3. Chegaram os Led Zeppelin (1969/70)
O 6º ano no D. João de Castro foi uma balbúrdia
quase completa. E digo quase porque consegui passar a Filosofia
e Organização Política e Administrativa
da Nação, disciplina onde aprendi que a "soberania
reside em a Nação" - e não na
Nação, como eu pensava. Passar a estas duas
disciplinas foi o suficiente para transitar para o 7º
ano.
O D. João de Castro ficava (ainda fica?) em Santos,
no alto de uma colina, com uma vista soberba sobre o Tejo
e fui lá parar porque o D. Pedro V, liceu entretanto
inaugurado em Benfica, ainda não tinha 6º e
7º anos e Santos ficava no caminho que o meu pai levava
para a Rocha de Conde de Óbidos. Assim, ele podia
levar-me ao liceu, de manhã e, depois, eu regressava
a casa por minha conta e risco, numa interminável
viagem de eléctrico.
Vinte minutos depois das 8 da manhã, o meu pai deixava-me
à porta do Liceu e, mal o Ford Escort que ele conduzia
dobrava a primeira esquina, acendia eu o primeiro cigarro
da manhã, sempre fumado a grande velocidade porque
as aulas começavam às 8 e meia. E depois era
uma manhã de luta contra os professores, provocando
toda a espécie de escaramuças durante as aulas.
Recordo bem as manhãs frias de Inverno, em que saíamos
os dois de casa, ainda de noite, e ficávamos cerca
de dez minutos dentro do carro, esperando que o motor aquecesse.
Penso agora que, por vezes, gostaria que o meu pai aproveitasse
aqueles momentos de recolhimento, enquanto o Escort inundava
a atmosfera com monóxido de carbono, para me perguntar
como iam os estudos, se me sentia bem, se tinha algum problema
ou, no mínimo, trocássemos impressões
sobre o último jogo do Benfica. Mas o silêncio
imperava. Acho que sempre me senti um pouco intimidado com
a presença do Zé Couto, sobretudo quando a
minha mãe não estava...
O D. João de Castro tinha uma atracção
extra: ficava perto da Rua dos Lusíadas, onde morava
a Maria João, que era uma miúda que eu conhecia
desde os 14 anos e que só via nos meses de Agosto,
durante as férias na Costa da Caparica. Nunca namorei
com ela mas, no entanto, ela foi a minha primeira (e única)
paixão platónica. Várias vezes, quando
saía das aulas, passava pela Rua dos Lusíadas,
na esperança de a ver, mas nunca tive coragem de
lhe tocar à campainha. Todos os anos, sempre que
chegavam as férias, sentia aquela excitação
de rever a Maria João mas, depois, acabava por me
juntar com o meu grupo de amigos, namoriscar com outras
miúdas e nunca arranjei coragem para declarar a minha
paixão. Se isto não é romântico,
onde está o romantismo, não acham? E isto
é daquelas coisas que não têm explicação,
a menos que o fascínio que a miúda exercia
em mim fosse tão forte que causasse toda aquela inibição.
Aliás, os namoros de Verão eram, mais ou menos,
como os Beach Boys cantavam nas suas composições:
duravam apenas dois ou três meses; depois, recomeçavam
as aulas e a coisa acabava. A minha primeira namorada durou,
talvez, até Outubro. Ainda fui ter com ela duas ou
três vezes, depois de terminadas as férias.
Encontrámo-nos num café de esquina, ali para
os lados do Tivoli, demos umas voltas pela Avenida da Liberdade,
de mão dada e não houve paciência para
mais nada.
Depois dela, surgiram outras, sempre por períodos
relativamente curtos. Uma delas (Raquel?), durou uma tarde.
Já não faço ideia como raio comecei
a corresponder-me com a tal Raquel (se é que era
esse o seu nome...) que, na altura, vivia em Moçambique,
com os pais. Certo dia, a Raquel telefonou-me: estava em
Lisboa, a passar férias - não quereria encontrar-me
com ela? Claro que queria! Em meu poder, tinha duas ou três
fotografias que ela me tinha enviado, a preto e branco,
desfocadas, ranhosas à brava - mas era uma miúda!
