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O Coiso
Memórias de um fumador
50 anos de história


17. Correspondência da Beira (1979)

A epopeia da venda do Renault 4 e da compra do Fiat 124, a nossa visita a Santiago de Cassurrães, a minha fúria de coleccionista, a varicela da Marta, a entrada do Pedro na vida de estudante, as refeições na Açucarinha, as compras no Lápis, a Saúde Escolar em Paraduça, o dia a dia no Centro de Saúde de Armamar – tudo isso e muito mais descrevi, até à exaustão, em cartas para o Zé e Mizé, Luisa e Jorge, Paulo e Bela.
Vamos então reler essas cartas e, a propósito delas, contar mais um pouco da nossa estada em Moimenta da Beira.
Uma das grandes surpresas da Correspondência da Beira foi o humor e a originalidade das cartas dos meus irmãos que, criaram a CECA (Comissão Emanadora de Comunicados e Abaixo-assinados), o CPTLF (Cooperativa Popular Toma Lá Filosofia), o EPOLIT (Exército Popular de Libertação da Turma) e a figura ímpar do Professor Doutor Ghozé Pablito, pseudónimo do meu irmão Paulo, que escrevia a maior parte das missivas, que eram constituídas por uma sucessão louca de pequenas histórias, peças de teatro super-rápidas, poemas minúsculos e outras peças de alto valor literário, tudo para animar o jovem casal de médicos em serviço na província.


Fotografia dos três irmãos, contemporânea do Dr. Ghozé Pablito e da Madame de Passevite.

Em resposta a uma dessas cartas malucas, escrevi, logo no princípio de Maio:

“Maninhos:
Divide-se esta simpática cartinha em duas partes distintas que, por se interpenetrarem, se tornam completamente diferentes, confundindo-se. A primeira parte, que poderá vir depois da segunda, é a parte séria, aquela em que se pergunta pela saúde dos ausentes, se fala das doenças dos presentes, se dão algumas informações sobre o tempo. A segunda parte – que poderá nem existir – é ensaística, réplica às vossas cartas inéditas.
Mas, para manter as aparências de sanidade mental, comecemos pela primeira parte:
a) Continuamos todos bem, embora a densidade populacional desta velha casa beirã nos aborreça um pouco. Com efeito, doze pessoas (das quais dez crianças porque, pelos vistos, só eu e a Mila somos adultos…), nesta casa com – aparentemente - sete divisões, é demais. A confusão é tanta que, por vezes, não sei bem se estou a dormir com a Mila ou se é o tio Zé que ronca a meu lado, na cama. Todas as manhãs é um alvoroço, a correr de cama em cama: “Mas onde é que está a Marta? Onde é que dormiu o Pedro?” E acabamos por encontrar o gato a dormir com o Bondoso, a tia Ju debaixo da cama, o Pedro em cima, a mudar a fralda à avó, a Mila tentando acordar a Carla, pensando que se tratava de mim e, quando o último habitante abandona a casa, depois das abluções matinais, já são horas do primeiro que saiu, regressar. Depois, o primeiro tem sempre mais sorte, porque pode escolher o melhor colchão e, quando o último chega, por vezes, tem que contentar-se com um bocadito de alcatifa. Mas quando acontece chegarem todos ao mesmo tempo, costuma haver sangue: todos tentando conquistar a melhor enxerga. Até já pensámos em nem sequer sair de casa!
(…) Frio, muito frio e alguma chuva. O termómetro deve rondar os sete graus de manhã e à noite; durante o dia não está tão frio mas anda-se de canadiana e dorme-se de meias e camisola interior.”

Foi em Moimenta que usei pela primeira e última vez na minha vida essa grande descoberta dos rurais portugueses: as ceroulas, embora sob a forma de collants de lã! Inacreditável num tipo que – e nisso, talvez só nisso, saio ao meu pai – dorme sempre com os pés de fora, mesmo em pleno Inverno, porque não tolera o calor de um único lençol…

“Trabalho, muito trabalho. Mas, como não há mais nada para fazer, trabalhamos o triplo do que trabalhávamos em Lisboa e não estamos nem metade cansados. Se se pára, boceja-se e vem o tédio. Agora, dividimo-nos ao meio e, enquanto um vai para Armamar, o outro fica no Centro de Saúde de Moimenta que – embora ainda não oficializado – já funciona.
Parabéns, muitos parabéns pelos êxitos do conhecido agricultor e excelente arquivista, Ghozé Pablito. Dá mais pormenores da EDP. E quanto ao Propedêutico, explica melhor o que ainda falta fazer para te considerares safo.”

O Paulo respondera a um anúncio e, nesse mesmo ano, ou no seguinte, começou a trabalhar na EDP, depois de ter terminado, efectivamente, o famoso ano Propedêutico.

“Hoje recebi, no hospital, um telefonema do pai. Agradeço que lhe digam que nunca falo muito ao telefone porque, invariavelmente, está uma freira ao meu lado. E nunca me senti à vontade perto das esposas de Cristo.
Contentes, muito contentes andam os putos, cada um na sua escola, travando novos conhecimentos todos os dias e entendendo-se muito bem com o Zé. Com o Kiká (horrível, este diminutivo!…) a coisa não é tão boa, mas nunca está cá em casa, nem se dá por isso (quase…)”

Os putos não tiveram, de facto, problemas em arranjar amigos. Alguns slides registaram para a prosperidade os nossos filhos, muito corados, graças ao frio beirão, que enrija os ossos e enche a cara de cieiro, em alegre comunhão com putos autóctones, geralmente junto a carros antigos e abandonados que fui fotografando, como um velho Skoda dos Bombeiros.

“Próspera, muito próspera, esta vila de Moimenta. Interessada, muito interessada pelo Astro. Bêbados, muitos bêbados, ao domingo, nas ruas. Devotos, muito devotos os seus habitantes.”

Para quem já não se lembra, a televisão ainda era a preto e branco; depois da “Gabriela, Cravo e Canela” – a primeira telenovela brasileira a passar na televisão portuguesa e que até nós víamos – veio toda aquela série interminável de telenovelas que nunca mais largaram o pequeno écran, como sói dizer-se. Naquele momento, era “O Astro”, que dominava o dia a dia das pessoas. A nossa relação com a televisão sempre foi pacífica: nunca dominou as nossas rotinas mas também não a recusávamos liminarmente. Em 1977, penso eu, foi graças à televisão, por exemplo, que entrámos em contacto com essa trupe de génios chamada Monthy Pyton. Admiradores incondicionais do John Cleese e seus capangas. Sempre!

