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O Coiso
Memórias de um fumador
50 anos de história


22. As crises de pânico (1981)

O Natal de 1980 deixou de ser submetido a sorteio – foi mesmo a 25 de Dezembro e toda a família se reuniu em Mourão, na véspera, para a troca de prendas que, desde então, passou a fazer parte da tradição familiar.
Nesse ano, foi a família que se deslocou até nós. Deitámos abaixo os tapumes que separavam a nossa parte da casa Esquível da parte que era ocupada pelos colegas do estágio de Saúde Pública (que tinham ido passar o Natal a Lisboa) e ficámos com um casarão para receber os pais da Mila, a sua tia Otília e o marido, a Luisa e o Jorge, e ainda os pais deste, os Saraivas.
Na noite de Natal, organizei um sarau e formei o GAG (Grupo de Acção Gutural) – uma alusão ao GAC (Grupo de Acção Cultural), de que já falei. O GAG era formado por mim, pela Mila, pelo Pedro e pela Marta. O sarau começou comigo, a imitar um surdo a fumar; sentei-me numa cadeira e acendi um cigarro; a Mila chamou-me, invectivou-me, berrou-me e eu continuei a fumar calmamente. Seguidamente, imitei um mudo a fumar; sentei-me na mesma cadeira, acendi outro cigarro e fui mexendo os lábios sem nada dizer. Brilhante! Seguiu-se uma apresentação de nós os quatro, cantando, com a voz mais gutural possível (daí o gutural de GAG), o “Rama, ó que linda rama”. Após dois pequenos sketches representados por mim e pela Mila, veio o grande ilusionista Petrus (o Pedro, evidentemente, que sempre alinhou nestas brincadeiras), que apresentou alguns números absurdos de prestidigitação. Antes, tínhamos preparado uma série de slides a que chamei “Rebotalhos da Vida de um médico”, e em que nós os quatro nos entretínhamos a contar a curta história de um médico falhado. Após o sarau, muito festejado pela família, seguiu-se um concurso de slides. A mania de fazer diapositivos continuava e o Jorge e a Luisa também alinhavam. Durante alguns Natais, organizámos um concurso, em que cada um mostrava, à família, os melhores slides. Seguia-se uma votação renhida e, habitualmente, havia vencedores ex-aequo. Depois, era a troca de prendas. Nesse ano, e apesar da contenção económica que a tropa obrigava, conseguimos gastar trinta e um contos em prendas para toda a família e amigos. Apenas por curiosidade, eis algumas prendas, com o preço em escudos entre parêntesis:
- Pedro: guindaste (627), cinco carros (425), estojo de médico (360), dois livros dos Schtroumpfs (360), lego (525), cowboys (180), um guiador (460), um tambor (120), uma pistola (280), bolas (557), uma pandeireta (80), régua e papel de desenho (65);
- Marta: uma bolsa a tiracolo (370), livros para colorir (60), uma casa de banho (79), um cesto com fruta de plástico (150), um estojo de costura (475), dois livros da Anita (210), um tractor (800), um saco para compras (420), um tambor (120), uma pandeireta (80), um aspirador (350);
- Artur: uma miniatura de uma Dona Elvira (355), um écran para slides (2000), um flash (4100), o “Déjá Vu”, dos Crosby, Stills, Nash and Young (395), postais ilustrados (250), um cesto para papéis (175);
- Mila: brincos (150), um tapete (600), pantufas (380), uma máquina de café (3000), dois livros (500), um saco de água quente (193), um livro com reproduções do Dali (752).
A passagem do ano ainda foi feita em Mourão mas, no dia 10, como já contei, regressámos todos ao Algueirão, a grande velocidade. No fim de Fevereiro de 1981, o Zé, a Mizé, a Joana e o André mudaram-se para a sua nova casa na Rebelva, e nós ficámos com a vivenda toda. Embora algo nos dissesse que, mais tarde ou mais cedo, o nosso senhorio viria exigir a casa de volta, começámos logo a pensar em grandes obras e ainda fizemos algumas: pintámos os dois andares da casa (tudo de branco!), arranjámos a parede do corredor, que estava a cair, tentámos dar ao quintal e ao jardim um aspecto mais arranjadinho.
