19. Mourão (1980)
A 24 de Novembro de 1977 recebi um postal do Distrito de
Recrutamento Militar nº 11, que dizia:
“Informa-se que deve comparecer neste DRM, antes
de 30 do corrente mês, a fim de legalizar a sua situação
militar e proceder à liquidação da
anuidade da taxa militar do ano de 1976, sem o que fica
pronto a incorporar.
Mais se informa que foi recebido o certificado da sua licenciatura
em medicina, o qual não pode ser considerado visto
ainda lhe faltarem os 2 anos de policlínico para
o qual poderá pedir adiamento para 1979.”
Isto queria dizer que, desse as voltas que eu desse, não
me safaria de cumprir o Serviço Militar Obrigatório.
Mas tentei tudo, juro que tentei: os familiares e os amigos
fizeram pedidos a sargentos lateiros e a empregados de secretaria,
alguns dos quais prometeram mundos e fundos, mas nada conseguiram;
fiz requerimentos ao Estado Maior do Exército, alegando
que o meu trabalho como médico era essencial para
a população de Mourão; meti o Presidente
da Câmara de Mourão ao barulho e ele também
fez uma exposição a quem de direito; o delegado
de Saúde também foi incluído no meu
rol de pedidos, até porque a mulher dele tinha algo
a ver com médicos militares – nada. A tropa
precisava de mim!
Eu é que não precisava da tropa para nada!…
A única coisa que consegui, foi um adiamento da incorporação.
Por mero acaso, encontrei um colega que tinha a sua incorporação
marcada para Setembro de 1980 e que, por qualquer motivo,
lhe dava mais jeito entrar logo em Março. Fizemos
um requerimento conjunto e a tropa aceitou a troca. No dia
25 de Fevereiro de 1980, recebi mais um postal do DRM, que
dizia:
“Informo que foi deferido o requerimento em que
pedia troca do 1º para o 2º CEOM/80 com o recruta
João P. H.. L. de Faria, pelo que fica sem efeito
a sua convocação para o dia 17 de Março
de 1980, ficando portanto destinado para o dia 1 de Setembro
de 1980.”
Não me recordo nem um bocadinho do recruta João
P. H. L. de Faria, mas obrigado, pá, estejas onde
estiveres! Graças a ti, consegui protelar, por sete
meses, o tormento da tropa e, assim, juntar algum dinheiro,
graças ao ordenado de médico à periferia
(cerca de vinte e cinco contos limpos!)
O Serviço Médico à Periferia (SMP)
foi uma grande invenção. Assim, de repente,
todas as aldeias e vilas de Portugal passaram a ter médicos
jovens para tratar das suas populações. Foi
um grande avanço na Saúde em Portugal, sobretudo
em áreas onde as coisas estavam muito por baixo como,
por exemplo, na Saúde Infantil e Saúde Materna.
Não tenho números aqui à mão
– e não é esse, também, o objectivo
deste texto – mas sei que a taxa de mortalidade infantil
diminuiu drasticamente, desde que foi instituído
o SMP. Simultaneamente, o SMP foi o ideal para desenrascar
milhares de médicos acabados de sair das Faculdades
e com uma aprendizagem demasiado teórica. Foi o desenburranço
geral. Atirados para a província, em localidades,
por vezes, a dezenas de quilómetros de um hospital
distrital, nós não tínhamos alternativa
senão desenrascarmo-nos. Finalmente, o SMP foi ainda
o ponto final de muitas relações entre colegas
e não colegas, namoros e casamentos que se desfizeram
pela distância, por novas intimidades que se criavam.
Mas recuemos um pouco.
Estamos em Janeiro de 1980, acabados de chegar de Moimenta;
no mês seguinte, partiríamos para o SMP. Portanto,
nesse mês de transição, face às
inúmeras coisas que tínhamos a tratar, deixámos
os miúdos em casa dos Sousas, para que o Pedro pudesse
frequentar uma escola primária em Queluz.