“(…) Lembrem-se do vosso irmãozinho, aqui desterrado, doudo, doudinho de todo por colecções. Guardem-lhe todos os rótulos e embalagens que arranjarem. Rótulos de refrigerantes, vinhos, vinagres, tira nódoas, sabonetes, pastilhas elásticas, chocolates, pastas dentífricas, lâminas para a barba, pensos higiénicos – tudo! Mas só em bom estado. E introduzam as vossas cartas em sobrescritos impressos. Pois é, também faço colecção de envelopes timbrados.
(…) Falemos da miscegenação das raças. É um fenómeno antropologicamente interessante. Toda a gente culta sabe que o mulato surge do cruzamento de um branco com uma negra, ou vice-versa. E qualquer pessoa poderá imaginar – se tiver imaginação para tanto!… - os estranhos híbridos que resultarão do cruzamento de um esquimó com angina de peito com uma cigana maneta; de um negro africano com uma sueca com bicos de papagaio; de uma norte-americana maníaca com um chinês malcriado; de uma tailandesa virgem com um holandês careca; de um moçambicano recém fuzilado com uma francesa em menopausa; de uma portuguesa com um negócio de capelista na Amadora com um australiano criador de gado. Mas o que ninguém consegue imaginar é o resultado do casamento de uma portuguesa porca com um português imundo, ambos de raça branca.
Têm trinta segundos para responder.
Aqui vai a resposta: pois o resultado é um fedor de fugir. Trata-se de um indivíduo de oito anos, por exemplo, crónico da 1ª classe que, embora aparentemente de raça branca, possui dois pés (que sorte!) completamente negros! O mesmo se passa com as mãos, a cara e algumas regiões do corpo, habitualmente identificadas como refeguinhos e preguinhas. O fedor é tal que – acabada a consulta – se abrem todas as portas e janelas para arejar…
Encontramos destes indivíduos (curiosos híbridos, na verdade…) quando visitamos as escolas da região, fazendo aquilo a que se chama saúde escolar. E não é pobreza, não! É merda! Uma alegre, profunda e longa tradição de merda, que já vem do tempo dos Afonsinos. Consta que a cabeça de um dos aios de D. Afonso Henriques rolou, quando o pobre homem sugeriu ao eminente monarca que, pelo menos anualmente, lavasse os sovacos reais. Só o frete de tirar a cota de malha e aquela trapalhada toda! Está provado que os cadáveres dos antigos reis cheiram muito pior que os dos mais recentes ministros.
Outra curiosidade antropológica da região refere-se ao aparelho genital de algumas mulheres. Com efeito, há por aqui senhoras que, desgraçadamente, não possuem vagina. Em seu lugar têm, por exemplo, boca do corpo (o que também é frequente em Lisboa…), virgina ou mesmo BENZINA! Ao contrário do que acontece por aí, aqui não se mede nem se tira a febre – pesa-se. Não se tem papeira ou parotidite – tem-se trasorelho. Há quem tenha fracturado a costela de uma vértebra. Penduram-se embrulhinhos com ervas ao pescoço dos recém nascidos para afastar os maus olhados. Espremem-se as mamas das bebés para que possam amamentar no futuro. Vai-se ao bruxo frequentemente e, de vez em quando, ao médico. Curiosidades!…”

Curiosidades, de facto, próprias de médicos em princípio de carreira, ainda muito influenciados pela ciência desinfectada da Faculdade. Hoje em dia, vinte e tal anos depois, já é difícil ser surpreendido por algum doente, embora, quando um doente me pede que eu lhe passe uma embalagem de ampolas bebíveis “Tonicha”, em vez de “Tonicê”, eu ainda fique hesitando entre o espanto e o encolher de ombros…
A 18 de Maio, escrevi uma carta para o Zé e Mizé, em que falava, nomeadamente, da Carreira, com a qual travámos conhecimento graças ao mau funcionamento do R4. Transcrevo:

“A avaria do transporte individual permitiu-nos conhecer “A Carreira”. Pois a Carreira liga Viseu á Régua, passando por Moimenta e Armamar e servindo todas estas terreolas. Percorre a distância entre Moimenta e Armamar (25 quilómetros) em cerca de uma hora – já que as paragens, pelo caminho, são longas, descarrega o cesto, carrega o caixote, recados para o motorista, etc. – e a troco de vinte oito escudos, o que para nós os dois sai mais caro do que ir de carro. Mas para se conhecerem os horários da Carreira, é uma verdadeira epopeia. Após várias tentativas infrutíferas, chegámos ao café Octávio, onde a patroa nos informou, de cor, o horário. E toda a gente ficou surpreendida por nós querermos um horário impresso! Não há, nunca se viu tal coisa! A camioneta vem de Viseu, chega aqui a Moimenta entre as oito e as oito e trinta e chega a Armamar quando chegar, nunca antes das nove. E de Armamar para cá, tudo depende do comboio Porto – Régua. Se o trem chegar a horas, a Carreira está em Armamar às 18 horas. Senão... É só esperar…
(…) É altura de falarmos do Dr. Nelson – figura milleriana. Ainda só conversámos com ele uma única vez, exactamente na tarde da nossa chegada a Armamar, mas o homem, sedento de ouvidos que o escutassem, agarrou-nos com ambas as mãos e, no largo da Câmara, contou-nos toda a sua vida.
Tendo 70 anos, o Dr. Nelson é do tempo em que os animais falavam. Logo após a licenciatura, exilou-se voluntariamente em Vila Seca – a cerca de seis quilómetros de Armamar – para onde foi tomar conta de um pequeno hospital (hoje asilo). Nessa altura, ele fazia de porteiro, enfermeiro, parteiro, farmacêutico e médico. Para além dos doentes, não havia mais ninguém no hospital, a não ser o Dr. Nelson. Munido de um precioso caderninho, trazido da Faculdade, e com a ajuda de uma balança de precisão, ele próprio fabricava os medicamentos que receitava. Sem nunca ter sido particularmente instruído, fez mais de um milhar de partos, sem um único insucesso. E durante 25 anos foi o único médico do concelho. Na década de sessenta, já cansado, foi encarregado pela Secretaria de Saúde, de levar a cabo, no concelho, a Campanha Nacional de Vacinação. Como é fácil de imaginar, era difícil convencer os pais da necessidade em vacinar os filhos. Pois se eles nem estavam doentes!… Depois de várias tentativas frustradas – e apesar do seu feroz anticlericalismo – acabou por recorrer aos padres. E começou a vacinar as crianças aos domingos, depois da missa. Mas mesmo assim, muitas delas ficavam por vacinar. Vai daí, pediu a colaboração das autoridades, isto é, da GNR. E aí vão os garbosos cabos intimar as mães faltosas a apresentarem os seus filhos à vacinação. E foi assim que o Dr. Nelson conseguiu vacinar todas as crianças do concelho de Armamar. Presentemente, definitivamente cansado, limita as suas actividades a uma restrita medicina particular em Vila Seca e a meia dúzia de peritagens médicas, a pedido da Câmara. Nomeado, compulsivamente, subdelegado de Saúde, aceitou com a condição de não por os pés no Centro de Saúde. A sua teoria é de que os policlínicos devem estar à vontade. E assim, quando o Centro precisa de enviar algum documento oficial, o empregado da secretaria (outro milleriano) dactilografa e, ás segundas ou quintas à tarde, vai até à Câmara pedir a assinatura do Dr. Nelson e o selo branco do Centro, que o doutor transporta no carro.”