Terminado o SMP, a Mila ficou colocada no Hospital D. Estefânia, a frequentar uma coisa que era suposto não existir – o quarto ano do internato Policlínico. De facto, assim que terminasse o Serviço Médico à Periferia, estava previsto que se realizasse o exame de saída do internato e, consequentemente, de entrada na especialidade, mas estava tudo muito atrasado. Foi assim que a Mila, que até estava a pensar, eventualmente, em ser Clínica Geral, começou a fazer Pediatria e a gostar.
O Pedro, coitado, lá voltou para a escola primária de Queluz, onde terminou a sua segunda classe; todos os dias, eu ou a Mila íamos levá-lo a Queluz, depois o Sousa ou a Arminda levavam-no e traziam-no da escola e, ao fim do dia, um de nós ia buscá-lo. Uma estafa – mas a família unida, jamais será vencida!
Quanto à Marta, arranjámos-lhe uma escola privada em Mem Martins, o Colégio da Nossa Senhora da Conceição, que ela adorou desde o princípio, até porque tinha ballet. As donas do Colégio, ao saberem que ambos éramos médicos, fizeram um contrato connosco: por quatro contos por mês, nós ficámos como médicos do Colégio. Eu tinha mais disponibilidade de tempo, porque só ia a Évora uma semana por mês, pelo que vi todos os meninos do Colégio, em consulta de rotina e, depois, de vez em quando, éramos chamados para ver um ou outro que estivesse doentinho.
E como os amigos são para as ocasiões, o tal Dr. Cutileiro, cuja mulher era dona do primeiro infantário do Pedro e da Marta, chamou-me algumas vezes para lhe fazer consulta na Caixa de Previdência de Mem Martins, quando ele não podia, ou para fazer alguns domicílios a doentes dele. Uma consulta da Caixa, em Fevereiro, para ver 16 doentes, valia 440 escudos; um domicílio, 400 escudos. Também o Manuel Marques, pediatra dos nossos miúdos, conselheiro dos nossos tempos de província e, então, colega da Mila no Hospital D. Estefânia, nos deu uma ajuda: de vez em quando, a Mila substituía-o no consultório, quando ele estava ausente; uma consulta de Pediatria valia 500 escudos. Em Setembro, eu próprio acabei por arranjar um Posto da Caixa de Previdência (o nº 27, na Rua São Julião, em Lisboa), onde fazia uma consulta de duas horas; acho que ganhava cerca de seis contos por mês, enquanto que, da tropa, recebia cerca de oito contos. Ao fim do primeiro mês de consultas, um doente ofereceu-me uma rola e duas perdizes. Assim começou uma longa tradição de prendinhas de doentes, que fui registando, como mais adiante se verá…
Enfim, o orçamento familiar compunha-se até porque, a partir de Abril, comecei a colaborar a sério no Pão Comanteiga. Mas essa história será contada com mais detalhe no próximo capítulo.
O ano de 1981 ficou, no entanto, marcado pelo aumento desmedido das minhas crises de pânico.
A primeira, como já referi, aconteceu quando estava a assistir ao “Rei das Berlengas. Nessa altura, não percebi o que me estava a acontecer. Tive uma segunda crise certa noite em que estive de serviço, sozinho, no Hospital de Reguengos. Mas em Évora, na Messe dos oficiais, onde passava a maior parte dos dias da minha semana de serviço à pátria, é que as crises de pânico apareceram em força. Naquela altura, não sabia o que era aquilo; aliás, ninguém sabia – a chamada perturbação de pânico só teve direito a classificação como patologia individualizada muitos anos depois. Era angústia, ansiedade, crise histérica? Tudo seria provocado pelas extrassístoles? Sofreria eu de alguma doença cardíaca? Quem me aturava era a Mila, claro. Mais ninguém tinha conhecimento deste meu sofrimento. Pacientemente, a Mila escutava as minhas dúvidas, tentava tranquilizar-me, aconselhava-me e eu acatava as suas palavras. No entanto, sempre que a crise estalava, lá estava eu à beira… de quê?