Não se podia perder a oportunidade. Encontrámo-nos
numa festa no Liceu Pedro Nunes. A meio da tarde, e depois
de vários slows tórridos, já éramos
namorados para sempre. Só que, ao fim da tarde, apareceu
a mãe da Raquel que, pelos vistos, andara todo o
dia à procura da filha. A senhora apanhou-nos em
flagrante, todos agarradinhos, mesmo no meio do ginásio
do Pedro Nunes. A Raquel levou um raspanete dos antigos
e eu fui apelidado de vários nomes feios, como se
me tivesse transformado, de repente, numa espécie
de pedófilo, violador de criancinhas. Nunca mais
vi ou ouvi falar da miúda.
Namorei ainda com uma outra fulana que vivia em Camarate,
numa espécie de bairro social e também já
não me lembro de como a conheci, nem tão pouco
do seu nome. Lembro-me, no entanto, que a moça era
mais velha do que eu e já trabalhava. Encontrávamo-nos
só aos fins de semana, nomeadamente no pavilhão
das Furnas, ali ao pé do Jardim Zoológico,
onde se organizavam uns bailaricos para a classe operária,
onde os estudantes também gostavam de ir - aliás,
se houvesse oportunidade para dançar agarradinho,
eu estava sempre pronto. Este meu namoro é, para
mim, um verdadeiro mistério. Sei que aconteceu, até
tenho uma fotografia da miúda, mas não sou
capaz de me recordar como raio é que eu fui desencantar
uma fulana mais velha que eu, que não estudava e
que vivia em Camarate que, naqueles tempos, era mesmo na
Província!
Finalmente, recordo, ainda, a Teresa, que vivia num segundo
andar, em frente à minha casa e que tinha olhos verdes,
razão pela qual se auto-intitulava de "gata".
Foi um namoro mais ou menos platónico, embora com
alguns beijinhos e mãozinhas dadas. De todas estas
namoradas dos 16 anos, a Teresa foi a única que tornei
a rever, passados muitos anos. Há cinco ou seis anos
atrás, encontrei-a aqui, em Almada e soube que era
dona de uma loja de chá, num centro comercial local.
Das outras, nunca mais ouvi falar.
Mas voltemos ao D. João de Castro...
À esquerda, o Hermínio
e o seu sorriso de sacana; à direita, o loirinho
Jorge; em baixo, em posição de lótus,
eu (de gravata?!), de cigarro nos lábios e, embora
mal se veja, já com buço....
Foi naquele 6º ano que conheci o Hermínio, que
se tornou meu grande amigo e companheiro durante dois anos
e o Carlos Neff, que hoje é meu colega de profissão.
Mas o Hermínio era o preferido. Com ele urdi grandes
pândegas em que os principais alvos eram alguns professores
e o pobre de um colega nosso, cujo nome já não
me recordo, mas a quem apelidávamos de Passarinho
e que, coitado, foi um verdadeiro bombo da festa durante
todo o ano lectivo. Outro fulano que costumava acompanhar-me,
nomeadamente, nas idas ao cinema Paris, ali junto ao Largo
da Estrela, era o Jorge, um loirinho cheio de sardas. Foi
ele o primeiro a falar-me na temática homossexual.
Certo tarde, em que estávamos os dois no cinema,
relatou-me uma experiência homossexual que tivera,
algum tempo antes, com um homem, também num cinema.
Sinceramente, não liguei muito à coisa, nem
sei se o tal Jorge me estava a fazer alguma sugestão.
Encontrei-o muitos anos depois, no comboio Lisboa-Sintra.
Disse-me que era actor de teatro independente. Coisas...
A culpa do gozo permanente que foi o 6º ano também
era, em parte, dos professores. A professora de Física
e Química, de apelido Tribolet, era uma senhora já
entrada na idade (a nós parecia-nos velhíssima!…),
que dava as aulas com um caderno de apontamentos na mão,
do qual ditava a aula toda. Logo nos apercebemos que, se
a interrompêssemos, ela perdia o fio à meada
e tinha que voltar a trás e, como já não
via muito bem, enganava-se frequentemente na linha e baralhava
tudo. É claro que, se a interrompêssemos muitas
vezes, a senhora haveria de se enganar mais vezes e, em
consequência disso, a aula ficava uma tal confusão
que ninguém percebia nada, nem a própria professora
que, coitada, gritava, berrava, pedia silêncio, tentava
encontrar o fio à meada, voltava atrás, virava
as páginas desesperadamente à procura do sítio
onde ficara quando fora interrompida e acabava mesmo por
desistir, muitas vezes à beira das lágrimas.