Percebe-se que deveria ser este famoso Dr. Nelson, de quem não recordo sequer se tinha bigode ou usava óculos, a tutelar e orientar o nosso estágio de Saúde Pública. Pois…
A 24 de Maio, o Zé e a Mizé, respondem-nos:

“Eis que vinte e cinco dias se cumpriram sobre a madrugada da vossa partida para as terras que bordam a meseta e ainda não aconteceu surgir, aqui pelo sul (enfim, sejamos claros: cá em casa), nenhum hábito novo de vida de família única, a não ser um que já conhecíeis vagamente: fazer questão de distinguir, com um mínimo de rigor, os livros do lixo, quando ambos se começam a entrelaçar pelo chão. Ainda não deitámos nenhum livro fora, mas já conseguimos ler ardente prosa em apetecidos bocados de esterco (como se sabe é também admissível ler ardente esterco em apetecidos bocados de literatura, mas isso, isso…)”

O Zé e a Mizé eram, na altura, assistentes universitários do professor Gustavo, em Biomatemática, na Faculdade de Medicina de Lisboa, exactamente no Hospital de Santa Maria. Coincidências. Ao que parece, o trabalho era muito e o professor Gustavo, um ditador, que pouco tempo livre lhes deixava. Quem sofria era a Joana, privada da companhia dos amigos/irmãos e obrigada a ficar horas sem fim na creche, aguardando os pais, que chegavam sempre ao fim da tarde, estoirados e com pouca paciência…
Logo a 26 de Maio, segue mais uma carta para o Algueirão, com quatro páginas, em que falo um pouco da nossa vida sexual naquele quarto minúsculo:

“A nossa vida sexual continua monótona (embora regular, convenhamos e sublinhemos…) A única diferença é que somos obrigados a fazer amor tout doucement, como diriam os aborígenes, porque se o ritmo da cavalgada se exacerba, toda a cama range e, com ela, as prateleiras acopladas à cabeceira e, com estas, o chão de madeira e o próprio quarto, que tem as seguintes medidas: 2 por 2 metros! E não esquecer que, ao lado, a Marta dorme. No delírio da paixão não é raro que tome a mão da inocente criança, pensando que se trata da Mila. E vocês estão a ver: a Marta é virgem e gostaríamos de a manter assim, pelo menos, até ao seu primeiro namoro.
Além do “pequeno problema” de logística sexual, há a questão da convivência. Claro que, durante o dia, a casa está sempre vazia. Mas, enfim, acabamos sempre por nos cruzar com alguém que também cá dorme. E, neste capítulo, que temos? O Ricardo, coitado, mija e caga nas fraldas e passa o tempo a dizer: “Sou fote, sou do Poto!” (tradução: sou forte, sou do Futebol Clube do Porto)…
(…) A avó Rita é irreconhecível. Logo pela manhã, levanta-se e pira-se para a Açucarinha – vai aviar bolos, iogurtes, ver quem entra, quem sai, quem fica. Regressa a casa às onze da noite, por vezes mais tarde. Apesar de dormir cá em casa, vêmo-la menos do que quando aí estava.”

A minha avó que, como já tive oportunidade de dizer, toda a gente da família sabe ser eterna, tinha, então, 71 anos e trabalhava mais de doze horas por dia, e gostava. As suas relações com o meu pai nunca foram as melhores. Viúva desde muito nova (o meu avô Fernando morreu antes de eu nascer, com tuberculose), viveu sempre em nossa casa, até à morte da minha mãe. Depois, se as relações com o Zé Couto já eram tensas, sem a presença da Mariazinha para atenuar as coisas e deitar a tal água na fervura, aquilo começou a ser insustentável e a avó foi para Moimenta, onde foi recebida de braços abertos – sempre era mais uma ajuda na Açucarinha. A profissão da avó Rita sempre foi essa mesma – avó. Mas, há muitos, muitos anos, quando os animais ainda falavam, a avó Rita tinha sido cozinheira na chamada Casa do Benfica, onde ficavam alojados os jovens jogadores da província que vinham jogar para o grande clube da capital. A experiência como cozinheira foi aproveitada pela Açucarinha que, a troco de cama, mesa e roupa lavada, contratou mão de obra barata para a confecção dos almoços e jantares.
Entretanto, o isolamento proporcionava a leitura e descobríamos, a pouco e pouco, o Aquilino Ribeiro e a sua linguagem muito particular. Como não tínhamos levado connosco nenhum dicionário, íamos lendo, em voz alta, “A Grande Casa de Romarigães”, sublinhávamos os termos cujo significado desconhecíamos, escrevíamo-los numa folha à parte e enviávamos para o Algueirão. Pacientemente, a Mizé ia procurando o significado de tais termos no dicionário e enviava, de volta, a descodificação da linguagem aquiliniana . Na nossa carta de 1 de Junho, falo do empregado da secretaria do Centro de Saúde de Armamar:

“E é altura de falar um pouco do Sr. Carlos – o empregado da secretaria – melhor falando – ele é a própria secretaria que, como já referimos, fica na sala da enfermeira, onde se medem tensões, se “pesam” febres, se pesam os bebés e as grávidas, se guardam os haveres dos médicos.
Pois o Sr. Carlos, retornado de Moçambique, em vez de coçar os testículos no Rossio, comprar a “Barricada” ou irritar-se com o Rosa Coutinho – decidiu vir coçar os testículos para Armamar – concelho a que pertence por nascimento. Não faz absolutamente nada. Há um mês que cá estamos e apenas o vi executar dois trabalhos, aliás impecáveis: escrever um ofício para Viseu, pedindo um carimbo para o Centro – trabalho que lhe levou três dias; e preencher as nossas folhas de ponto, o que fez no dia 28 do passado mês.
Na sua juventude, o Sr. Carlos conviveu com alguns escritores distintos: José Régio. Tomás de Figueiredo, Branquinho da Fonseca e outros, que costumavam passar férias em Aldeias – uma aldeia perto de Armamar. Conta que o Tomás de Figueiredo andava sempre de bloco em punho, anotando termos do dialecto local e respectivo significado, tendo depois escrito um dicionário de linguagem corrente (que eu desconheço). Uma das frases que figuram nesse dicionário é “meias de londra”. Origem: quando por cá apareceram as primeiras meias de vidro, a embalagem dizia que as meias eram fabricadas em Londres – daí, meias de londra.”

Além do Sr. Carlos, que era, de facto, uma figura interessante, o nosso dia a dia no Centro de Saúde era também partilhado com a enfermeira, uma moça nova, oriunda de uma aldeola chamada S. Cosmado, e que formava, connosco, uma verdadeira equipa de saúde, muito antes de se falar em equipas multidisciplinares, daquelas em que é preciso dezenas de reuniões para estabelecer objectivos e fazer avaliações e transformar o simples de fazer, no impossível de concretizar.
Continuando:

“(…) A influência da igreja é a que vocês calculam. Com a agravante de estarmos a trinta quilómetros de Lamego, pelo que as mais abjectas publicações católicas chegam a Moimenta com mais regularidade que o TinTin – o que nos preocupa. Cá por casa anda tudo numa roda viva por duas razões piedosas: a primeira comunhão do Zé Artur e da Carla e a procissão do dia 24, dia de S. João. Quanto à comunhão, a coisa atinge níveis impensáveis – uma verdadeira bambochata, como diria o Eça. (…) E o Zé e a Carla aplicam-se denodadamente. Todas as tardes têm catequese. E, na mão, transportam sempre o “Catecismo Formulário”. Para que a comunhão seja um êxito têm que saber: os dez mandamentos, os mandamentos da santa igreja e as obras de misericórdia. Estas dividem-se em corporais e espirituais.
Obras de misericórdia corporais: dar de comer a quem tem sede; dar de beber aos nus; vestir os que têm sede; dar pousada aos mortos; visitar os peregrinos; enterrar os presos.
Obras de misericórdia espirituais: ensinar as injúrias; corrigir os vivos e os defuntos; consolar os ignorantes; perdoar a deus; sofrer com paciência os Seus erros e fraquezas.”