Depois de muito ruminar, acabei por me decidir a ir ao Hospital de Santa Maria fazer um electrocardiograma que, obviamente, não mostrou nada de especial, a não ser uma extrassístole ventricular. O colega que me observou, fez-me as recomendações da praxe (evitar o café, o tabaco, o álcool, o stress) e receitou-me amiodarona. Mais tarde, fui ao consultório do Professor Carlos Ribeiro que, após uma observação negativa, me aconselhou um beta bloqueante e diazepan. Experimentei vários beta bloqueantes (Inderal, Calmicor, Trasicor) mas, além das extrassístoles não desaparecerem, tinha uma série de efeitos secundários muito aborrecidos: extremidades frias, pesadelos, diminuição da potência sexual. Entretanto, ia tomando ansiolíticos que, embora nada fizessem às extrassístoles, sempre acalmavam a angústia. Só muitos anos mais tarde descobri a propafenona, um antiarrítmico que, de facto, me conseguia eliminar as extrassístoles. Tomei-o durante anos e só em 1997, aos 44 anos, consegui largar toda a espécie de medicação. Posso, portanto, dizer que durante quase vinte anos sofri de perturbação de pânico e que, graças sobretudo à Mila, sobrevivi para contar. E posso, também, garantir que, durante esses vinte anos, vivi bem, feliz, e que as crises de pânico foram, até, um lenitivo para lutar com mais força pelas coisas de que gostava…
Além da Mila, outra coisa me ajudou muito a ultrapassar esses momentos de quase loucura: a escrita. Sem o saber, usei uma técnica própria da terapia comportamental: quando tinha uma crise de angústia, descrevia-a nos meus caderninhos, em pormenor; depois, quando nova crise batia à porta, relia o que tinha escrito na crise anterior e descrevia a nova crise. Ao fim de alguns meses, tinha os caderninhos saturados de descrições de crises de pânico; a sua leitura, vezes sem conta, ajudou-me a encontrar pontos comuns em algumas das crises, a meditar sobre isso e, de certo modo, a tranquilizar-me. No entanto, e embora tenha agora a certeza que, de facto, sofri de perturbação de pânico, acho que eram as extrassístoles o elemento altamente perturbador. Assim que as consegui quase eliminar, graças à propafenona, as tais crises de pânico começaram a diminuir substancialmente. É mesmo angustiante sentir o coração aos pulos, irresoluto, se há-de bater ou parar, minutos, horas, dias a fio! Certa vez, penso que no final de 1980, tive uma amigdalite daquelas a valer, com febre alta e uma dor de garganta das antigas; a febre fez aumentar o ritmo cardíaco e, consequentemente, desencadear uma crise de extrassístoles que descambou em bigeminismo que, para quem não sabe, consiste num ritmo irritante de um batimento certo/uma extrassístole/uma batimento certo/ uma extrassístole o que, ao fim de umas horas, dá a um tipo uma enorme vontade de bater em si próprio – coisa que eu fazia, aliás, dando grandes socos no peito, tentando parar aquele ritmo tipo drum’n’bass – ou de cometer alguma loucura.
Hoje em dia, tenho uma extrassístole de vez em quando, como quase toda a gente – só que a maior parte das pessoas não dá por elas, enquanto eu, de tão treinado que estou, não me falha a percepção de uma única. No entanto, já não ligo, não me ralo e nem isso me angustia. Mas, meus caros, passaram vinte anos, até eu conseguir ultrapassar esta coisa e, durante todo esse tempo, fui tentando uma ou outra técnica para me livrar daquilo, mas nunca dei um passo que, teoricamente, poderia ser o mais importante: deixar de fumar!…
Como já disse, os caderninhos ajudaram-me muito. Por isso, acho essencial para que tudo isto fique explícito, transcrever um desses escritos que, apesar de extenso, demonstra bem a minha angústia de então. Foi escrito no quarto da Messe dos Oficiais, em Évora, numa das minhas semanas castrenses:

“São 0.33 do dia 21/1 e estou, neste preciso momento, com uma das minhas crises de angústia nocturna – recente aquisição a juntar ao já extenso rol de macacoas que me têm martirizado o espírito ultimamente.
Ao lado, o aspirante-advogado Nogueira dorme profundamente, ressonando até um pouco, o que não me incomoda, excepto pelo facto de me causar inveja...