No dia 7, fomos de urgência a casa do Mário-Henrique
e encontrámo-lo num estado deplorável, magríssimo,
pálido, mal encarado, desidratado, cheio de dores.
Não foi difícil convencê-lo a ir ao
Hospital de Cascais. Ele próprio se sentia tão
mal, que acedeu de bom grado. No Serviço de Urgência,
o colega que o atendeu conhecia vagamente “Os Contos
do Gin Tónico” e ficou estupefacto ao conhecer
o seu autor naquele estado de decrepitude. O internamento
para estudo da situação clínica foi
decidido. Quando estava a ajudar o Mário-Henrique
a deitar-se na cama que lhe estava destinada, o doente da
cama ao lado, com sequelas de acidente vascular cerebral,
ressonava alto e bom som. Comentário do Mário:
“Que bom, pá! Aquele gajo trouxe o trombone!”
O sarcasmo sempre presente, mesmo na hora da morte…
E, de facto, o Mário morreu pouco depois. Não
se chegou a estabelecer um diagnóstico. Penso que
o Mário teria, provavelmente, uma neoplasia gástrica.
O Rui Lemus diz que ele morreu à fome. Tinha apenas
57 anos e os que o conheceram sabem bem o que perderam com
a sua morte.
O nosso amigo Mário-Henrique, em Carcavelos,
com pouco mais de 50 anos.
Mas voltemos à vida…
No dia 22, no Hospital de Santa Maria, acontece o sorteio
das onze vagas para os Açores e Madeira.. É
a angústia do costume. Os cigarros consumidos à
espera que não saísse o nosso número.
O meu número de inscrição no SMP era,
curiosamente, o 69. Esse número, no entanto, nunca
poderia sair porque, como futuro soldado da pátria,
eu tinha, pelo menos, um direito: escolher o sítio
onde pretendia fazer os sete meses de SMP que me separavam
da incorporação. Felizmente, o número
da Mila (o 70) também não saiu, nem para os
Açores, nem para a Madeira.
No dia 24, a Mila inscreveu-se em Reguengos de Monsaraz,
onde havia oito vagas. No dia seguinte, meia hora antes
de fecharem as inscrições, as oito vagas estavam
preenchidas; os colegas que se inscreveram eram todos nossos
conhecidos e com quem mantínhamos boas relações
desde o início do curso, nomeadamente, a Matilde
(hoje especialista em imunohemoterapia) e a Luisa Cortesão
(hoje endocrinologista). Faltavam doze minutos para o fecho
das inscrições, quando outra colega nossa,
a Pilar, decide inscrever-se, também, em Reguengos.
Isto queria dizer que, havendo nove médicos para
oito vagas, teria que se fazer um sorteio para que um dos
médicos saísse e fosse, depois, ocupar uma
das vagas ainda livres – quase todas no cu de Judas,
como se pode calcular. Assim, à última hora,
a Mila retira a sua inscrição em Reguengos
e inscreve-se em Mourão onde, para duas vagas, só
havia uma médica inscrita. No dia 3 de Fevereiro,
já estávamos em Mourão.
Descrevo este processo com minúcia para dar uma ideia
de como a vida é a tal sucessão de acontecimentos
não obrigatoriamente relacionados e que, muitas vezes,
não vale a pena fazermos grandes planos. As coisas
acontecem por acaso e sem nenhuma lógica especial.
Muito antes disto tudo, quando ainda estávamos em
Moimenta, estudámos várias hipóteses
quanto ao SMP; fazê-lo numa localidade próxima
de Lisboa estava fora de questão: as vagas não
eram muitas e os candidatos seriam sempre imensos, havendo
lugar aos tais sorteios que nos poderiam atirar para outra
Moimenta qualquer. Pensámos, então, no Alentejo;
estávamos fartos da Beira, das más estradas,
do frio. Escrevemos cartas a colegas que estavam a fazer
o estágio de Saúde Pública em várias
localidades do Alentejo, pedindo-lhes informações;
equacionámos as hipóteses de Portel, Mértola,
Beja, Redondo e Reguengos. Nunca pensámos em Mourão;
sessenta quilómetros para lá de Évora,
a escassos oito quilómetros da fronteira com Espanha
-parecia-nos demasiado longe. E acabámos por lá
ir parar!