Eu também fiz a primeira comunhão, mas de modo clandestino. Se o Zé Couto soubesse, passava-se!… Foi em Santiago de Cassurrães, aldeia perto de Mangualde, distrito de Viseu, e onde nasceram todos os meus ancestrais maternos e, também, por coincidência, a minha avó paterna, e onde nós íamos passar alguns dias, todos os Verões. Devia eu ter uns oito ou nove anos, quando a minha avó e a minha mãe organizaram a cena; esperaram que o Zé Couto saísse do casarão da família (e que ainda lá está, todo esbarrondado, ameaçando cair na Rua Direita), para a sua habitual visita às pequenas adegas da região e levaram-me ao senhor prior. O homem sentou-me lá na sacristia e fez-me uma série de perguntas sobre os pecados. Lembro-me que me senti aflito, tentando confessar-lhe algo que satisfizesse a sua mente inquisitória. Eu tinha sido instruído que devia dizer a verdade, e só a verdade, ao senhor prior. No entanto, por mais que puxasse pela cabeça, não me lembrava de nenhum pecado: ainda não começara a roubar discos na Discoteca do Carmo, ainda não sentira vontade de levantar as saias a uma miúda e ver o que estava por baixo, ódio, gula e inveja eram palavras difíceis, que eu mal sabia escrever; de modo, que contei-lhe uma treta qualquer sobre rebuçados e doces e ele mandou-me rezar dez padres nossos e igual número de avés marias, após o que comunguei e a minha primeira comunhão ficou consumada. Foi um segredo que mantive bem guardado. O meu pai nunca soube de nada disto. Na minha cabeça, a primeira comunhão tinha sido, simbolicamente, o meu primeiro desafio à autoridade paterna - ao fim e ao cabo, o meu primeiro pecado!
Voltemos à Correspondência da Beira.
Em Junho, a Luisa estava grávida. Infelizmente, a gravidez não chegou ao fim e a nossa troca de correspondência com ela e com o Jorge focava, quase sempre, esse tema. Transcrevo:

“Comecemos por falar desse rebento, tão ansiado, aguardado até ao desespero, transformado em sangue escuro e pastoso mensalmente, para desilusão geral – sobrinho que já gastou aos pais horas de angústia, quando se contavam os dias de atraso, que já pôs em dúvida a capacidade reprodutora dos mesmos pais, que obrigou o futuro engenheiro hidráulico a ejacular-se para tubos de ensaio que sabe-se-lá-por-onde-andaram, bem como a enfrascar-se em Sargenor, buscando na droga uma maior potência reprodutora. (…) A Mila já vai na feitura do segundo casaquinho de lã para o sobrinho, pelo que – a continuar neste ritmo – o puto terá, só da parte da tia, dezoito casacos; se adicionarmos os trinta e cinco que lhe serão ofertados pela avó materna e mais os sessenta e sete da restante família, aconselho-vos a desistir, quer da educação infantil, quer da engenharia de minas, e dedicarem-se ao comércio retalhista, procurando uma loja vaga no Terminal.”

Naquela altura, a Luisa, concluído o curso de educadora infantil na escola João de Deus, já estava a trabalhar no seu ramo, enquanto o Jorge, estava a acabar o curso de engenharia mecânica no Instituto Superior Técnico. Casados há dois anos, tentavam desesperadamente fazer um filho. Nunca conseguiram. Em compensação, fizeram duas filhas, as minhas duas únicas sobrinhas: a Inês, agora com 19 anos, e a Rita, que vai fazer 7 anos.
Como já contei no capítulo anterior, os nossos primeiros tempos em Moimenta foram de desespero automóvel, graças às constantes avarias do R4, que passámos a designar por “latas”. Aqui vai um trecho da carta de 7 de Junho, enviada para o Algueirão (e notem que a periodicidade das cartas era mesmo semanal…):

“Praticamente desde que chegámos que temos tido o carro na oficina, exceptuando alguns dias que serviram, apenas, para estragar outra peça. Tudo começou por um ruído esquisito que se fazia ouvir quando o carro abrandava, curvava ou descia a boa velocidade. Os mecânicos moimentenses acharam que era da bomba de água. E mexeram-lhe. E – nenhuma admiração – encontraram algumas peças para substituir. Passados poucos dias, as mudanças não entravam. Afinaram a embraiagem. Dois dias volvidos, as mudanças continuavam a não entrar. Mudaram um prato e o disco de embraiagem. E voaram quase seis contos. Conseguimos fazer mais cerca de 120 quilómetros. Eis senão quando, na segunda feira à tarde, a caminho da escola de Paraduça, por uma estrada incrível, seiscentos metros de covas, terra solta e a subir, o carro começa a ferver – helás! A água do radiador fervia mesmo! Deixei-o ficar muito quietinho perto da escola, regressámos à boleia, no carro da professora, e os excelentes mecânicos foram lá buscá-lo. No dia seguinte explicaram o fenómeno com a maior das naturalidades. Com efeito, mostraram-me uma peça que, como muitas outras, eu desconhecia e que tinha um encaixe partido. Trata-se de uma peça em aço maciço, com uma espessura considerável e serve, se não estou em erro, de aplicador à bomba de água. Um dos encaixes estava, de facto, semi partido. Por isso, a correia da bomba de água lassava e a água não circulava bem. Trampa! (…) Lá soldaram a peça e xôtôr pode ir descansado. A Mila tinha ido para Armamar pelo que me dispus a ir buscá-la. Andei seis quilómetros, nem mais nem menos. E ei-lo a ferver como uma panela de pressão. Regresso em ponto morto, aproveitando as descidas e chego são e salvo à oficina. Que não podia ser! Que o carro estivera a trabalhar sozinho mais de uma hora e não fervera! Porra! Não seria das minhas mãos, com certeza! Finalmente, os mecânicos moimentenses, já um pouco desconfiados da minha sanidade mental, dispõem-se a pensar inteligentemente, procurando todas as causas para o aquecimento do radiador; tira água dali, enfia acolá, vê o termóstato, olha para a chaufagem – nunca vi tanta água a sair de tantos tubos. Uma verdadeira lição de mecânica. Até pensei que a porcaria do carro trabalhava a água! Feitas as experiências consideradas indispensáveis e – já com sorriso escarninho nos lábios – o mecânico diz-me: bom, xôtôr, vamos lá dar uma volta, a ver se isto ferve! E fomos: uma subida íngreme até Caria, cerca de cinco quilómetros, foi o suficiente – o tubo que liga o depósito de água ao radiador até estoirou com o calor; o carro bufava, fervia, resfolegava, parecia uma locomotiva a vapor. O mecânico derreteu-se em desculpas; se tivesse um buraco, enfiava-se nele: era a porra da bomba da colaça (ou será da colassa?) Ó xôtôr desculpe, eu vou já tratar disto, eu mudo-lhe o óleo, eu lavo-lhe o radiador, eu isto, eu aquilo, só lá vai buscar o carro quando estiver completamente bom, eu vejo tudo, eu faço tudo. E lá está a fazer… Entretanto, ainda aproveitei a oportunidade para fazer uma consulta ao bate-chapas, cheio de tiques e neuroses. O homem chorou, agradeceu, afirmou que aquela consulta valia contos de reis, mas que não pagaria em dinheiro, mas sim de outra maneira – pelo que penso que posso contar com uma pintura do carro à borla.”