Outras vezes, fingíamos interesse e pedíamos
que a senhora escrevesse no quadro uma fórmula que
acabara de ditar e, enquanto a pobre se dirigia ao quadro,
algo de extraordinário acontecia nas suas costas:
um aluno atirava-se da carteira abaixo, outro deixava cair
os livros com estrondo, um outro espirrava repetidamente,
alguém fazia estoirar um cartucho cheio de ar - enfim,
uma sucessão de ruídos que fazia a senhora
voltar-se aflita, tentando averiguar o que tinha acontecido
e era nessa altura que eu, por exemplo, com o ar mais inocente
deste mundo lhe pedia para repetir a última frase
que ela tinha ditado e, logo de seguida, o Hermínio,
pegando numa frase qualquer da aula anterior que ele tinha
anotado, dizia-a em voz alta e perguntava-lhe o que é
que aquilo queria dizer. A bagunça estava instalada.
A professora não sabia a quem devia responder primeiro,
até porque já havia mais alguém a pedir
esclarecimentos sobre a fórmula que ela tinha iniciado
no quadro. A pobre senhora acabava por se sentar à
secretária e pousar o seu precioso caderno com olhar
perdido no infinito, à beira da catalepsia.
Certa tarde - não tenho a certeza mas penso que foi
pouco depois da morte do Salazar - o Marcelo Caetano ia
discursar à Assembleia Nacional. Não sei por
que carga de água, lembrei-me de levar um rádio
portátil para aula e comecei a ouvir o discurso,
que acabou por ficar célebre por que foi quando o
Marcelo Caetano reafirmou a necessidade de Portugal continuar
envolvido na guerra colonial. De cada vez que os deputados
interrompiam o discurso do Presidente do Concelho com uma
calorosa e prolongada salva de palmas, eu subia o volume
do rádio e a pobre professora de Física ficava
de boca aberta, olhando em redor, tentando descobrir quem
estava a bater palmas. Passei nisto a aula toda e a senhora
nunca descobriu quem era o autor da brincadeira.
E quando, aos 16 anos, um tipo descobre os pontos fracos
dos professores, a crueldade pode assumir foros de quase
delinquência. De vez em quando, lembrávamo-nos
de pregar um valente susto à professora Tribolet.
Cinco minutos depois da aula já ter começado
- altura em que ela procedia à chamada - chegava
eu em braços, transportado pelo Hermínio e
mais três colegas, aparentando estar a recuperar de
um ataque epiléptico. A senhora ficava visivelmente
preocupada com o meu estado de saúde, mas eu rapidamente
me recompunha.
Outro professor que se prestava ao nosso permanente gozo
era o de Matemática. Eu tinha chumbado no 5º
ano por causa da Matemática e preparava-me para fazer
o mesmo no 6º ano, já que o professor Lemos
(ele dizia Lemuce, e assim era por nós designado)
também não ajudou nada a que eu me interessasse
finalmente por essa disciplina e aprendesse alguma coisa
de jeito. Estou a ser injusto: o professor Lemuce até
me ajudou muito no primeiro período. Para o primeiro
teste de Matemática do 6º ano eu tinha estudado
tanto como para os restantes teste do resto do ano - ou
seja, nada. E ainda por cima, estava sentado logo na primeira
carteira, o que me dava poucas esperanças de poder
usar as cábulas que tinha feito em casa. Mas eis
que o professor começa a distribuir os enunciados
do teste e, a mim, por lapso evidentemente, me dá
um teste já corrigido, com as respostas a todas as
perguntas! Assim que reparei naquilo, deixei-me estar muito
caladinho, tentei dissimular o sorriso de satisfação
que teimava em não me largar os lábios e desatei
a fazer cálculos e mais cálculos numa folha
à parte, como se estivesse a resolver o teste que
já estava resolvido. Depois, para não dar
muito nas vistas, risquei duas ou três respostas e
escrevi outras, obviamente erradas. Tive 17 valores! O meu
único 17 a Matemática! O pobre do professor
Lemuce deve ter pensado como é que um aluno que começa
o ano lectivo com 17 valores, nunca mais consegue tirar
mais de 6 ou 7 valores nos restantes testes do ano.
Quanto ao Passarinho, coitado, não havia dia em que
eu e o Hermínio não lhe fizéssemos
a vida negra. A certa altura, lembrámo-nos de escrever
cartas de amor ao Passarinho, imitando a letra redonda e
larga e as bolinas nos "is" que as miúdas
tanto gostavam de fazer. Durante dias seguidos, o Passarinho
recebia em casa uma nova carta de amor de uma admiradora
que se dissimulava atrás de um pseudónimo.