Mourão foi uma surpresa para nós: uma vila
alentejana arrumadinha, um monte com as casinhas caiadas
por ali abaixo, um castelo abandonado, um largo com um coreto
bordejado de laranjeiras, um Centro de Saúde pequenino
e simpático, o Guadiana mesmo ali ao pé. Ficámos
apaixonados.
Aliás, meus amigos, naquela altura, não era
preciso muito para nós nos apaixonarmos!…
Ainda por cima, a Câmara Municipal tinha um casarão,
à borla, para os policlínicos. Tinha pertencido
à família Esquível e ficava mesmo no
cimo do monte. Do terraço, que ocupava toda a superfície
da casa, avistava-se toda a vila e, lá ao longe,
terras de Espanha. A casa estava dividida em duas partes:
a mais pequena, com uma sala e um quarto, destinava-se aos
colegas que faziam o estágio de Saúde Pública;
a maior, com três grandes quartos, um salão,
cozinha, casa de banho e um hall de entrada gigantesco,
destinava-se aos P3, designação por que eram
conhecidos os médicos do SMP. Num dos quartos, ficou
a nossa colega Fátima, que levou uma filha com menos
de dois anos; noutro quarto, ficaram o Pedro e a Marta e,
no terceiro quarto, eu e a Mila. Havia ainda um jardim à
frente e um tanque, onde os putos davam uns valentes mergulhos
nas tardes quentes de Verão (que eram quase todas).
A Fátima, que tinha deixado o marido em Lisboa, estava
lá o mínimo tempo possível, de segunda
a sexta; por isso, a casa era praticamente nossa.
Mas não fomos sozinhos para a periferia. Connosco
foi o gatão Snoopy, que levámos do Algueirão
e a quem demos um Valium para se aguentar na viagem. O bicho
borrou-se todo pelo caminho, mas chegou são e salvo.
Existe uma certa polémica familiar em redor deste
Snoopy, já que ninguém se lembra ao certo
como é que ele aparece na nossa vida. Desde o Nuno,
o nosso primeiro gato, que sempre andámos com animais
domésticos atrás. O Carlos (carregar no erre,
por favor) – gato de que também já falei
– e o Nuno, acabaram por morrer, ou desaparecer, o
que vai no mesmo, enquanto estivemos em Moimenta. O Snoopy,
terá aparecido, entretanto, lá pelo Algueirão
e, temendo que ele tivesse a mesma sorte que os outros dois,
decidimos levá-lo connosco para Mourão. Esta
deve ser a versão mais perto da realidade.
O Pedro, entrou gloriosamente na sua terceira escola em
escassos quatro meses e adaptou-se muito bem. Ainda por
cima, a professora era uma moça nova, cheia de vontade
em ser professora e prontificou-se a ajudar o Pedro, em
casa dela, durante algum tempo, porque a classe, em Mourão,
ia mais adiantada do que em Moimenta.
A Marta ingressou numa creche da Câmara Municipal,
muito bem apetrechada, cheia de brinquedos e com uma casinha
de bonecas gigante, e integrou-se imediatamente. Para nos
ajudar, na limpeza do casarão, na confecção
das refeições e na vigilância das crianças,
quando estávamos de serviço, contratámos
a Rosa, por cinco contos por mês, a meias com a colega.
A Rosa era casada com o motorista da ambulância dos
bombeiros de Mourão, o Ratão, e tinha um filho,
o Jorge, um pouco mais velho que o Pedro; pensava que os
dois se tinham tornado grandes amigos, claro, mas o Pedro,
ao ler este capítulo, informou-me que, antes pelo
contrário, detestava o Jorge Ratão porque
o puto, aproveitando o facto de ser mais velho, lhe dava
umas palmadas, de vez em quando. E eu que nunca me apercebi
disso!... O Pedro sempre foi muito discreto e nunca gostou
de criar problemas...