Claro que o R4 não precisou de pintura nenhuma, porque acabámos por nos desfazer dele, já que ele estava prestes a desfazer-nos a nós. Quanto à consulta ao bate-chapas, é típico da nossa profissão – vinte e quatro horas de serviço. Não se pode ir almoçar ou jantar fora, dar um passeio pela praia, ir comprar peixe ao mercado ou carne ao talho, que não apareça alguém a pedir um conselho, uma opinião, uma consulta. Enfim, ossos do ofício, não é?…


Durante alguns dias, fomos propiretários de dois-carros-dois. Ei-los, à porta da casa dos meus tios, em Moimenta: o Fiat 124, recém-adquirido e o Renault 4, à espera de um trouxa que o comprasse.

Mas, apesar do problema do carro nos consumir, ainda tínhamos disposição para continuar a desbravar o Aquilino e a imitar a sua escrita, como neste naco da nossa carta de 15 de Junho:

“Com a estiagem que tem feito, encontramos refrigério nos almargeais do Távora. Levamos sempre duas ou três alfombras, onde os crianços se espulinham à vontade e ali passamos um pedaço da tarde. A estrada não é má de todo até certa altura, depois pode dizer-se que é uma verdadeira congosta, embora alcatroada. Ao longo do caminho, o bodum não deixa de se fazer sentir, pelo que, volta não vira, lá está a Marta a fazer carrancas, e somos obrigados a parar para ela descarregar. O farnel é obrigatório, e enquanto os miúdos se entretêm aos pulins, nós vamos esburgando uma galinha, chuchurreando uma Carlsberg, obtida nos armazéns da Açucarinha, através de algum embeleco bem urdido. Hoje mesmo, o Pedro e a Marta estão numa freima, aguardando a tarde. A paisagem nunca cansa: os bacelos a cheirar bem, as leivas por toda a parte, um qualquer córrego coleando pelas encostas, dois ou três asnos antropologicamente lerdos, um carro de bois de apeiros encerados, guardado por um bazulaque tipicamente luso, meia dúzia de bigorrilhas, afiando cravelhos para as cancelas das suas leiras – um cenário propício a endechas; e o ar que se respira a afirmar que os farricocos não fazem negócio para estas bandas. Ao fim da tarde, guardamos tudo à matroca na mala do automóvel, e regressamos quando as estrelas começam já a lucilar no céu.
A nossa popularidade cresce diariamente, embora a obtemperança desta gente nos aborreça, como podem calcular. No entanto, ela não é tão intensa como supúnhamos. Se eles soubessem que não passamos de uma família de pirangas que, por exemplo neste momento, aguardamos o estipêndio para pagar as calotas!… Apesar do aumento, isto de ser médico à periferia não é nenhuma conezia e, se alguém pensa que, lá por sermos doutores, nos podemos entregar a bardinices, engana-se. Esperamos ter tudo resolvido no fim deste ano, caso contrário ainda arranjamos uma vesânia qualquer e dá-nos ataque em plena rua – o que nos expõe a receber o viático á vista de toda a gente.
O meu tio, não satisfeito com a magra tença que obteve, prossegue em veniagas e endróminas – um autêntico esmerilhão. Para nós é igual, porque continuamos sem pagar um caurim pela alimentação. Embora o escote seja igual para os três sócios, o meu tio cede a decisão ao sogro, que não se descose. E vamos acogulando os ventres à borla. O pior é se nos avezamos a este esquema e, depois, quando nos pedirem o dinheiro, corremos a alapardar-nos nalgum fojo do monte. Apesar destas facilidades, não nos estamos a cevar, não pensem! Continuamos verdadeiramente alfenins; a Mila, então, está mesmo taful com o vestido novo que comprámos no Porto. O Pedro continua dilúcido, mas ganhou um desgarre que lhe desconhecíamos. Já não é aquela criança flébil a que estávamos avezados. Um galipanso completo! A Marta medrou e com as garnachas que a avó Arminda trouxe de Lisboa, está cada vez mais faceira.
E parece que chegou o tempo de terminar este aranzel, que vai longo.”

Assim se divertia quem não tinha mais que fazer… Também não é bem assim: em Junho, tivemos outro divertimento – os festejos de S. João, nomeadamente, a procissão, que descrevi assim:

“Abria a procissão a fanfarra dos Bombeiros de S. Mamede de Infesta, com as suas majoretes com bom pernão, roçando até assar a ratinha; seguiam-se os pendões, o último dos quais (a Senhora Deles), era transportado por um puto com uma t-shirt estampada com uma gravura do Sandokan (Nossa Senhora na mão e Sandokan no coração); depois vinham os andores, puxados por excelentes tractores Fiat – entre os andores vinham as várias figuras: várias santas Efigénias, um Papa Paulo VI com uma espécie de antena de televisão na mão, e santos sortidos, e os três pastores de Fátima (duas miúdas e um miúdo que não tinham mais que três anos), um santo qualquer com um borrego, um padre a sério e uma banda, que fechava a procissão. Ao longo do extenso trajecto, os vários santos e santas iam sendo dessedentados pelas respectivas mamãs, com Sumol ou Fruto Real. E não é todos os dias que se vê um S. João a beber Sumol! No final do percurso já ia tudo esbarrondado: os soldados romanos haviam dado as espadas e os elmos às mamãs, os anjinhos desistiram de transportar as coroas e as asinhas, as santas puxaram os véus para trás ou deixavam mesmo os cabelos esvoaçar ao vento, o tal santo cujo nome não me lembro, havia passado o cordeiro a alguém, e os elementos da banda faziam concurso, a ver quem desafinava mais.”

O Zé Artur também participou na procissão, vestido de S. Expedito. Nunca perguntei ao Pedro se não terá ficado com inveja de – por causa do ateísmo feroz do seu pai – não ter participado na procissão. É que o S. Expedito ia vestido de soldado romano e brandia uma espada ameaçadora, o que dá sempre algum gozo aos miúdos…
Mas enfim, tirando as avarias constantes do R4 e a consequente compra do Fiat 124, dos livros do Aquilino e da procissão e festejos do S. João, que mais havia? Pouco mais… Mas há males que vêm por bem. Estava afastado da minha excelente aparelhagem de som, fabricada a partir de um velho amplificador Onkyo que, na chamada oficina Zé da Gatinha, tinha sido transformada numa autêntica bomba sonora.. A oficina Zé da Gatinha não era senão a tenda de campismo onde o Jorge e um amigo, engenhocas como ele, o Eurico, desfaziam e refaziam toda a espécie de aparelhos de som. Afastado, portanto, da aparelhagem, não tinha outro remédio senão ouvir rádio, e assim me reaproximei do rock, recomeçando a aprendizagem com os Police e “Message in a bottle”. Bee Gees é que não; quando os irmãos cantavam “To Love Somebody”, por exemplo, ainda se aturavam mas, quando começaram a esganiçar as vozes e lançaram o disco sound, não havia paciência. O Paulo enviou-me uma carta, por essa altura, em que, usando como base, o Manifesto Anti-Dantas, do Almada, escreveu um manifesto Anti-Travolta, que começava assim:

“Uma geração que consente deixar-se representar por um Travolta é uma geração que nunca o foi. É um coio de detergentes, de indignos e de surdos, é um rolo de papel higiénico e só pode cagar no penico. Abaixo a geração! Morra o Travolta, morra…PIM!
Uma geração com um Travolta num descapotável é uma Dona Elvira de pneus furados. Uma geração com um Travolta a pescar é uma peixaria sem bacalhau. O Travolta é paneleiro. O Travolta é meio paneleiro. O Travolta saberá vestir-se, saberá pentear-se, saberá ir à casa de banho, saberá tudo menos dançar, que é a única coisa que ele faz. O Travolta pesca tanto de dança que faz bailados ao som do tambor dos pupilos. O Travolta é gordo. O Travolta veste-se mal. O Travolta usa slips Tebe. O Travolta especula. O Travolta é um intermediário. O Travolta é Travolta. O Travolta é John. Morra o Travolta, morra…PIM!”

