, respondem-nos:
“Eis que vinte e cinco dias se cumpriram sobre
a madrugada da vossa partida para as terras que bordam a
meseta e ainda não aconteceu surgir, aqui pelo sul
(enfim, sejamos claros: cá em casa), nenhum hábito
novo de vida de família única, a não
ser um que já conhecíeis vagamente: fazer
questão de distinguir, com um mínimo de rigor,
os livros do lixo, quando ambos se começam a entrelaçar
pelo chão. Ainda não deitámos nenhum
livro fora, mas já conseguimos ler ardente prosa
em apetecidos bocados de esterco (como se sabe é
também admissível ler ardente esterco em apetecidos
bocados de literatura, mas isso, isso…)”
O Zé e a Mizé eram, na altura, assistentes
universitários do professor Gustavo, em Biomatemática,
na Faculdade de Medicina de Lisboa, exactamente no Hospital
de Santa Maria. Coincidências. Ao que parece, o trabalho
era muito e o professor Gustavo, um ditador, que pouco tempo
livre lhes deixava. Quem sofria era a Joana, privada da
companhia dos amigos/irmãos e obrigada a ficar horas
sem fim na creche, aguardando os pais, que chegavam sempre
ao fim da tarde, estoirados e com pouca paciência…
Logo a 26 de Maio, segue mais uma carta para o Algueirão,
com quatro páginas, em que falo um pouco da nossa
vida sexual naquele quarto minúsculo:
“A nossa vida sexual continua monótona
(embora regular, convenhamos e sublinhemos…) A única
diferença é que somos obrigados a fazer amor
tout doucement, como diriam os aborígenes, porque
se o ritmo da cavalgada se exacerba, toda a cama range e,
com ela, as prateleiras acopladas à cabeceira e,
com estas, o chão de madeira e o próprio quarto,
que tem as seguintes medidas: 2 por 2 metros! E não
esquecer que, ao lado, a Marta dorme. No delírio
da paixão não é raro que tome a mão
da inocente criança, pensando que se trata da Mila.
E vocês estão a ver: a Marta é virgem
e gostaríamos de a manter assim, pelo menos, até
ao seu primeiro namoro.
Além do “pequeno problema” de logística
sexual, há a questão da convivência.
Claro que, durante o dia, a casa está sempre vazia.
Mas, enfim, acabamos sempre por nos cruzar com alguém
que também cá dorme. E, neste capítulo,
que temos? O Ricardo, coitado, mija e caga nas fraldas e
passa o tempo a dizer: “Sou fote, sou do Poto!”
(tradução: sou forte, sou do Futebol Clube
do Porto)…
(…) A avó Rita é irreconhecível.
Logo pela manhã, levanta-se e pira-se para a Açucarinha
– vai aviar bolos, iogurtes, ver quem entra, quem
sai, quem fica. Regressa a casa às onze da noite,
por vezes mais tarde. Apesar de dormir cá em casa,
vêmo-la menos do que quando aí estava.”
A minha avó que, como já tive oportunidade
de dizer, toda a gente da família sabe ser eterna,
tinha, então, 71 anos e trabalhava mais de doze horas
por dia, e gostava. As suas relações com o
meu pai nunca foram as melhores. Viúva desde muito
nova (o meu avô Fernando morreu antes de eu nascer,
com tuberculose), viveu sempre em nossa casa, até
à morte da minha mãe. Depois, se as relações
com o Zé Couto já eram tensas, sem a presença
da Mariazinha para atenuar as coisas e deitar a tal água
na fervura, aquilo começou a ser insustentável
e a avó foi para Moimenta, onde foi recebida de braços
abertos – sempre era mais uma ajuda na Açucarinha.
A profissão da avó Rita sempre foi essa mesma
– avó. Mas, há muitos, muitos anos,
quando os animais ainda falavam, a avó Rita tinha
sido cozinheira na chamada Casa do Benfica, onde ficavam
alojados os jovens jogadores da província que vinham
jogar para o grande clube da capital. A experiência
como cozinheira foi aproveitada pela Açucarinha que,
a troco de cama, mesa e roupa lavada, contratou mão
de obra barata para a confecção dos almoços
e jantares.
Entretanto, o isolamento proporcionava a leitura e descobríamos,
a pouco e pouco, o Aquilino Ribeiro e a sua linguagem muito
particular. Como não tínhamos levado connosco
nenhum dicionário, íamos lendo, em voz alta,
“A Grande Casa de Romarigães”, sublinhávamos
os termos cujo significado desconhecíamos, escrevíamo-los
numa folha à parte e enviávamos para o Algueirão.
Pacientemente, a Mizé ia procurando o significado
de tais termos no dicionário e enviava, de volta,
a descodificação da linguagem aquiliniana
. Na nossa carta de 1 de Junho, falo do empregado da secretaria
do Centro de Saúde de Armamar:
“E é altura de falar um pouco do Sr. Carlos
– o empregado da secretaria – melhor falando
– ele é a própria secretaria que, como
já referimos, fica na sala da enfermeira, onde se
medem tensões, se “pesam” febres, se
pesam os bebés e as grávidas, se guardam os
haveres dos médicos.
Pois o Sr. Carlos, retornado de Moçambique, em vez
de coçar os testículos no Rossio, comprar
a “Barricada” ou irritar-se com o Rosa Coutinho
– decidiu vir coçar os testículos para
Armamar – concelho a que pertence por nascimento.
Não faz absolutamente nada. Há um mês
que cá estamos e apenas o vi executar dois trabalhos,
aliás impecáveis: escrever um ofício
para Viseu, pedindo um carimbo para o Centro – trabalho
que lhe levou três dias; e preencher as nossas folhas
de ponto, o que fez no dia 28 do passado mês.