O Pedro e a Marta, na casa de Mourão, com a vila
toda lá ao fundo e, em cima, o castelo.
No Centro de Saúde, rapidamente fizemos amizade
com um casal de jovens administrativos, o António
Manuel e a Rosa, que se tornaram parceiros de king, de passeios
e conversas até às tantas.
Enfim: adaptámo-nos rapidamente à vida em
Mourão, integrámo-nos muito bem naquela comunidade
simpática e – como o que nós queríamos
era estabilidade – logo começámos a
pensar em ficar por lá.
Nesse sentido, mobilizámos a família que,
a pouco e pouco, e por cada visita que nos fazia, ia levando
coisas da nossa casa: livros, discos, loiças, até
móveis. O isolamento que caracterizou a nossa estadia
em Moimenta não tinha nada a ver com Mourão.
Apesar de não haver auto estradas, eram pouco mais
de duzentos quilómetros, sempre a direito. Por isso,
toda a família por lá passou, e por mais de
uma vez. E sempre que aparecia alguém, era obrigatória
a romagem a Monsaraz, de onde se contempla uma planície
a perder de vista; ou um salto a Vila Nueva del Fresno,
do lado de lá da fronteira, para comprar gin Gordon’s
a duzentos escudos ou maços de Ducados; ou uma visita
à Amareleja, para comer silarcas e beber vinho por
copos pequeninos até começar a cantar, espontaneamente,
“Ó rama, ó que linda rama!”…
Uma dessas primeiras visitas foi logo no início de
Fevereiro: o Jorge, a Luisa, o Zé, a Mizé
e a Joana; e, no porta bagagens do carro, traziam-me uma
boa prenda: uma aparelhagem Sanyo, com cinquenta e cinco
watts por canal, que custou trinta e cinco contos, e que
fui pagando em suaves prestações.
Era o fim da velha aparelhagem Onkyo, modificada na oficina
Zé da Gatinha e que passou a chamar-se Attack, depois
das alterações introduzidas pelo Jorge e pelo
Eurico.
Outra visita que ficou famosa foi a do Zé Couto.
Fomos os dois até Monsaraz e passámos a tarde
a comer queijinho, cogumelos fritos com ovo e a beber o
bom tinto de Reguengos. Ao regressarmos, a estrada parecia
ter ficado, subitamente, cheia de curvas ondulantes e, ainda
por cima, com relevé! Foi a minha primeira piela
de vinho! A minha única consolação,
como novato destas coisas, foi que bebi tanto como o meu
pai e ele parecia mais bêbado que eu. Quando, milagrosamente,
conseguimos chegar a Mourão sem ter abalroado nenhum
sobreiro, corri para casa, a tomar dois Emerases para tentar
dissipar os vapores do álcool (aliás, um Emerase,
porque o outro fugiu-me entre os dedos e escapuliu-se pelo
ralo do lavatório abaixo – estava vivo, o cabrão!).
Pelo contrário, o Zé Couto, cada vez mais
alegre, decidiu demandar o Café Central e continuar
a provar os vários vinhos da região –
o do Redondo, o de Pias, o da Vidigueira. Resumindo: tive
que ir buscá-lo por um braço e arrastá-lo
para casa no momento em que, muito provavelmente, já
estaria a propor-se como candidato à Junta de Freguesia
nas listas da APU.
Ah! O vinho de Reguengos!… E o bagaço, a quem
nós chamávamos ternamente “o reguenguinhos”!…
De cada vez que ia fazer um banco de urgência a Reguengos
(e era quase todas as semanas), passava sempre pela Cooperativa
de Reguengos e comprava, por um preço irrisório,
duas garrafas para mim e uma caixa para o Sousa que, se
já era grande fã de bagaço, se tornou
um incondicional do reguenguinhos. Quando vínhamos
a Lisboa, era certo e sabido que, na mala do Fiat 124, havia
sempre um espaço destinado a algumas garrafas de
bagaço de Reguengos para distribuir pela família.