E continuava no mesmo tom, o Dr. Ghozé Pablito, na sua fúria contra o intérprete do “Saturday Night Fever”. Nunca vi tal filme, mas o Travolta, anos mais tarde, redimia-se, entrando no grande “Pulp Fiction”. A idade faz bem às pessoas…
Entretanto, em Agosto, o nosso entusiasmo por Moimenta começara já a esmorecer. As férias que viemos passar ao Algueirão fizeram-nos mal, na medida em que confirmámos o que estávamos a perder, ao viver desterrados em terras do Demo. Saudades sobretudo da nossa reforma agrária. O Zé e a Mizé, atarefadíssimos com o trabalho na Faculdade, tinham arranjado um tipo chamado Petronilho para dar um jeito no quintal, mas nós é que gostaríamos de estar lá para cavar e semear e regar e colher e podermos ir comprar víveres ao famoso Vítor da Torrejana, exemplo seguro do comércio local e dono da mercearia-taberna que ficava no lado de lá da nossa rua. Na nossa telúrica troca de cartas, perguntávamos sempre pelo Vítor da Torrejana. Era uma das nossas brincadeiras preferidas: introduzir um pouco de absurdo em tudo o que dizíamos ou fazíamos. Nunca tivemos nenhum relacionamento especial com o tal Vítor e nem sequer sabíamos se Torrejana provinha de Torres Novas ou Torres Vedras, ou nenhuma das anteriores; mas, falar do Vítor da Torrejana nas nossas cartas, era o tal elemento absurdo. Como o “homem dos cenários”, por exemplo, um tipo que nada tem a ver com a peça e que, sem ninguém saber porquê, entra e sai de cena sem nada dizer ou fazer. O mesmo se passava com o “pequeno cubo azul”, elemento absurdo que também gostávamos de referir nas nossas conversas e que simbolizava, de certo modo, as coisas sem sentido que vão acontecendo na vida e que fazem dela uma sucessão de acontecimentos, não obrigatoriamente relacionados. Na mesma linha se situava “o fim da carcacinha”. Eu explico: por razões misteriosas, costumo sempre deixar ficar qualquer coisa no prato; desde muito pequeno que me lembro de comer o pão com manteiga, açúcar e canela até ao fim, mas deixar sempre o mamilo do pão – o tal fim da carcacinha. Hoje em dia, o mesmo se passa com tudo: não bebo o café até ao fim, deixo ficar sempre o último pedaço do croquete ou do rissol – enfim, o fim da carcacinha, entendem? Talvez não, mas também não consigo explicar melhor…
As saudades do Algueirão e o regresso a Moimenta, após as férias, para mais cinco meses de desterro, provocavam coisas como esta que a Mila descreve numa carta para o Zé e a Mizé:

“Talvez descrever-vos um dos passatempos que descobrimos recentemente e do qual sou uma verdadeira aficcionada. Trata-se, nada mais nada menos, a caça a uns certos objectos voadores munidos de duas asas e que fazem bzz, bzz, por cima das nossas cabeças, pousando por vezes nos sítios menos próprios e que nos ralam o juízo metodicamente, tenazmente, religiosamente. Pois é, munimo-nos do pano das limpezas (?) convenientemente encharcado e zumba nelas. Pormenor estatístico: costumo falhar mais de 50%, mas espero obter melhores marcas no fim da época.”

Matar moscas, um divertimento!… Mas em Setembro, algo de novo acontecia e abanava o nosso quotidiano: a tia Odaleia, irmã da avó Rita, teve uma trombose, coitada…
Ora, estando a tia Odaleia internada no hospital de Viseu, em estado grave, a minha avó foi para Santiago, para tomar conta da casa da família, e nós fomos até lá, até porque a Mila nunca tinha ido à terra dos meus ancestrais, que será tema do próximo capítulo. Ficámos siderados com a quinquilharia antiga que por lá encontrámos. Como o meu espírito coleccionista andava muito inflamado, fiquei excitadíssimo com o que descobri e logo fiz uma lista, que enviei aos Buques:

“164 postais ilustrados, quase todos eles datados dos anos 30 ou 40; fotografias dos meus bisavós; dezenas de botões antigos; inúmeras estampas de santas que se veneram nas várias aldeias da Beira Alta, orações especializadas para cada tipo de mal, catecismos antiquíssimos, missais e outros artigos religiosos; um estojo de barba de 1936; vários volumes do almanaque Bertrand, de 1936 a 1944; o primeiro par de chinelas que a minha mãe usou; um biberão, também da minha mãe; uma latinha de solarine, mais antiga que a Coração; uma latinha de comprimidos da 1ª República; mapas humorísticos da Europa; panfletos políticos do tempo do Sidónio Pais…”

E a lista continuava, interminável. Durante algum tempo, entretivemo-nos a transportar alguma dessa tralha para Moimenta e numa dessas visitas (mais saque que visita, sejamos francos…), ao meter o Fiat no tal pátio interior, o toro de madeira que servia de rampa para o carro entrar, deslocou-se e fiquei com o sacana do carro encravado. O que vale é que as moçoilas de Santiago não são como as de cá: duas raparigas, duas, pegaram no carro em peso e desencravaram-no!
As cartas que escrevemos seguidamente, incluíam sempre uma lista dos objectos que íamos trazendo de Santiago, a que eu chamava “Relíquias do passado – Loucuras do presente”.
Paralelamente, dei-me também ao trabalho de escrever cartas a algumas empresas produtoras de vinhos, chocolates, sabonetes, etc, pedindo-lhes rótulos dos seus produtos. Muitas responderam-me e tinha já um dossier bem recheado de rótulos. Calculam, portanto, o peso que o Fiat teve que suportar, em Dezembro quando, finalmente, regressámos ao Algueirão…
Entretanto, no topo das cartas, o nome de Moimenta da Beira, foi sendo substituído, a pouco e pouco, por Tormenta da Feira, Rabugenta da Eira…
Era o espírito do Vovô Gasosa e das suas Fábulas, como “O Corvo e a Barbosa” (em vez de “O Corvo e a raposa”). E que era feito do Mário-Henrique? O Zé continuava a visitá-lo regularmente e a Velha estava cada vez pior da sua artrite. Enviámos-lhe uma .série de medicamentos que tínhamos arranjado. Escreveu-me o Zé, dizendo que ele não sabia como havia de tomá-los. Logo enviei ao Mário, a seguinte carta:

“Disseram-nos que não sabias o que fazer com tantos medicamentos. Decidimos, pois, explicar-te, o mais sucintamente possível:
1º Os supositórios: todas as embalagens que refiram, explicitamente, possuírem, no seu interior, supositórios, deverão ser separadas das restantes, a fim de se evitarem confusões desagradáveis. Depois, pegue-se numa dessas embalagens, que será cuidadosamente aberta. Retire-se do seu interior, um objecto vagamente cilíndrico, com um dos topos afilados. Estarás, então, em presença de um supositório. Resta retirá-lo do invólucro plastificado que o protege das intempéries, e seguir o conselho de D. Daniel Comboni. (Seguia-se uma ilustração de um padre, que tínhamos saqueado em Santiago, com um balão que dizia: “Na peida!”)
D. Daniel Comboni, que foi o primeiro bispo da África Central, além de fundador dos Missionários Combonianos (missionários formados num comboio em andamento), faleceu em 1881, apesar de toda a sua piedade, e da grande confiança que gozava junto de Deus, a quem visitava frequentemente. Mesmo assim – e porque Deus não tem satisfações nenhumas a dar a ninguém – veio a falecer, não sem posar para um fotógrafo aborígene, formado em West Point. Sem isso, teria sido impossível incluí-lo neste estudo sobre as drogas.
Claro que, para enfiar o supositório na peida, basta empurrá-lo com um dos dedos da mão direita e, mal ele penetre, é só fingir que se engole com o cu.
2º Os comprimidos e as cápsulas – É este outro grupo de drogas que, ao contrário das anteriores, deve ser ingerido pela boca – o que pode parecer estranho e, de facto, é.
Os comprimidos são os de forma arredondada e têm sido vulgarizados com o nome de “pílulas”. Como nos confidenciou o cardeal patriarca de Lisboa, D. Manuel Gonçalves Cerejeira, a importância da pílula não é para desprezar. (Seguia-se outra ilustração, esta do Cerejeira, cuja legenda já não recordo…)
Quanto às cápsulas, é preciso ter muito cuidado… A sua forma ovalar pode levar a confusões perigosas (embora engraçadas…)
Resta acrescentar que, para facilitar a ingestão, quer dos comprimidos, quer das cápsulas, pode beber-se um pouco de água ou – o que será ainda melhor – um muito de gin.
Se, por infeliz acaso, encontrares no saco dos medicamentos algum xarope – não o bebas. O gin é um tónico muito mais eficiente.”

Em Outubro, o Pedro iniciou, oficialmente, a sua vida de estudante, ingressando na Escola Primária de Moimenta da Beira, a fim de aprender a ler, a escrever e a fazer contas. Diga-se de passagem, que o nosso filho, desde muito novo, demonstrou a sua queda para as letras: tenho um slide de Maio de 1976 (ainda ele não tinha completado três anos de vida) que mostra o precoce rapaz a escrever o seu nome, correctamente, numa ardósia.
O início das aulas do Pedro e outros acontecimentos do quotidiano, era assim relatadas, na minha carta para o Dr. Ghozé Pablito e Madame PasseVite (pseudónimo da minha irmã na Correspondência da Beira):

“Foram instalados sinais luminosos (amarelo intermitente), perto da escola primário e do liceu, mas o instrutor da escola de condução acha que foi dinheiro deitado à rua. O actual presidente da Câmara não se candidata às próximas eleições. Está farto de ser presidente. A estrada que leva ao infantário da Marta está cheia de buracos – não a arranjam porque, como nessa estrada está situada a vivenda do sr. presidente, poderia pensar-se em favoritismo. Por enquanto, o nosso carro ainda vai sendo maior que os buracos. A Açucarinha floresce! No outro dia deram um almoço para oitenta pessoas e não havia mais pratos. Comemos em pratos de sobremesa. Apareceu um pedaço de chave encravado na fechadura do Lápis. Quem terá sido o malandro que tentou forçar a entrada? O Pedro cada vez gosta mais da escola e até já aprendeu o que são animais domésticos. Acontece que, às segundas feiras, o sr. padre vai à escola primária, junta os miúdos das várias classes e faz palhaçadas! O santo homem pediu que levassem um caderno para escreverem o que ele escrever no quadro. Mas então que é isto?! A religião faz parte do programa primário?! Que fazer? Ir buscar o puto mais cedo às segundas feiras? Assassinar o padre? Ensinar o puto a mandar o padre à merda? Ou destruir, em casa, o que o padre tenta fazer na escola? O tio Zé também vende revistas pornográficas. O Bondoso esteve com diarreia. O Zézinho mija todas as noites na cama. A Carla não sabia que o sol é uma estrela. O Pedro já possui 45 carrinhos na sua colecção. A Marta também está com diarreia. Hoje ficou de molho. Hoje comprei um maço Sagres, porque não havia SG no sr. Vitoriano. Comi lulas no sr. Vitoriano. O sr. Vitoriano é o dono do café de Armamar. Chovia no nosso quarto mas um pedreiro já compôs as telhas. Os vossos copos, escovas de dentes e, se calhar, até os próprios dentes, estão em casa da Arminda. Ainda não vimos nenhum episódio da nova telenovela Dancing days. Daqui a um mês a Bela faz anos. Parabéns. O Zé Couto faz a 4 de Novembro. Parabéns também para ele. Parabéns ainda para a Marta, que faz anos a 30 de Novembro. Parabéns para o Paulo, que já fez anos. E para a Mila, para o Pedro e para mim, parabéns a todos. O infantário subiu para mil paus. Portugal perdeu com a Bélgica mas os aliados ganharam a 2ª guerra mundial.”

Este estilo epistolar, enfastiado, de quem está farto de tudo e se limita a alinhar frases com algum sentido, foi desenvolvido na carta seguinte, em Outubro, para os Buques:

“O Pedro está no terceiro dia de varicela, mais exuberante que a Joana, roçando o corpo pelas esquinas por mor da comichão. A Mila está menstruada. Temos estudado que nem uns brutos, domingo e tudo. Hoje almoçámos bifes de cebolada. O Lemus escreveu. Diz que é difícil vender os trezentos exemplares que o PS diariamente salda em hasta pública (o nosso amigo Rui Lemus era, na altura, depois de regressar da sua curta carreira diplomática, coordenador da secção internacional do jornal “Portugal Hoje”, conotado com o Partido Socialista). Ainda não fomos transferidos para Moimenta (aguardávamos a transferência do Centro de Armamar, para o de Moimenta, que havíamos solicitado à Administração). Fomos ver uma casa que estava para alugar. Três quartos, uma sala enorme, dispensa, cozinha, casa de banho, duas varandas. O couro cabeludo possui cerca de cem mil cabelos. A Lotaria Nacional comemora 196 anos. Foram instalados quatro semáforos com luz amarela intermitente, perto da escola e do ciclo. Agora é mais fácil saber-se onde se pode atropelar criancinhas. Há quem dê mil e quinhentos contos pela casa de Santiago. Ainda é pouco. Diariamente, em média, o couro cabeludo perde setenta cabelos. Se não existisse a Regeneração Capilar, um tipo estava careca em 1 428,5 dias, isto é, um pouco mais que três anos. A renda da casa que fomos ver é de cinco contos mensais. Não a alugámos. Já está um barbeiro dos diabos. Na telefonia estão a transmitir canções do Brel. 92% dos doentes com lupus eritematoso, queixam-se de artralgias. Amanhã há um grande filme no pavilhão da Sicafil. Não me lembro do nome. A falta de vitamina A provoca, nomeadamente, xeroftalmia, queratomalácia, xerodermia, hiperqueratose folicular.”