Na sua juventude, o Sr. Carlos conviveu com alguns escritores
distintos: José Régio. Tomás de Figueiredo,
Branquinho da Fonseca e outros, que costumavam passar férias
em Aldeias – uma aldeia perto de Armamar. Conta que
o Tomás de Figueiredo andava sempre de bloco em punho,
anotando termos do dialecto local e respectivo significado,
tendo depois escrito um dicionário de linguagem corrente
(que eu desconheço). Uma das frases que figuram nesse
dicionário é “meias de londra”.
Origem: quando por cá apareceram as primeiras meias
de vidro, a embalagem dizia que as meias eram fabricadas
em Londres – daí, meias de londra.”
Além do Sr. Carlos, que era, de facto, uma figura
interessante, o nosso dia a dia no Centro de Saúde
era também partilhado com a enfermeira, uma moça
nova, oriunda de uma aldeola chamada S. Cosmado, e que formava,
connosco, uma verdadeira equipa de saúde, muito antes
de se falar em equipas multidisciplinares, daquelas em que
é preciso dezenas de reuniões para estabelecer
objectivos e fazer avaliações e transformar
o simples de fazer, no impossível de concretizar.
Continuando:
“(…) A influência da igreja é
a que vocês calculam. Com a agravante de estarmos
a trinta quilómetros de Lamego, pelo que as mais
abjectas publicações católicas chegam
a Moimenta com mais regularidade que o TinTin – o
que nos preocupa. Cá por casa anda tudo numa roda
viva por duas razões piedosas: a primeira comunhão
do Zé Artur e da Carla e a procissão do dia
24, dia de S. João. Quanto à comunhão,
a coisa atinge níveis impensáveis –
uma verdadeira bambochata, como diria o Eça. (…)
E o Zé e a Carla aplicam-se denodadamente. Todas
as tardes têm catequese. E, na mão, transportam
sempre o “Catecismo Formulário”. Para
que a comunhão seja um êxito têm que
saber: os dez mandamentos, os mandamentos da santa igreja
e as obras de misericórdia. Estas dividem-se em corporais
e espirituais.
Obras de misericórdia corporais: dar de comer a quem
tem sede; dar de beber aos nus; vestir os que têm
sede; dar pousada aos mortos; visitar os peregrinos; enterrar
os presos.
Obras de misericórdia espirituais: ensinar as injúrias;
corrigir os vivos e os defuntos; consolar os ignorantes;
perdoar a deus; sofrer com paciência os Seus erros
e fraquezas.”
Eu também fiz a primeira comunhão, mas de
modo clandestino. Se o Zé Couto soubesse, passava-se!…
Foi em Santiago de Cassurrães, aldeia perto de Mangualde,
distrito de Viseu, e onde nasceram todos os meus ancestrais
maternos e, também, por coincidência, a minha
avó paterna, e onde nós íamos passar
alguns dias, todos os Verões. Devia eu ter uns oito
ou nove anos, quando a minha avó e a minha mãe
organizaram a cena; esperaram que o Zé Couto saísse
do casarão da família (e que ainda lá
está, todo esbarrondado, ameaçando cair na
Rua Direita), para a sua habitual visita às pequenas
adegas da região e levaram-me ao senhor prior. O
homem sentou-me lá na sacristia e fez-me uma série
de perguntas sobre os pecados. Lembro-me que me senti aflito,
tentando confessar-lhe algo que satisfizesse a sua mente
inquisitória. Eu tinha sido instruído que
devia dizer a verdade, e só a verdade, ao senhor
prior. No entanto, por mais que puxasse pela cabeça,
não me lembrava de nenhum pecado: ainda não
começara a roubar discos na Discoteca do Carmo, ainda
não sentira vontade de levantar as saias a uma miúda
e ver o que estava por baixo, ódio, gula e inveja
eram palavras difíceis, que eu mal sabia escrever;
de modo, que contei-lhe uma treta qualquer sobre rebuçados
e doces e ele mandou-me rezar dez padres nossos e igual
número de avés marias, após o que comunguei
e a minha primeira comunhão ficou consumada. Foi
um segredo que mantive bem guardado. O meu pai nunca soube
de nada disto. Na minha cabeça, a primeira comunhão
tinha sido, simbolicamente, o meu primeiro desafio à
autoridade paterna - ao fim e ao cabo, o meu primeiro pecado!
Voltemos à Correspondência da Beira.
Em Junho, a Luisa estava grávida. Infelizmente, a
gravidez não chegou ao fim e a nossa troca de correspondência
com ela e com o Jorge focava, quase sempre, esse tema. Transcrevo:
“Comecemos por falar desse rebento, tão
ansiado, aguardado até ao desespero, transformado
em sangue escuro e pastoso mensalmente, para desilusão
geral – sobrinho que já gastou aos pais horas
de angústia, quando se contavam os dias de atraso,
que já pôs em dúvida a capacidade reprodutora
dos mesmos pais, que obrigou o futuro engenheiro hidráulico
a ejacular-se para tubos de ensaio que sabe-se-lá-por-onde-andaram,
bem como a enfrascar-se em Sargenor, buscando na droga uma
maior potência reprodutora. (…) A Mila já
vai na feitura do segundo casaquinho de lã para o
sobrinho, pelo que – a continuar neste ritmo –
o puto terá, só da parte da tia, dezoito casacos;
se adicionarmos os trinta e cinco que lhe serão ofertados
pela avó materna e mais os sessenta e sete da restante
família, aconselho-vos a desistir, quer da educação
infantil, quer da engenharia de minas, e dedicarem-se ao
comércio retalhista, procurando uma loja vaga no
Terminal.”