Eu, que me limitara até aí, no que respeita
a bebidas alcoólicas, a beber o já tradicional
gin tónico, antes das refeições, cerveja,
durante as refeições e, de vez em quando,
um brandy reles depois das refeições, comecei
a trocar a cerveja pelo vinho e o brandy pelo bagaço.
Só que, ligeiramente dipsomaníaco como sou,
se bebia, em vinho, a mesma quantidade que bebia, em cerveja,
estaria a um passo de me tornar um alcoólico. E o
reguenguinhos gelado? Quem é que era capaz de só
beber um cálice?
O episódio de Monsaraz com o meu pai, a sensação
de que a estrada estava estupidamente a fugir do carro,
alertaram-me: algo estava a correr mal.
O acidente com os colegas de Saúde Pública
foi a gota final. Tínhamos muito boas relações
com esses dois colegas: o Jorge (hoje clínico geral
em Sines) e o Rogério (hoje clínico geral
no Laranjeiro) e um dos nossos passatempos era dar um salto
a Espanha, à tal vila onde assassinaram o Humberto
Delgado, e onde a cerveja escorregava muito bem. Numa dessas
noites, o calor era muito, a sede ensurdecedora e a cerveja
espanhola estava especialmente escorregadia. Devemos ter
bebido umas dez ou doze imperiais cada um. No regresso,
os colegas , eu e o Pedro, viemos no Talbot novinho em folha
do Jorge; um pouco mais à frente, vinham a Mila,
a Marta, a Rosa e o António Manuel, no carro deste.
A noite estava escura como breu, mas a cervejola iluminava
o caminho. De súbito, surge uma carroça puxada
por uma mula, que devia estar escondida debaixo do alcatrão
ou coisa que o valha, porque só a vimos quando já
estávamos mesmo em cima dela. O Jorge guinou o volante
e só parou quando o carro arrancou uma azinheira
pela raiz. Eu, no banco de trás, deitei-me em cima
do Pedro, para o proteger e, assim que o carro parou de
dar voltas, saímos os dois lá de dentro mais
rápidos que o próprio Houdinni.
Estava decidido: acabaram-se as pielas. Voltei ao gin tónico
antes das refeições e à cerveja durante
as mesmas. Quanto ao vinho, só voltei a bebê-lo
quase vinte anos depois…
Aliás, a minha relação com o álcool
até tem sido pacífica: tirando a piela com
o meu pai, em Monsaraz, só me lembro de mais duas
besanas a sério: no dia em que a minha mãe
morreu, em que bebi uma garrafa de whisky e, anos mais tarde,
quando a Mila descobriu o que parecia ser um nódulo
na mama e foi fazer uma mamografia que, felizmente, não
tinha nada…
De resto, bebo morigeradamente, como diria o Mário-Henrique.
No dia do meu 27º aniversário, o Pedro deu-me
um cachimbo. A ideia era, talvez, que eu deixasse os cigarros…
Mas isso é que era mais difícil... O cigarro
tem sido, de certa forma, a testemunha de todas as peripécias
da minha vida e deixá-lo parece quase uma traição...
Apesar de me sentir bem em Mourão, o espectro da
tropa a aproximar-se, fazia das suas. A expressão
somática dessa angústia eram as extrassístoles.
A crise que já relatei, que me acometeu durante a
projecção de “O Rei das Berlengas”,
repetia-se amiúde. De súbito, sem saber como
nem porquê, sentia o coração dar uma
cambalhota dentro do peito e, depois, partir à desfilada,
mas como se fosse um cavalo coxo, com falhas nas batidas
e pausas, que me pareciam eternas. Às tantas, era
muito difícil pensar fosse no que fosse, senão
na morte iminente. Naquela altura, ainda não sabia
muito bem o que se estava a passar comigo e, a princípio,
pensei que, diminuindo os cigarros, talvez a coisa melhorasse.