Resolvi aproveitar a oportunidade para descrever estas estúpidas crises de angústia, que têm sempre sido descritas a posteriori e, ao mesmo tempo, tentarei acalmar-me e buscar o sono, ao mesmo tempo que escrevo.
Comecemos pelos factos: terminada a TV, subi ao quarto, seriam talvez 23h 35, tomei um Sopax (uma benzodiazepina), vesti o pijama, escrevi o meu diário e estirei-me na cama, lendo “O Mistério da Estrada de Sintra”. Mas estava a ler superficialmente, sem dar muita atenção ao texto, tendo que repetir a leitura de certas passagens várias vezes. Isto porque estava já a prever mais uma sessãozinha de angústia. (Agora parei por um momento porque me deu um daqueles calores que me fazem correr à casa de banho, uma náusea que se resolve com um tímido arroto; estou sentado na sanita, a escrever). Continuando: à meia noite, desliguei o rádio, li mais um pouco, apaguei a luz e deitei-me. Algumas reviravoltas na cama, já estava em pé, suando e sentindo uma vontade quase irresistível (voltei para a cama) de me vestir e sair porta fora, passear pela rua, não sei muito bem para onde. Um desejo enorme que me venham chamar para ir ver algum doente ao hospital, para que eu possa sair daqui... Ou uma vontade imensa de adormecer de repente, para que a noite passe depressa e sem eu dar por isso, e chegue a manhã (nova pausa: o calor é tanto que fui despir o pijama e substituí-lo pelas cuecas e uma t-shirt; entretanto, o Nogueira deu uma reviravolta na cama, abriu um olho de carneiro mal morto, tapou a cara com o lençol e continuou a dormir). Pois com a luz apagada e a cabeça apoiada na almofada, uma angústia terrível começa a apoderar-se de mim – angústia que se traduz por um calor insuportável, com suores e uma insegurança, que talvez seja medo, embora eu não consiga dizer de quê. Como “flash” perpassa-me pela cabeça a ideia, obviamente estúpida, de correr ao hospital civil, pedir para me darem um Valium 10 injectável. Mas logo afasto essa ideia. Médico sou eu e “tenho” que saber controlar a situação sozinho. Então e o Sopax? pergunto – não faz efeito nenhum? Tomar um Morfex? Li a bula e penso que é melhor não me meter nisso. Já pensei em fumar um cigarro mais de 52 vezes mas, logo a seguir, penso que a nicotina só me iria excitar mais. Continuar a ler, não me apetece. Escrever está a fazer-me bem. Com a almofada sob o peito, deitado de barriga para baixo, vou registando todas estas reacções e sensações. Como bom repórter – sempre em cima do acontecimento.
(…) E, para além dos sintomas psicossomáticos que têm surgido, nomeadamente as extrassístoles, surge também a insónia. E eu, tendo tido já experiências semelhantes à que estou a viver hoje, já deveria saber como lidar com elas. Vou, pois, expor a teoria: nas horas que antecedem o momento de vir para a cama, começo já a antever o drama que se poderá vir a desenrolar: não ter sono. Por isso, prolongo a minha estada no salão até ao último fotograma do hino nacional (naquele tempo, a RTP terminava as emissões com o hino, quem não se lembra?…). Mas o aparelho apaga-se, as luzes fecham-se e não há alternativa senão subir. Depois, aceitando o facto, não direi normal, mas pelo menos compreensível, de não ter sono, não deveria preocupar-me com isso e entreter-me com qualquer coisa (ler, palavras cruzadas, escrever, fumar cigarros – a propósito, vou fumar um) até que o sono chegasse. E, se tal fosse preciso, ficar a fazer qualquer coisa até cair para o lado de fadiga ou, eventualmente, esperar pela manhã. Mas não: leio um pedaço, fecho a luz e deito-me, sabendo de antemão que não vou adormecer instantaneamente, nem pouco mais ou menos.
E agora, antes de continuar, quero registar que estou muito melhor: o sentimento de angústia, de opressão, de claustrofobia, de necessidade imperiosa de sair daqui para fora, já passou e acrescentarei até, que os olhos começam já a fechar-se, embora ainda não o suficiente para me aventurar a deitar-me e apagar a luz. Aliás, nestas situações, um tipo como que regride, revivendo os seus terrores de criança e tenho a impressão de que vou dormir (se conseguir!…) de luz acesa. E, sinceramente, estou-me borrifando, neste momento, para o Nogueira, que parece até nem estar muito incomodado, tendo-se virado agora para o outro lado – também ele acalorado, atirando com os cobertores para o lado.