Naquela altura, a Luisa, concluído o curso de educadora
infantil na escola João de Deus, já estava
a trabalhar no seu ramo, enquanto o Jorge, estava a acabar
o curso de engenharia mecânica no Instituto Superior
Técnico. Casados há dois anos, tentavam desesperadamente
fazer um filho. Nunca conseguiram. Em compensação,
fizeram duas filhas, as minhas duas únicas sobrinhas:
a Inês, agora com 19 anos, e a Rita, que vai fazer
7 anos.
Como já contei no capítulo anterior, os nossos
primeiros tempos em Moimenta foram de desespero automóvel,
graças às constantes avarias do R4, que passámos
a designar por “latas”. Aqui vai um trecho da
carta de 7 de Junho, enviada para o Algueirão (e
notem que a periodicidade das cartas era mesmo semanal…):
“Praticamente desde que chegámos que temos
tido o carro na oficina, exceptuando alguns dias que serviram,
apenas, para estragar outra peça. Tudo começou
por um ruído esquisito que se fazia ouvir quando
o carro abrandava, curvava ou descia a boa velocidade. Os
mecânicos moimentenses acharam que era da bomba de
água. E mexeram-lhe. E – nenhuma admiração
– encontraram algumas peças para substituir.
Passados poucos dias, as mudanças não entravam.
Afinaram a embraiagem. Dois dias volvidos, as mudanças
continuavam a não entrar. Mudaram um prato e o disco
de embraiagem. E voaram quase seis contos. Conseguimos fazer
mais cerca de 120 quilómetros. Eis senão quando,
na segunda feira à tarde, a caminho da escola de
Paraduça, por uma estrada incrível, seiscentos
metros de covas, terra solta e a subir, o carro começa
a ferver – helás! A água do radiador
fervia mesmo! Deixei-o ficar muito quietinho perto da escola,
regressámos à boleia, no carro da professora,
e os excelentes mecânicos foram lá buscá-lo.
No dia seguinte explicaram o fenómeno com a maior
das naturalidades. Com efeito, mostraram-me uma peça
que, como muitas outras, eu desconhecia e que tinha um encaixe
partido. Trata-se de uma peça em aço maciço,
com uma espessura considerável e serve, se não
estou em erro, de aplicador à bomba de água.
Um dos encaixes estava, de facto, semi partido. Por isso,
a correia da bomba de água lassava e a água
não circulava bem. Trampa! (…) Lá soldaram
a peça e xôtôr pode ir descansado. A
Mila tinha ido para Armamar pelo que me dispus a ir buscá-la.
Andei seis quilómetros, nem mais nem menos. E ei-lo
a ferver como uma panela de pressão. Regresso em
ponto morto, aproveitando as descidas e chego são
e salvo à oficina. Que não podia ser! Que
o carro estivera a trabalhar sozinho mais de uma hora e
não fervera! Porra! Não seria das minhas mãos,
com certeza! Finalmente, os mecânicos moimentenses,
já um pouco desconfiados da minha sanidade mental,
dispõem-se a pensar inteligentemente, procurando
todas as causas para o aquecimento do radiador; tira água
dali, enfia acolá, vê o termóstato,
olha para a chaufagem – nunca vi tanta água
a sair de tantos tubos. Uma verdadeira lição
de mecânica. Até pensei que a porcaria do carro
trabalhava a água! Feitas as experiências consideradas
indispensáveis e – já com sorriso escarninho
nos lábios – o mecânico diz-me: bom,
xôtôr, vamos lá dar uma volta, a ver
se isto ferve! E fomos: uma subida íngreme até
Caria, cerca de cinco quilómetros, foi o suficiente
– o tubo que liga o depósito de água
ao radiador até estoirou com o calor; o carro bufava,
fervia, resfolegava, parecia uma locomotiva a vapor. O mecânico
derreteu-se em desculpas; se tivesse um buraco, enfiava-se
nele: era a porra da bomba da colaça (ou será
da colassa?) Ó xôtôr desculpe, eu vou
já tratar disto, eu mudo-lhe o óleo, eu lavo-lhe
o radiador, eu isto, eu aquilo, só lá vai
buscar o carro quando estiver completamente bom, eu vejo
tudo, eu faço tudo. E lá está a fazer…
Entretanto, ainda aproveitei a oportunidade para fazer uma
consulta ao bate-chapas, cheio de tiques e neuroses. O homem
chorou, agradeceu, afirmou que aquela consulta valia contos
de reis, mas que não pagaria em dinheiro, mas sim
de outra maneira – pelo que penso que posso contar
com uma pintura do carro à borla.”
Claro que o R4 não precisou de pintura nenhuma,
porque acabámos por nos desfazer dele, já
que ele estava prestes a desfazer-nos a nós. Quanto
à consulta ao bate-chapas, é típico
da nossa profissão – vinte e quatro horas de
serviço. Não se pode ir almoçar ou
jantar fora, dar um passeio pela praia, ir comprar peixe
ao mercado ou carne ao talho, que não apareça
alguém a pedir um conselho, uma opinião, uma
consulta. Enfim, ossos do ofício, não é?…
Durante alguns dias, fomos propiretários de dois-carros-dois.
Ei-los, à porta da casa dos meus tios, em Moimenta:
o Fiat 124, recém-adquirido e o Renault 4, à
espera de um trouxa que o comprasse.
Mas, apesar do problema do carro nos consumir, ainda tínhamos
disposição para continuar a desbravar o Aquilino
e a imitar a sua escrita, como neste naco da nossa carta
de 15 de Junho:
“Com a estiagem que tem feito, encontramos refrigério
nos almargeais do Távora. Levamos sempre duas ou
três alfombras, onde os crianços se espulinham
à vontade e ali passamos um pedaço da tarde.