Passei-me, então, para o cachimbo, reduzindo o consumo
de cigarros para quatro ou cinco por dia. Sol de pouca dura,
no entanto. O tabaco de cachimbo fazia-me arder a garganta
e, definitivamente, eu não tinha paciência
para todo o ritual que o cachimbo envolve: encher o fornilho,
calcar bem o tabaco, e manter aquilo aceso durante um período
de tempo aceitável. Depressa me fartei e voltei aos
cigarros.
Preocupado com as extrassístoles – e temendo
que, em Setembro, não aguentasse um dia de Ordem
Unida na recruta – comecei, também, a fazer
algum exercício físico regular, coisa que
já não fazia desde que fora um brilhante atleta
de ginástica do Benfica. Iniciei-me no jogging, no
que era acompanhado pelo António Manuel. Ao fim da
tarde, depois das consultas de clínica geral (em
que eu observava os doentes e ele carimbava as receitas),
vestíamos uns calçonitos e íamos correr
para os lados da albufeira (um braço do Guadiana
que formava uma espécie de lago, perto da vila).
Chegava a casa estoirado, a bater válvulas e com
a sensação de que o coração
ia saltar a qualquer momento pela boca.
Desisti, ao fim de meia dúzia de crosses. Nos anos
que se seguiram, sempre rejeitei a simples ideia de fazer
qualquer tipo de ginástica. Defendia-me, citando
Churchill, que terá dito que o segredo da sua longevidade
era nunca ter feito ginástica e sempre ter fumado
um charuto após as refeições. No fundo,
eu tinha era medo de que o meu coração me
pregasse a partida de desistir de bater, a meio de algum
esforço mais pronunciado. Só depois dos 40
anos descobri que, afinal, o que o meu coração
queria era exactamente ser martirizado pelo exercício
físico. Pouco depois de ter começado a fazer
musculação com alguma regularidade, as extrassístoles
começaram a ceder lentamente, até quase desaparecerem.
Mas esta história ainda há-de ser melhor contada…
E o que se fazia mais, em Mourão, além de
beber reguenguinhos e jogar king com os administrativos
e correr pelas margens da albufeira e mergulhar em cerveja
espanhola?… Bom, havia a praia do Guadiana, mesmo
ao pé da fábrica da Portucel onde, calçando
sandálias de borracha, por causa dos calhaus rolados,
se podia dar uma cacholada nos dias mais quentes e havia
o Club Mouranense, onde se jogava bilhar, se bebia um café
e se confraternizava com a elite da vila. E havia também
a casa do Dr. Tito, que era o delegado de Saúde e
tinha uma televisão a cores. Lá passámos
alguns serões, a beberricar whisky e a ver episódios
dos Muppets a cores.
Bom sacaninha, o Dr. Tito. Recebeu-nos de braços
abertos mas, assim que percebeu que estávamos com
vontade de nos radicar em Mourão, o que iria afectar
a sua actividade médica, deu o seu parecer desfavorável
ao pedido da Mila para continuar em Mourão por mais
um ano, enquanto eu continuasse na tropa.
É outra história que contarei mais à
frente mas, desde já, quero agradecer a má
vontade do Dr. Tito. Foi graças a ela que pudemos
regressar ao Algueirão e acabar, definitivamente,
com a nossa mania de querermos ser médicos na província,
quando ninguém queria: nem o governo, que nunca foi
capaz de aprovar verdadeiros incentivos para a fixação
de médicos na periferia, nem os médicos residentes,
que sempre temeram a concorrência dos mais novos.
Entretanto, na Rádio Comercial, começara o
“Pão Comanteiga”, da autoria do Carlos
Cruz, José Duarte e Mário Zambujal. Quando
ouvi alguns dos programas, fiquei invejoso. Aqueles tipos
estavam a fazer uma coisa de que eu gostaria de fazer parte!
E eu ali, desterrado em Mourão! Como conhecera, embora
vagamente, o Carlos Cruz durante o meu tempo na RTP, decidi,
desavergonhadamente, escrever-lhe uma carta, pedindo-lhe
que me deixasse colaborar com algumas das minhas histórias.
No domingo, 27 de Abril, o Carlos Cruz, que devia estar
bem disposto nesse dia e que não devia ter muito
material para o programa, resolveu ler duas das histórias
que lhe enviei. E pronto! Recomeçou o vício!