Pois mal fecho a luz e me deito, cerro os olhos e tento pensar em alguma coisa que me entretenha o espírito até que o sono venha. Ultimamente, por exemplo, tenho pensado no arranjo do nosso salão no Algueirão, onde colocaremos os móveis e os biblots e coisas no género; mas os calores começam, o desejo de me levantar e andar de um lado para o outro surge, implacável, o pensamento perde-se e tento concentrar-me noutro tema. Por exemplo (1h 21), novas ideias para contos ou textos passíveis de enviar para o Pão Comanteiga. Acaba por não resultar e passo a outro assunto e depois a outro, enquanto me viro, ora para a direita, ora para a esquerda, escolhendo posições para os braços e pernas, que se coadunem melhor com uma possível chegada do sono. E penso: que bom seria se adormecesse já porque, amanhã, ao acordar, sei que me vou rir das dificuldades da noite anterior, porque o sono me sabe bem (se calhar é a bica post-jantar que anda também a contribuir para me tirar o sono, embora em circunstâncias normais isso não aconteça). E acabo por chegar a esta triste conclusão: quando se está com insónia, com um grande desejo de se ter sono, mas o sono não surge, um tipo apercebe-se que, desgraçadamente, não pode saber quando adormece. Quer dizer: o momento da passagem do estado de vigília ao de adormecimento, não é percebido pelo nosso consciente. Portanto, eu penso: que bom seria se adormecesse. E quando finalmente adormeço, não dou por isso e não tenho o prazer de pensar: que bom, estou a dormir! Esse prazer só o tenho na manhã seguinte, quando acordo e, nessa altura, já não me dá tanto gozo como agora me daria.
Considero estes apontamentos da máxima importância para futura leitura, porque são escritos em cima do acontecimento e estão a ter o condão de me trazer o sono, gradualmente. No entanto, quero que as pálpebras me pesem como chumbo, e só depois pousarei a caneta. Não quero arriscar-me a fechar os olhos e continuar a matutar em nem-eu-sei-bem-o-quê.
Agora estou muito mais lúcido e parece-me incompreensível como me deixo levar pela angústia, como sou capaz de desenvolver pensamentos do tipo “vou-me vestir e vou ao hospital dizer que me estou a sentir mal.” Logo a seguir, vejo mentalmente a cena: os gajos perguntavam-me o que é que eu sentia, eu dizia que sentia simplesmente uma grande angústia. Chateadíssimos por estarem a aturar o enésimo psicopata do dia, fornecer-me-iam o bial da ordem e mandar-me-iam embora. Mas se eles soubessem, de algum modo, e isso não seria difícil, que eu sou médico, com que cara me olhariam?
Por que não assumo eu a insónia?
Por que não assumo eu as extrassístoles? A hipertensão arterial e tudo o mais? Por que procuro eu estar doente?
São 1h 36 e, do andar de cima, chega música, provavelmente, do quarto do engenheiro e do veterinário. Possivelmente, também eles não têm sono. É para as pessoas que não têm sono que se inventaram os programas radiofónicos all over the night. Sinceramente, já não sei o que hei-de escrever e os olhos estão a fechar-se-me, mas ainda queria dizer mais algumas coisas a mim próprio. É natural um tipo não ter sono, de vez em quando, assim como é natural não ter fome, não ter líbido, etc. Num período de stress como este, é ainda mais natural que a insónia surja. Portanto, por que queres tu dormir à força? E por que te angustias quando não adormeces? Por que não admites tudo isso como natural e esperas pacientemente que o sono venha ou que não venha até? Não seria a primeira vez que passarias uma noite em claro e terás muito dias para recuperar isso.
São 1h 44 e parece-me que, agora, estou mesmo cheio de sono. Mas prometo a mim próprio que não vou fazer esforço algum para adormecer. Se os olhos se não fecharem ao fim de alguns minutos, se me sentir inundado, novamente, pelas tais ondas de calor e pelo impulso irresistível de me levantar, tornarei a pegar na caneta e prosseguirei este monólogo.”