A estrada não é má de todo até
certa altura, depois pode dizer-se que é uma verdadeira
congosta, embora alcatroada. Ao longo do caminho, o bodum
não deixa de se fazer sentir, pelo que, volta não
vira, lá está a Marta a fazer carrancas, e
somos obrigados a parar para ela descarregar. O farnel é
obrigatório, e enquanto os miúdos se entretêm
aos pulins, nós vamos esburgando uma galinha, chuchurreando
uma Carlsberg, obtida nos armazéns da Açucarinha,
através de algum embeleco bem urdido. Hoje mesmo,
o Pedro e a Marta estão numa freima, aguardando a
tarde. A paisagem nunca cansa: os bacelos a cheirar bem,
as leivas por toda a parte, um qualquer córrego coleando
pelas encostas, dois ou três asnos antropologicamente
lerdos, um carro de bois de apeiros encerados, guardado
por um bazulaque tipicamente luso, meia dúzia de
bigorrilhas, afiando cravelhos para as cancelas das suas
leiras – um cenário propício a endechas;
e o ar que se respira a afirmar que os farricocos não
fazem negócio para estas bandas. Ao fim da tarde,
guardamos tudo à matroca na mala do automóvel,
e regressamos quando as estrelas começam já
a lucilar no céu.
A nossa popularidade cresce diariamente, embora a obtemperança
desta gente nos aborreça, como podem calcular. No
entanto, ela não é tão intensa como
supúnhamos. Se eles soubessem que não passamos
de uma família de pirangas que, por exemplo neste
momento, aguardamos o estipêndio para pagar as calotas!…
Apesar do aumento, isto de ser médico à periferia
não é nenhuma conezia e, se alguém
pensa que, lá por sermos doutores, nos podemos entregar
a bardinices, engana-se. Esperamos ter tudo resolvido no
fim deste ano, caso contrário ainda arranjamos uma
vesânia qualquer e dá-nos ataque em plena rua
– o que nos expõe a receber o viático
á vista de toda a gente.
O meu tio, não satisfeito com a magra tença
que obteve, prossegue em veniagas e endróminas –
um autêntico esmerilhão. Para nós é
igual, porque continuamos sem pagar um caurim pela alimentação.
Embora o escote seja igual para os três sócios,
o meu tio cede a decisão ao sogro, que não
se descose. E vamos acogulando os ventres à borla.
O pior é se nos avezamos a este esquema e, depois,
quando nos pedirem o dinheiro, corremos a alapardar-nos
nalgum fojo do monte. Apesar destas facilidades, não
nos estamos a cevar, não pensem! Continuamos verdadeiramente
alfenins; a Mila, então, está mesmo taful
com o vestido novo que comprámos no Porto. O Pedro
continua dilúcido, mas ganhou um desgarre que lhe
desconhecíamos. Já não é aquela
criança flébil a que estávamos avezados.
Um galipanso completo! A Marta medrou e com as garnachas
que a avó Arminda trouxe de Lisboa, está cada
vez mais faceira.
E parece que chegou o tempo de terminar este aranzel, que
vai longo.”
Assim se divertia quem não tinha mais que fazer…
Também não é bem assim: em Junho, tivemos
outro divertimento – os festejos de S. João,
nomeadamente, a procissão, que descrevi assim:
“Abria a procissão a fanfarra dos Bombeiros
de S. Mamede de Infesta, com as suas majoretes com bom pernão,
roçando até assar a ratinha; seguiam-se os
pendões, o último dos quais (a Senhora Deles),
era transportado por um puto com uma t-shirt estampada com
uma gravura do Sandokan (Nossa Senhora na mão e Sandokan
no coração); depois vinham os andores, puxados
por excelentes tractores Fiat – entre os andores vinham
as várias figuras: várias santas Efigénias,
um Papa Paulo VI com uma espécie de antena de televisão
na mão, e santos sortidos, e os três pastores
de Fátima (duas miúdas e um miúdo que
não tinham mais que três anos), um santo qualquer
com um borrego, um padre a sério e uma banda, que
fechava a procissão. Ao longo do extenso trajecto,
os vários santos e santas iam sendo dessedentados
pelas respectivas mamãs, com Sumol ou Fruto Real.
E não é todos os dias que se vê um S.
João a beber Sumol! No final do percurso já
ia tudo esbarrondado: os soldados romanos haviam dado as
espadas e os elmos às mamãs, os anjinhos desistiram
de transportar as coroas e as asinhas, as santas puxaram
os véus para trás ou deixavam mesmo os cabelos
esvoaçar ao vento, o tal santo cujo nome não
me lembro, havia passado o cordeiro a alguém, e os
elementos da banda faziam concurso, a ver quem desafinava
mais.”
O Zé Artur também participou na procissão,
vestido de S. Expedito. Nunca perguntei ao Pedro se não
terá ficado com inveja de – por causa do ateísmo
feroz do seu pai – não ter participado na procissão.
É que o S. Expedito ia vestido de soldado romano
e brandia uma espada ameaçadora, o que dá
sempre algum gozo aos miúdos…
Mas enfim, tirando as avarias constantes do R4 e a consequente
compra do Fiat 124, dos livros do Aquilino e da procissão
e festejos do S. João, que mais havia? Pouco mais…
Mas há males que vêm por bem. Estava afastado
da minha excelente aparelhagem de som, fabricada a partir
de um velho amplificador Onkyo que, na chamada oficina Zé
da Gatinha, tinha sido transformada numa autêntica
bomba sonora.. A oficina Zé da Gatinha não
era senão a tenda de campismo onde o Jorge e um amigo,
engenhocas como ele, o Eurico, desfaziam e refaziam toda
a espécie de aparelhos de som. Afastado, portanto,
da aparelhagem, não tinha outro remédio senão
ouvir rádio, e assim me reaproximei do rock, recomeçando
a aprendizagem com os Police e “Message in a bottle”.