Desatei a escrever, outra vez, que nem um celerado e a enviar
histórias todas as semanas. E o Carlos Cruz, do lado
de lá do microfone, respondia, lendo-as e interpretando-as
como só ele sabia (justiça lhe seja feita,
caramba!…)
Estava prestes a iniciar-se outro capítulo na minha
vida de escrevinhador.
Quanto ao trabalho – era muito. Consultas de Saúde
Infantil, Saúde Materna e Saúde de Adultos
(ainda integradas nas chamadas “consultas da caixa
da previdência”; a figura do médico de
família ainda não tinha sido criada), quer
no Centro de Saúde de Mourão, quer num posto
de Saúde, na aldeia da Luz, aquela que vai ser engolida
pelo Alqueva. Era eu que lá ia, duas vezes por semana,
fazer consultas numa casinha que mais parecia um estábulo.
Havia dias de consultar quarenta doentes, fora os domicílios!
E depois havia os Bancos, no Hospital de Reguengos, feitos
em colaboração com os oito colegas que lá
estavam colocados. Passou-nos de tudo pelas mãos:
a Mila fez um parto, durante a noite, praticamente sem ajuda,
eu fiz uma massagem cardíaca a um tipo com um enfarte
e, eficazmente, fracturei-lhe uma costela com o murro que
lhe dei para o reanimar, antes de o mandar, de ambulância,
para Évora (o tipo safou-se!…), cozeram-se
cabeças e línguas (a Mila, porque eu só
ajudava… a cirurgiã do Hospital dos Capuchos
traumatizou-me mesmo…) – enfim, o habitual para
um pequeno hospital de província.
Em Junho, com os subsídios de férias, conseguimos
receber, os dois juntos, cerca de cem contos! Não
seríamos milionários, mas dava para, finalmente,
pagar a porra das dívidas que se acumularam desde
o ano anterior e, ainda, para por o Fiat 124 na revisão
– uma revisão completa, incluindo motor, chapa
e pintura, que nos custou perto de sessenta contos. O objectivo
era ter um carro que aguentasse as idas e vindas para as
Caldas da Rainha, onde eu iria fazer a recruta. E o carro
aguentou-se, carago!
Além de pagarmos as dívidas e de renovar o
carro, o ordenado de médicos à periferia permitiu,
ainda, mais alguns luxos, como um fim de semana em Sevilha,
com o Jorge e a Luisa, em que a Marta decidiu pregar-nos
uma partida do caraças, ganhando um febrão
de 40 graus, obtemperado por banhos de água fria
na pensão ranhosa onde pernoitámos; e ainda
uma semana em Madrid, também com o Jorge e a Luisa,
acampados nos subúrbios da capital espanhola. Enfim,
luxos de médicos pobretanas!…
Eu e a Mila, o Pedro e a Marta, e a Luisa, em Sevilha.
A barba, o bigode e o cabelo estavam quase a desaparecer,
por obra e graça das gloriosas Forças Armadas...
E, no dia 1 de Setembro, deixei de ser um cidadão
civil!
O Regimento das Caldas da Rainha ansiava por mim há
muito tempo. Pelo menos desde os 21 anos que o exército
português sentia que não seria nada sem a minha
contribuição. Aguardou, pacientemente, que
eu terminasse o meu curso de Medicina, que fizesse o meu
internato de policlínica, aceitou, até, que
eu trocasse a incorporação com outro recruta
médico mas, em Setembro, não me perdoou.
A família foi comigo até à porta do
quartel. Foi uma cena lancinante. Já com o cabelo
devidamente cortado, mas ainda com o meu bigode farfalhudo,
apresentei-me ao serviço. Para defender a pátria.
Puta que os pariu!
A minha experiência, dolorosa, humilhante, como recruta
do exército português, é descrita noutro
capítulo. Por isso, dou um salto de seis semanas
– as mais tenebrosas da minha vida até agora
– e aterro em Novembro de 1980.