E o rapaz andava feliz. Devia ter percebido que nós
andávamos a tramar algo de estranho, porque deixámos
de o chatear durante uns tempos. Ao fim de algumas semanas,
demos a estocada final: na carta, a admiradora secreta convidava
o Passarinho para uma ida ao Cinema Condes no sábado
seguinte e combinava o encontro num determinado banco da
Avenida da Liberdade. Claro que eu e o Hermínio estávamos
um pouco mais acima, escondidos atrás de uma árvore,
gozando que nem uns perdidos, a ver o pobre do Passarinho
sentado no banco, olhando para um lado e para outro, por
detrás das lentes grossíssimas que usava,
à procura de uma miúda com uma saia amarela
e um livro de Geometria Descritiva na mão, e que
nunca tinha existido.
Mas o Passarinho não aprendia - daí o prazer
que nos dava gozar com ele. Deixámos passar algum
tempo e recomeçámos com as cartas. Logo na
primeira, a miúda pedia desculpa por não ter
aparecido, mas a mãe não a deixara sair de
casa, mas o amor que ela sentia era tão intenso que
tinham mesmo que se encontrar, desta vez no Café
Aviz, que ficava ali ao pé do cinema Éden.
E o parvo do Passarinho foi. E foi uma terceira vez. E acredito
que teria ido uma quarta vez se nós não nos
tivéssemos cansado da brincadeira. O Café
Aviz! Que excelentes bifes à café lá
devorei, nas tardes em que lutava contra os livros de Matemática
e de Geometria Descritiva!...
Estas brincadeiras não faziam mal a ninguém,
penso eu, mas havia outras de que me envergonho como, por
exemplo, enviar, pelo correio, envelopes com papel higiénico
sujo e pêlos púbicos ao pobre do Passarinho.
Não se faz... Mas eu o Hermínio fazíamos!...
O Hermínio morava em Campo de Ourique e, quando algum
professor faltava ou quando nós próprios decidíamos
faltar, íamos até casa dele fumar (ambos os
pais trabalhavam e a casa estava deserta àquela hora).
Ou então, íamos para a porta de uma loja de
discos que havia ali perto ouvir o "Whole lotta lovin"
dos Lep Zeppelin em altos berros. O empregado da loja estava
apanhadinho pelos Led Zeppelin e nós também.
Os que sabem concordarão comigo: ouvir o Jimmy Page
mandar pedradas na guitarra e o Robert Plant soltar aqueles
gritos selvagens enquanto se fuma um cigarro continua a
ser, ainda hoje, um prazer Olímpico.
Mas 1970 também trouxe o fim dos Beatles, numa altura
em que eu começava a conhecê-los melhor. Como
já contei, em 1969, comprei o Duplo Branco, que me
custou os olhos da cara. O álbum era numerado e,
a mim, calhou-me o n.º 510204. Foi o primeiro LP que
comprei já que, até então, só
havia dinheiro para EP's. Pouco depois, comprei o "Abbey
Road" e só muitos anos depois acabei por comprar
todos os discos dos Beatles. A sua música exercia
sobre mim um fascínio, que ainda hoje se mantém,
e não me perguntem porquê. Nesse ano, fui ver
o filme "Let it Be" e comecei a perceber a palavra
nostalgia. Acho que foi esse o ano em que começaram
a aparecer os cinemas pequenos, que passavam filmes menos
comerciais. Lembro-me de ter ido ver um filme com o Bob
Dylan no estúdio do cinema Império, e o Monumental
também tinha um pequeno estúdio chamado Satélite,
e havia o Estúdio 444. Talvez não tenham aparecido
todos ao mesmo tempo mas, de qualquer modo, eu já
estava bem longe do Aviz e do Gianni Morandi.
Aliás, começava eu próprio a querer
fazer a minha música. Numa das poucas viagens em
família, tinha ido com os meus pais e irmãos
até Vigo e lá comprara uma viola. Farto de
arranhar as cordas em vão, comecei a ter aulas de
viola clássica com o professor Domingos que morava
no prédio em frente, num terceiro andar. Foi o meu
primeiro contacto com a comunidade hippie de S. Domingos
de Benfica. A casa pouca mobília tinha: um colchão
no chão, prateleiras de pinho assentes em tijolos,
lâmpadas no topo de garrafas, a servir de candeeiros
- uma maravilha. O Domingos tinha barba mal semeada, cabelos
pelos ombros e andava sempre com umas calças de bombazine
coçadas, o que lhe dava um ar de intelectual de esquerda.