Bee Gees é que não; quando os irmãos
cantavam “To Love Somebody”, por exemplo, ainda
se aturavam mas, quando começaram a esganiçar
as vozes e lançaram o disco sound, não havia
paciência. O Paulo enviou-me uma carta, por essa altura,
em que, usando como base, o Manifesto Anti-Dantas, do Almada,
escreveu um manifesto Anti-Travolta, que começava
assim:
“Uma geração que consente deixar-se
representar por um Travolta é uma geração
que nunca o foi. É um coio de detergentes, de indignos
e de surdos, é um rolo de papel higiénico
e só pode cagar no penico. Abaixo a geração!
Morra o Travolta, morra…PIM!
Uma geração com um Travolta num descapotável
é uma Dona Elvira de pneus furados. Uma geração
com um Travolta a pescar é uma peixaria sem bacalhau.
O Travolta é paneleiro. O Travolta é meio
paneleiro. O Travolta saberá vestir-se, saberá
pentear-se, saberá ir à casa de banho, saberá
tudo menos dançar, que é a única coisa
que ele faz. O Travolta pesca tanto de dança que
faz bailados ao som do tambor dos pupilos. O Travolta é
gordo. O Travolta veste-se mal. O Travolta usa slips Tebe.
O Travolta especula. O Travolta é um intermediário.
O Travolta é Travolta. O Travolta é John.
Morra o Travolta, morra…PIM!”
E continuava no mesmo tom, o Dr. Ghozé Pablito,
na sua fúria contra o intérprete do “Saturday
Night Fever”. Nunca vi tal filme, mas o Travolta,
anos mais tarde, redimia-se, entrando no grande “Pulp
Fiction”. A idade faz bem às pessoas…
Entretanto, em Agosto, o nosso entusiasmo por Moimenta começara
já a esmorecer. As férias que viemos passar
ao Algueirão fizeram-nos mal, na medida em que confirmámos
o que estávamos a perder, ao viver desterrados em
terras do Demo. Saudades sobretudo da nossa reforma agrária.
O Zé e a Mizé, atarefadíssimos com
o trabalho na Faculdade, tinham arranjado um tipo chamado
Petronilho para dar um jeito no quintal, mas nós
é que gostaríamos de estar lá para
cavar e semear e regar e colher e podermos ir comprar víveres
ao famoso Vítor da Torrejana, exemplo seguro do comércio
local e dono da mercearia-taberna que ficava no lado de
lá da nossa rua. Na nossa telúrica troca de
cartas, perguntávamos sempre pelo Vítor da
Torrejana. Era uma das nossas brincadeiras preferidas: introduzir
um pouco de absurdo em tudo o que dizíamos ou fazíamos.
Nunca tivemos nenhum relacionamento especial com o tal Vítor
e nem sequer sabíamos se Torrejana provinha de Torres
Novas ou Torres Vedras, ou nenhuma das anteriores; mas,
falar do Vítor da Torrejana nas nossas cartas, era
o tal elemento absurdo. Como o “homem dos cenários”,
por exemplo, um tipo que nada tem a ver com a peça
e que, sem ninguém saber porquê, entra e sai
de cena sem nada dizer ou fazer. O mesmo se passava com
o “pequeno cubo azul”, elemento absurdo que
também gostávamos de referir nas nossas conversas
e que simbolizava, de certo modo, as coisas sem sentido
que vão acontecendo na vida e que fazem dela uma
sucessão de acontecimentos, não obrigatoriamente
relacionados. Na mesma linha se situava “o fim da
carcacinha”. Eu explico: por razões misteriosas,
costumo sempre deixar ficar qualquer coisa no prato; desde
muito pequeno que me lembro de comer o pão com manteiga,
açúcar e canela até ao fim, mas deixar
sempre o mamilo do pão – o tal fim da carcacinha.
Hoje em dia, o mesmo se passa com tudo: não bebo
o café até ao fim, deixo ficar sempre o último
pedaço do croquete ou do rissol – enfim, o
fim da carcacinha, entendem? Talvez não, mas também
não consigo explicar melhor…
As saudades do Algueirão e o regresso a Moimenta,
após as férias, para mais cinco meses de desterro,
provocavam coisas como esta que a Mila descreve numa carta
para o Zé e a Mizé:
“Talvez descrever-vos um dos passatempos que
descobrimos recentemente e do qual sou uma verdadeira aficcionada.
Trata-se, nada mais nada menos, a caça a uns certos
objectos voadores munidos de duas asas e que fazem bzz,
bzz, por cima das nossas cabeças, pousando por vezes
nos sítios menos próprios e que nos ralam
o juízo metodicamente, tenazmente, religiosamente.
Pois é, munimo-nos do pano das limpezas (?) convenientemente
encharcado e zumba nelas. Pormenor estatístico: costumo
falhar mais de 50%, mas espero obter melhores marcas no
fim da época.”
Matar moscas, um divertimento!… Mas em Setembro,
algo de novo acontecia e abanava o nosso quotidiano: a tia
Odaleia, irmã da avó Rita, teve uma trombose,
coitada…
Ora, estando a tia Odaleia internada no hospital de Viseu,
em estado grave, a minha avó foi para Santiago, para
tomar conta da casa da família, e nós fomos
até lá, até porque a Mila nunca tinha
ido à terra dos meus ancestrais, que será
tema do próximo capítulo. Ficámos siderados
com a quinquilharia antiga que por lá encontrámos.