Já sou oficial miliciano médico. Estou colocado
no Hospital Militar de Évora. Missão: estar
lá uma semana por mês, a fazer consultas aos
familiares dos oficiais do exército. Iníquo!
O dinheiro dos contribuintes gasto desta maneira! Um tipo
que custou uma fortuna ao estado com a sua formação,
que se licenciou em Medicina e vai ficar, durante um ano,
a trabalhar uma semana por mês, num Hospital Militar,
a medir tensões às esposas dos senhores capitães,
a apalpar as barrigas das esposas dos senhores majores,
a pedir exames de rotina às esposas dos senhores
generais! Uma farsa! Foderam-me a vida toda! Tiraram-me
do seio da minha família e enfiaram-me num Hospital
Militar, pagando-me oito contos por mês (quando ganhava
vinte e cinco, em Mourão), para aturar as neuroses
das esposas dos sargentos, o pé de atleta do meu
capitão, as hemorróidas do meu major! Soldados?
Consultei poucos! Um ou outro caso de chatos, um ou outro
abcesso dentário e nada mais. A minha missão,
como médico militar, era mesmo fazer consultas idiotas
aos familiares dos militares de carreira! Puta que os pariu!
Bando de crápulas! Fizeram o 25 de Abril e depois?
Os militares são uma classe privilegiada e com códigos
de conduta que não compreendo, rejeito e abomino!
E a lista dos seus direitos é muito superior à
lista dos seus deveres. Com Serviço Militar Obrigatório
é fácil: médicos, engenheiros, arquitectos,
advogados, carpinteiros, serralheiros, canalizadores, motoristas,
tudo a preços da uva mijona - todos a servir a Pátria?
Não! Todos a servir uma instituição
que se auto-alimenta e auto-justifica! Por favor, acabem
com essa cambada rapidamente! Se as forças armadas
são mesmo necessárias – profissionalizem-nas
imediatamente, caramba!
Ódios à parte – uma semana por mês?
Sim, porque éramos nada mais, nada menos, que quatro
médicos no Hospital Militar de Évora e, a
não ser os cheliques das esposas dos oficiais, não
havia nada mais para fazer. Então, nós os
quatro fizemos um acordo, oficiosamente aceite pelo director
do hospital. Cada um só lá ia uma semana por
mês. Assunto arrumado.
Com três semanas livres por mês, começo
a fazer consultas na Misericórdia de Mourão,
a convite do Presidente da Câmara que, já que
não conseguira livrar-me da tropa, decidira compensar-me
de algum modo. Pagavam-me um avença de seis contos
mensais e, para o povo, as consultas eram a vinte escudos.
O Dr. Tito ferveu de indignação! Era concorrência
desleal! Ele, que era, apenas, delegado de saúde,
médico da Portucel e médico de mais uma data
de coisas, além de ter consultório particular.
Deve ter pensado que eu lhe iria roubar a clientela e desapareceram
os sorrisos de todos aqueles meses de simpática convivência.
Do Algueirão, as notícias que chegavam também
não eram as melhores. A nossa ausência prolongada,
com metade da casa vazia, sem poder ser aproveitada, o nascimento
do segundo filho do Zé e da Mizé, o André,
e a pequenez do segundo andar da casa para uma família
que aumentava, o cansaço, e mais mil e uma razões,
levaram os nossos amigos de todos aqueles anos a optarem
por comprar um casa e acabarem com a Cooperativa Buques
e Smites.
A nossa indecisão também não deve ter
ajudado – ficamos em Mourão, regressamos ao
Algueirão? Simultaneamente, o nosso senhorio, o almirante
Belo, começava já a falar em reaver a casa
para o filho, que regressara do Brasil, com o estatuto de
emigrante.
De repente, e de um momento para o outro, como tudo, afinal,
na vida, o famoso Dr. Tito dá parecer desfavorável
à continuação da Mila, em Mourão,
por mais um ano.
De repente, e de um momento para o outro, enfiámos
o que pudemos no Fiat 124 e regressámos ao Algueirão.
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