E assim continuava a carta por mais algumas páginas… Era mesmo de quem não tinha mais nada para fazer… A não ser, escrever, escrever desesperadamente. Foi em Moimenta que escrevi “Os Inimigos da Ordem Pública” e “A Tropa Fandanga”, e que coleccionei as minhas histórias publicadas no República, e outras que entretanto fora escrevendo, dando-lhes o título genérico de “Estórias Malvadas”. Tudo foi enviado para o Jorge, que fez o favor de me fazer cinco cópias de cada um. O objectivo era concorrer ao primeiro prémio literário do Círculo de Leitores, cujo prémio era de 500 contos – nada de deitar fora. O Zé também andava a escrever um livro, que não sei se chegou a enviar para concurso. O problema é que o regulamento exigia trezentos mil caracteres e eu sempre me dei mal com textos longos. Foi preciso esperar 48 anos e lembrar-me de escrever estas memórias, para conseguir um texto bem longo…
Entretanto, e depois de uma varicela tramada para a Marta, que lhe deixou, nomeadamente, uma marca indelével na testa, aproximavam-se as eleições. A meio de Novembro, numa carta para o Jorge e a Luisa, escrevi:

“O Dr. Ferro, veterinário da área, é um dos cabecilhas da APU. O meu tio é candidato às autárquicas pela AD. O sr. Raul, da farmácia, é do PS. O Pedro e a Marta tomaram banho ontem. O Pedro já trouxe trabalhos para casa (deberes) por duas vezes. O sr. padre informou-o que nós temos dois pais: o da terra e o do céu. Continuamos à procura do outro. Comprámos um triciclo à Marta, uma máquina de costura de lata e uma mesa com duas cadeiras. O sr. Vitoriano é um dos cabecilhas do PS de Armamar. A Mila está-me confeccionando um salta-por-cima, vulgo pull over, que é uma tara! Estou á rasca para mijar! O Gin já tem coleira de couro.”

E assim sucessivamente. O estilo epistolar mantinha-se. Quanto ao Gin, era um cachorro que tínhamos adoptado e tencionávamos levar para o Algueirão, não fosse o pobre do bicho ter sido atropelado mesmo em frente à Açucarinha e ter ido ter com o pai do céu, como diria o sr. padre. Foi o nosso primeiro Gin canino. Outro viria, mais tarde, fazer-nos companhia durante muitos anos…
O regresso ao Algueirão estava para breve mas, entretanto, outra nuvem pairava no horizonte: a tropa. Claro que eu, no fundo, já sabia que não me ia livrar de servir a pátria – os sucessivos adiamentos eram apenas isso, adiamentos. O meu número mecanográfico de inscrição na instituição militar era muito baixo (quatrocentos e qualquer coisa) e, anualmente, os gajos estavam a chamar 140 médicos para prestarem o Serviço Militar Obrigatório. Portanto, eu não tinha a mínima hipótese de me safar. Bem tentei, no entanto… Mobilizei toda a família para falarem com este e com aquele, que conhecia o outro que era amigo daquele que talvez conseguisse riscar-me da lista dos incorporados, mas tudo foi infrutífero. Por isso, à medida que o internato de Policlínica chegava ao seu termo e, com ele, o fim dos adiamentos, a realidade de dezoito meses de tropa, com um ordenado miserável, era cada vez mais provável. E, se já estávamos aflitos de dinheiro com os nossos iníquos ordenados de médicos na província, cheios de dívidas até ao pescoço, como seria depois, com a tropa? Foi por essa altura que voltaram os sintomas psicossomáticos cá ao rapaz, como descrevo nesta carta do princípio de Dezembro:

“Atravessámos, desde o nosso salto a Lisboa, em Outubro passado, um mau período, em que o moral esteve muito por baixo e manifestaram-se mesmo alguns sintomas físicos de origem psíquica: opressões no peito, pulso rápido, tensão alta, sensação permanente de insatisfação gástrica. (…) Este estágio de saúde Pública serviu, pelo menos, para uma coisa muito importante: a definição da nossa posição perante a profissão que escolhemos. Aí em Lisboa, com a experiência jornalística mais ou menos fresca e com o estilo de vida que, apesar de tudo, nos permitia dispersão por vários campos (ouvir boa música, fazer trabalhos manuais, ler muito, ver bom cinema e discutir muitos temas com pessoas inteligentes), a medicina quase que não passava de um apêndice. Aqui, pelo contrário, fomos obrigados a praticá-la como única actividade interessante. E chegámos à conclusão de que gostamos de ser médicos; e mais – de que gostamos de ser médicos de província, de um pequeno Centro de Saúde, onde as pessoas se vão conhecendo, onde podemos praticar uma medicina personalizada, e pensamos que a nossa realização profissional partirá daqui, e não de uma especialização em Pediatria ou outra coisa qualquer.”

Esta reflexão é muito importante porque, de certo modo, denota um amadurecimento da perspectiva que eu tinha em relação à Medicina. Claro que, depois, a tal sucessão de acontecimentos não obrigatoriamente relacionados, que é a vida, fez com que eu decidisse concorrer a Psiquiatria mas, finalmente, cá estou eu, em Clínica Geral, há 17 anos! Por outro lado, este naco de prosa, escrito em 1979, mostra como o Governo de então, e os que se lhe seguiram, perderam a oportunidade de fixarem médicos na província. Profissionalmente, muitos de nós estavam motivados para isso. Mas o vencimento era uma merda, casas não havia, as autarquias estavam-se lixando, os médicos residentes faziam guerra ou alheavam-se, em vez de apoiarem e a legislação que poderia mudar tudo isso demorou anos a ser aprovada. Quando o foi, era tarde. Já desmotivados, ou com laços mais fortes que nos ligavam a esta ou aquela cidade, sem a “tesão revolucionária post-25 de Abril” que muitos de nós tínhamos, perdeu-se toda uma geração de médicos que poderiam ter sido a base de um verdadeiro Serviço Nacional de Saúde. Recordo que nós os dois terminámos o nosso internato no final de 1979 e só fizemos o respectivo exame três anos depois!…
Assim, com o coração apertado, temendo ser incorporado no garboso exército deste país à beira mar plantado, taquicárdico e já ligeiramente hipertenso, aos 26 anos, com o internato policlínico concluído, mas desconhecendo se ia me ia servir para alguma coisa, sempre fumando, regressei ao Algueirão com a minha querida família, a meio de Dezembro de 1979, depois de oito meses torturantes pelas terras do Demo.
Se outras coisas não retirei destes meses, pelo menos duas ficaram: a certeza de que queria, e gostava, de ser médico e um Fiat 124, com 1 400 centímetros cúbicos de cilindrada, que tornou a viagem muito mais rápida e segura, embora o Pedro e a Marta continuassem a vomitar para o já clássico penico.

 





 

 

 




 

Actualizado em: 27 Abril 2003
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