Como o meu espírito coleccionista andava muito inflamado,
fiquei excitadíssimo com o que descobri e logo fiz
uma lista, que enviei aos Buques:
“164 postais ilustrados, quase todos eles datados
dos anos 30 ou 40; fotografias dos meus bisavós;
dezenas de botões antigos; inúmeras estampas
de santas que se veneram nas várias aldeias da Beira
Alta, orações especializadas para cada tipo
de mal, catecismos antiquíssimos, missais e outros
artigos religiosos; um estojo de barba de 1936; vários
volumes do almanaque Bertrand, de 1936 a 1944; o primeiro
par de chinelas que a minha mãe usou; um biberão,
também da minha mãe; uma latinha de solarine,
mais antiga que a Coração; uma latinha de
comprimidos da 1ª República; mapas humorísticos
da Europa; panfletos políticos do tempo do Sidónio
Pais…”
E a lista continuava, interminável. Durante algum
tempo, entretivemo-nos a transportar alguma dessa tralha
para Moimenta e numa dessas visitas (mais saque que visita,
sejamos francos…), ao meter o Fiat no tal pátio
interior, o toro de madeira que servia de rampa para o carro
entrar, deslocou-se e fiquei com o sacana do carro encravado.
O que vale é que as moçoilas de Santiago não
são como as de cá: duas raparigas, duas, pegaram
no carro em peso e desencravaram-no!
As cartas que escrevemos seguidamente, incluíam sempre
uma lista dos objectos que íamos trazendo de Santiago,
a que eu chamava “Relíquias do passado –
Loucuras do presente”.
Paralelamente, dei-me também ao trabalho de escrever
cartas a algumas empresas produtoras de vinhos, chocolates,
sabonetes, etc, pedindo-lhes rótulos dos seus produtos.
Muitas responderam-me e tinha já um dossier bem recheado
de rótulos. Calculam, portanto, o peso que o Fiat
teve que suportar, em Dezembro quando, finalmente, regressámos
ao Algueirão…
Entretanto, no topo das cartas, o nome de Moimenta da Beira,
foi sendo substituído, a pouco e pouco, por Tormenta
da Feira, Rabugenta da Eira…
Era o espírito do Vovô Gasosa e das suas Fábulas,
como “O Corvo e a Barbosa” (em vez de “O
Corvo e a raposa”). E que era feito do Mário-Henrique?
O Zé continuava a visitá-lo regularmente e
a Velha estava cada vez pior da sua artrite. Enviámos-lhe
uma .série de medicamentos que tínhamos arranjado.
Escreveu-me o Zé, dizendo que ele não sabia
como havia de tomá-los. Logo enviei ao Mário,
a seguinte carta:
“Disseram-nos que não sabias o que fazer
com tantos medicamentos. Decidimos, pois, explicar-te, o
mais sucintamente possível:
1º Os supositórios: todas as embalagens que
refiram, explicitamente, possuírem, no seu interior,
supositórios, deverão ser separadas das restantes,
a fim de se evitarem confusões desagradáveis.
Depois, pegue-se numa dessas embalagens, que será
cuidadosamente aberta. Retire-se do seu interior, um objecto
vagamente cilíndrico, com um dos topos afilados.
Estarás, então, em presença de um supositório.
Resta retirá-lo do invólucro plastificado
que o protege das intempéries, e seguir o conselho
de D. Daniel Comboni. (Seguia-se uma ilustração
de um padre, que tínhamos saqueado em Santiago, com
um balão que dizia: “Na peida!”)
D. Daniel Comboni, que foi o primeiro bispo da África
Central, além de fundador dos Missionários
Combonianos (missionários formados num comboio em
andamento), faleceu em 1881, apesar de toda a sua piedade,
e da grande confiança que gozava junto de Deus, a
quem visitava frequentemente. Mesmo assim – e porque
Deus não tem satisfações nenhumas a
dar a ninguém – veio a falecer, não
sem posar para um fotógrafo aborígene, formado
em West Point. Sem isso, teria sido impossível incluí-lo
neste estudo sobre as drogas.
Claro que, para enfiar o supositório na peida, basta
empurrá-lo com um dos dedos da mão direita
e, mal ele penetre, é só fingir que se engole
com o cu.
2º Os comprimidos e as cápsulas – É
este outro grupo de drogas que, ao contrário das
anteriores, deve ser ingerido pela boca – o que pode
parecer estranho e, de facto, é.
Os comprimidos são os de forma arredondada e têm
sido vulgarizados com o nome de “pílulas”.
Como nos confidenciou o cardeal patriarca de Lisboa, D.
Manuel Gonçalves Cerejeira, a importância da
pílula não é para desprezar. (Seguia-se
outra ilustração, esta do Cerejeira, cuja
legenda já não recordo…)
Quanto às cápsulas, é preciso ter muito
cuidado… A sua forma ovalar pode levar a confusões
perigosas (embora engraçadas…)
Resta acrescentar que, para facilitar a ingestão,
quer dos comprimidos, quer das cápsulas, pode beber-se
um pouco de água ou – o que será ainda
melhor – um muito de gin.
Se, por infeliz acaso, encontrares no saco dos medicamentos
algum xarope – não o bebas. O gin é
um tónico muito mais eficiente.”
Em Outubro, o Pedro iniciou, oficialmente, a sua vida de
estudante, ingressando na Escola Primária de Moimenta
da Beira, a fim de aprender a ler, a escrever e a fazer
contas. Diga-se de passagem, que o nosso filho, desde muito
novo, demonstrou a sua queda para as letras: tenho um slide
de Maio de 1976 (ainda ele não tinha completado três
anos de vida) que mostra o precoce rapaz a escrever o seu
nome, correctamente, numa ardósia.
O início das aulas do Pedro e outros acontecimentos
do quotidiano, era assim relatadas, na minha carta para
o Dr. Ghozé Pablito e Madame PasseVite (pseudónimo
da minha irmã na Correspondência da Beira):
“Foram instalados sinais luminosos (amarelo intermitente),
perto da escola primário e do liceu, mas o instrutor
da escola de condução acha que foi dinheiro
deitado à rua. O actual presidente da Câmara
não se candidata às próximas eleições.