Fumava muito e, para poder dedilhar a preceito, entalava
o cigarro entre as cordas, no topo do braço da viola.
Era uma imagem bonita, ver o professor tocar viola clássica,
com aquele respirar que, mais tarde, tornei a ouvir no Carlos
Paredes, na penumbra daquela sala quase vazia e o fumo do
cigarro a subir em direcção ao tecto. Retive
sempre dois pormenores de técnica de bem tocar viola
que ele me ensinou: o polegar da mão direita tem
que ficar sempre escondido atrás do braço
da viola (coisa que o Jimi Hendrix provou não ser
essencial para se tocar bem…) e devemos colocar o
pé direito sobre o pé esquerdo em pronação,
de modo a que o corpo da viola assente suavemente sobre
a coxa direita.
Mas quanto a estas coisas de aprendizagem, penso que, se
não se começa de pequenino, nada feito. Devíamos
aprender a ler e a escrever duas ou três línguas,
aprender a tocar dois ou três instrumentos, aprender
a cozinhar, aprender primeiros socorros e outras artes igualmente
úteis, tudo na instrução primária.
Mais tarde, é difícil; parece que, à
medida que vamos crescendo, a capacidade de aprendizagem
vai-se tornando mais complicada, ou melhor, torna-se mais
urgente. Sobretudo durante a adolescência, um tipo
quer tudo imediatamente. Pegar na viola e começar
logo a solar à Eric Clapton. Resultado: aprendi meia
dúzia de posições e desisti das aulas,
convencido que já sabia tudo. Aliás, sabia
quase tanto como os tipos dos Statos Quo, por exemplo, cujas
canções nunca tinham mais do que três
ou quatro posições ou, mais tarde, os grupos
de punk rock. E, se já sabia meia dúzia de
posições, por que não começar
a compor? Foi isso exactamente que fiz.
A minha primeira canção, chamava-se "Vou"
e dizia assim:
"vou andando sozinho pela estrada/
com os bolsos cheios de nada/ Vou!"
Cantei-a uma noite, à frente da família toda
e o meu tio Xico - pouco dado à poesia, já
que só percebia de bolas ao poste e cruzamentos para
a grande área - comentou: "Bolsos cheios de
nada?!… Que parvoíce!…"
Como retaliação, nunca mais lhe cantei nenhuma
das minhas gloriosas composições, nomeadamente
a famosa "Certeza de nada", que terminava assim:
"Tenho a certeza de nada/ tenho flores nos ouvidos/
tenho um corpo de mulher/ entre os meus cinco sentidos".
Lindo, ein?…
No verão de 1970, na Costa da Caparica, juntei-me
com três rapazinhos da minha idade e nasceu o "Apêndice",
grupo rock assumido - três guitarras e uma bateria.
Eu tocava guitarra ritmo porque era só fazer as tais
posições que eu conhecia. Os instrumentos
eram alugados ao Custódio Cardoso Pereira, uma loja
de instrumentos musicais ali no Chiado. Ensaiávamos
num pequeno estúdio alugado à hora, na Rua
das Pretas. E actuámos duas vezes! Da primeira vez,
abrilhantámos uma festa de alunos no Liceu D. Pedro
V. Foi muito aplaudida a nossa versão de "Suzie
Q", dos Creedence Clearwater Revival (três ou
quatro posições repetidas até à
exaustão e um solo interminável da responsabilidade
do nosso guitarrista principal, que se chamava Jorginho).
Aproveitei o descanso da banda, enquanto alguém metia
discos de slow, para me colar a uma miúda qualquer
e dançar sem sair do sítio. Que bom que era
dançar o "Nights in white satin", dos Moody
Blues, agarradinho a uma menina!… Lembram-se como
era bom?… E não me venham dizer que ainda é
bom… bom mesmo era quando se tinha 17 anos!…
A nossa segunda actuação foi numa festa de
um colégio de raparigas, o Marquesa de Alorna, ali
para os lados do Lumiar e a coisa já não correu
tão bem. Ou não tínhamos ensaiado como
deve ser, ou estávamos demasiado distraídos
com tantas miúdas. Assim terminou a breve e fulgurante
carreira do "Apêndice" - e notem que o nome,
escolhido por mim, continuava a revelar a tal obsessão
pela Medicina…
Em pouco mais de um ano, o Fernando estava a dar lugar ao
Artur. Mas, primeiro, ainda haveria a fase do Artur Fernando
e do Passos (com três esses) Manuel.
|