Está farto de ser presidente. A estrada que leva
ao infantário da Marta está cheia de buracos
– não a arranjam porque, como nessa estrada
está situada a vivenda do sr. presidente, poderia
pensar-se em favoritismo. Por enquanto, o nosso carro ainda
vai sendo maior que os buracos. A Açucarinha floresce!
No outro dia deram um almoço para oitenta pessoas
e não havia mais pratos. Comemos em pratos de sobremesa.
Apareceu um pedaço de chave encravado na fechadura
do Lápis. Quem terá sido o malandro que tentou
forçar a entrada? O Pedro cada vez gosta mais da
escola e até já aprendeu o que são
animais domésticos. Acontece que, às segundas
feiras, o sr. padre vai à escola primária,
junta os miúdos das várias classes e faz palhaçadas!
O santo homem pediu que levassem um caderno para escreverem
o que ele escrever no quadro. Mas então que é
isto?! A religião faz parte do programa primário?!
Que fazer? Ir buscar o puto mais cedo às segundas
feiras? Assassinar o padre? Ensinar o puto a mandar o padre
à merda? Ou destruir, em casa, o que o padre tenta
fazer na escola? O tio Zé também vende revistas
pornográficas. O Bondoso esteve com diarreia. O Zézinho
mija todas as noites na cama. A Carla não sabia que
o sol é uma estrela. O Pedro já possui 45
carrinhos na sua colecção. A Marta também
está com diarreia. Hoje ficou de molho. Hoje comprei
um maço Sagres, porque não havia SG no sr.
Vitoriano. Comi lulas no sr. Vitoriano. O sr. Vitoriano
é o dono do café de Armamar. Chovia no nosso
quarto mas um pedreiro já compôs as telhas.
Os vossos copos, escovas de dentes e, se calhar, até
os próprios dentes, estão em casa da Arminda.
Ainda não vimos nenhum episódio da nova telenovela
Dancing days. Daqui a um mês a Bela faz anos. Parabéns.
O Zé Couto faz a 4 de Novembro. Parabéns também
para ele. Parabéns ainda para a Marta, que faz anos
a 30 de Novembro. Parabéns para o Paulo, que já
fez anos. E para a Mila, para o Pedro e para mim, parabéns
a todos. O infantário subiu para mil paus. Portugal
perdeu com a Bélgica mas os aliados ganharam a 2ª
guerra mundial.”
Este estilo epistolar, enfastiado, de quem está
farto de tudo e se limita a alinhar frases com algum sentido,
foi desenvolvido na carta seguinte, em Outubro, para os
Buques:
“O Pedro está no terceiro dia de varicela,
mais exuberante que a Joana, roçando o corpo pelas
esquinas por mor da comichão. A Mila está
menstruada. Temos estudado que nem uns brutos, domingo e
tudo. Hoje almoçámos bifes de cebolada. O
Lemus escreveu. Diz que é difícil vender os
trezentos exemplares que o PS diariamente salda em hasta
pública (o nosso amigo Rui Lemus era, na altura,
depois de regressar da sua curta carreira diplomática,
coordenador da secção internacional do jornal
“Portugal Hoje”, conotado com o Partido Socialista).
Ainda não fomos transferidos para Moimenta (aguardávamos
a transferência do Centro de Armamar, para o de Moimenta,
que havíamos solicitado à Administração).
Fomos ver uma casa que estava para alugar. Três quartos,
uma sala enorme, dispensa, cozinha, casa de banho, duas
varandas. O couro cabeludo possui cerca de cem mil cabelos.
A Lotaria Nacional comemora 196 anos. Foram instalados quatro
semáforos com luz amarela intermitente, perto da
escola e do ciclo. Agora é mais fácil saber-se
onde se pode atropelar criancinhas. Há quem dê
mil e quinhentos contos pela casa de Santiago. Ainda é
pouco. Diariamente, em média, o couro cabeludo perde
setenta cabelos. Se não existisse a Regeneração
Capilar, um tipo estava careca em 1 428,5 dias, isto é,
um pouco mais que três anos. A renda da casa que fomos
ver é de cinco contos mensais. Não a alugámos.
Já está um barbeiro dos diabos. Na telefonia
estão a transmitir canções do Brel.
92% dos doentes com lupus eritematoso, queixam-se de artralgias.
Amanhã há um grande filme no pavilhão
da Sicafil. Não me lembro do nome. A falta de vitamina
A provoca, nomeadamente, xeroftalmia, queratomalácia,
xerodermia, hiperqueratose folicular.”
E assim continuava a carta por mais algumas páginas…
Era mesmo de quem não tinha mais nada para fazer…
A não ser, escrever, escrever desesperadamente. Foi
em Moimenta que escrevi “Os Inimigos da Ordem Pública”
e “A Tropa Fandanga”, e que coleccionei as minhas
histórias publicadas no República, e outras
que entretanto fora escrevendo, dando-lhes o título
genérico de “Estórias Malvadas”.
Tudo foi enviado para o Jorge, que fez o favor de me fazer
cinco cópias de cada um. O objectivo era concorrer
ao primeiro prémio literário do Círculo
de Leitores, cujo prémio era de 500 contos –
nada de deitar fora. O Zé também andava a
escrever um livro, que não sei se chegou a enviar
para concurso. O problema é que o regulamento exigia
trezentos mil caracteres e eu sempre me dei mal com textos
longos. Foi preciso esperar 48 anos e lembrar-me de escrever
estas memórias, para conseguir um texto bem longo…
Entretanto, e depois de uma varicela tramada para a Marta,
que lhe deixou, nomeadamente, uma marca indelével
na testa, aproximavam-se as eleições. A meio
de Novembro, numa carta para o Jorge e a Luisa, escrevi:
“O Dr. Ferro, veterinário da área,
é um dos cabecilhas da APU. O meu tio é candidato
às autárquicas pela AD. O sr. Raul, da farmácia,
é do PS. O Pedro e a Marta tomaram banho ontem. O
Pedro já trouxe trabalhos para casa (deberes) por
duas vezes. O sr. padre informou-o que nós temos
dois pais: o da terra e o do céu. Continuamos à
procura do outro. Comprámos um triciclo à
Marta, uma máquina de costura de lata e uma mesa
com duas cadeiras. O sr. Vitoriano é um dos cabecilhas
do PS de Armamar. A Mila está-me confeccionando um
salta-por-cima, vulgo pull over, que é uma tara!
Estou á rasca para mijar! O Gin já tem coleira
de couro.”
E assim sucessivamente. O estilo epistolar mantinha-se.
Quanto ao Gin, era um cachorro que tínhamos adoptado
e tencionávamos levar para o Algueirão, não
fosse o pobre do bicho ter sido atropelado mesmo em frente
à Açucarinha e ter ido ter com o pai do céu,
como diria o sr. padre. Foi o nosso primeiro Gin canino.
Outro viria, mais tarde, fazer-nos companhia durante muitos
anos…
O regresso ao Algueirão estava para breve mas, entretanto,
outra nuvem pairava no horizonte: a tropa. Claro que eu,
no fundo, já sabia que não me ia livrar de
servir a pátria – os sucessivos adiamentos
eram apenas isso, adiamentos. O meu número mecanográfico
de inscrição na instituição
militar era muito baixo (quatrocentos e qualquer coisa)
e, anualmente, os gajos estavam a chamar 140 médicos
para prestarem o Serviço Militar Obrigatório.
Portanto, eu não tinha a mínima hipótese
de me safar. Bem tentei, no entanto… Mobilizei toda
a família para falarem com este e com aquele, que
conhecia o outro que era amigo daquele que talvez conseguisse
riscar-me da lista dos incorporados, mas tudo foi infrutífero.
Por isso, à medida que o internato de Policlínica
chegava ao seu termo e, com ele, o fim dos adiamentos, a
realidade de dezoito meses de tropa, com um ordenado miserável,
era cada vez mais provável. E, se já estávamos
aflitos de dinheiro com os nossos iníquos ordenados
de médicos na província, cheios de dívidas
até ao pescoço, como seria depois, com a tropa?
Foi por essa altura que voltaram os sintomas psicossomáticos
cá ao rapaz, como descrevo nesta carta do princípio
de Dezembro:
“Atravessámos, desde o nosso salto a Lisboa,
em Outubro passado, um mau período, em que o moral
esteve muito por baixo e manifestaram-se mesmo alguns sintomas
físicos de origem psíquica: opressões
no peito, pulso rápido, tensão alta, sensação
permanente de insatisfação gástrica.
(…) Este estágio de saúde Pública
serviu, pelo menos, para uma coisa muito importante: a definição
da nossa posição perante a profissão
que escolhemos. Aí em Lisboa, com a experiência
jornalística mais ou menos fresca e com o estilo
de vida que, apesar de tudo, nos permitia dispersão
por vários campos (ouvir boa música, fazer
trabalhos manuais, ler muito, ver bom cinema e discutir
muitos temas com pessoas inteligentes), a medicina quase
que não passava de um apêndice. Aqui, pelo
contrário, fomos obrigados a praticá-la como
única actividade interessante. E chegámos
à conclusão de que gostamos de ser médicos;
e mais – de que gostamos de ser médicos de
província, de um pequeno Centro de Saúde,
onde as pessoas se vão conhecendo, onde podemos praticar
uma medicina personalizada, e pensamos que a nossa realização
profissional partirá daqui, e não de uma especialização
em Pediatria ou outra coisa qualquer.”
Esta reflexão é muito importante porque,
de certo modo, denota um amadurecimento da perspectiva que
eu tinha em relação à Medicina. Claro
que, depois, a tal sucessão de acontecimentos não
obrigatoriamente relacionados, que é a vida, fez
com que eu decidisse concorrer a Psiquiatria mas, finalmente,
cá estou eu, em Clínica Geral, há 17
anos! Por outro lado, este naco de prosa, escrito em 1979,
mostra como o Governo de então, e os que se lhe seguiram,
perderam a oportunidade de fixarem médicos na província.
Profissionalmente, muitos de nós estavam motivados
para isso. Mas o vencimento era uma merda, casas não
havia, as autarquias estavam-se lixando, os médicos
residentes faziam guerra ou alheavam-se, em vez de apoiarem
e a legislação que poderia mudar tudo isso
demorou anos a ser aprovada. Quando o foi, era tarde. Já
desmotivados, ou com laços mais fortes que nos ligavam
a esta ou aquela cidade, sem a “tesão revolucionária
post-25 de Abril” que muitos de nós tínhamos,
perdeu-se toda uma geração de médicos
que poderiam ter sido a base de um verdadeiro Serviço
Nacional de Saúde. Recordo que nós os dois
terminámos o nosso internato no final de 1979 e só
fizemos o respectivo exame três anos depois!…
Assim, com o coração apertado, temendo ser
incorporado no garboso exército deste país
à beira mar plantado, taquicárdico e já
ligeiramente hipertenso, aos 26 anos, com o internato policlínico
concluído, mas desconhecendo se ia me ia servir para
alguma coisa, sempre fumando, regressei ao Algueirão
com a minha querida família, a meio de Dezembro de
1979, depois de oito meses torturantes pelas terras do Demo.
Se outras coisas não retirei destes meses, pelo menos
duas ficaram: a certeza de que queria, e gostava, de ser
médico e um Fiat 124, com 1 400 centímetros
cúbicos de cilindrada, que tornou a viagem muito
mais rápida e segura, embora o Pedro e a Marta continuassem
a vomitar para o já clássico penico.
|