Adormeci. O último parágrafo deste longo texto, está escrito com uma caligrafia quase indecifrável, de quem estava mesmo a cair de sono. Escritos como este inundam os caderninhos escritos ao longo de 1981, sobretudo nas noites em que ficava em Évora e teria vergonha deles se não me recordasse da angústia tremenda que me invadia então.
Quando acontecia ficar com o quarto só para mim, sem mais nenhum aspirante a pernoitar comigo, a angústia era a mesma, mas mais fácil de ultrapassar. Sozinho, podia ouvir música e deixar a luz acesa durante toda a noite. Ou sentar-me, todo nu, na borda da cama, a fumar um Português Suave (embalagem amarela, cada maço a 45 escudos).
Afinal, o que é que eu fazia em Évora, durante a tropa? De manhã, uma consulta de Clínica Geral para os familiares dos militares de carreira; uma vez por semana, uma Junta Médica, de parceria com o director do hospital (o capião Leiria), em que confirmávamos, ou não, as doenças dos soldados das várias Unidades da zona; de vez em quando, um domicílio, visitando um senhor oficial de carreira que não lhe apetecia deslocar-se ao médico; muito esporadicamente, uma chamada ao hospital, para ver algum soldadinho. A propósito, foi numa dessas chamadas que vi, pela primeira vez, um tipo cheio de piolhos do púbis.
Numa das semanas castrenses, tive que ir a Beja, fazer uma consulta, porque o médico daquela Unidade estava de férias. Foi uma experiência interessante porque destacaram um soldado (um cabo?) para me conduzir até Beja num Citroen Mehari lembram-se da publicidade? “Com capota, sem capota, ele é jipe, é camião – Citroen – Mehari!” Bom, nas mãos daquele rapazinho, não era jipe nem camião – era um veículo em grandes dificuldades. O tipo meteu a primeira, depois a segunda e fomos percorrendo as ruas de Évora; saímos da cidade, a caminho de Beja e, a medo, o rapaz meteu a terceira; e assim continuou durante largos quilómetros. Confesso que a minha ignorância em relação a veículos motorizados era (e é…) tão grande que, apesar do motor ir a fazer um barulho estranho, do género “ai que me estou quase a partir!”, ainda pensei que o carrito só tinha três mudanças; mas não me atrevi a dizer nada ao motorista – o fulano ia tão aflito, com as mãos crispadas no volante, gotas de suor a escorrerem do bivaque que, eu temi que, se lhe dissesse alguma coisa, ele se assustaria de tal maneira que nos atiraria aos dois para a valeta. Entretanto, o motor pedia socorro, cada vez com mais força e eu fui olhando, disfarçadamente, para a alavanca das velocidades e verifiquei que havia lugar para uma quarta velocidade – já nós íamos, talvez, a meio caminho entre Évora e Beja. Aclarei a garganta, fiz uma observação qualquer sobre o calor, que era tórrido, apenas para ganhar coragem e, finalmente, consegui perguntar: “Este carro não tem quatro velocidades?…” O rapazinho hesitou – e, subitamente, passámos da sideral velocidade de 40 quilómetros/hora para o estado de virtualmente parados – e lá conseguiu meter a quarta. O carro ia tão devagar que, claro, foi-se abaixo!… No entanto, a partir daí, foi sempre a abrir até Beja!…
E, além das consultas – o que fazia em Évora? Bom… angustiava-me, sobretudo à noite, fumava, muito e bebia, demais: um gin tónico antes do almoço, outro antes do jantar, cerveja, muita cerveja, que a sede era ensurdecedora, e uma aguardente gelada S. Domingos ou Valpaços, após as refeições. Veja-se este naco, que escrevi em Junho:

“Bebi um gin + uma cerveja + um Valpaços e estou melhor. Viva o álcool, mesmo com extrassístoles! Viva a nicotina, a cafeína e todos os restantes excitantes que, muito provavelmente, excitam o meu músculo cardíaco mas, simultaneamente, libertam a minha mente! Vivam!….”

E passeava por Évora: a Praça do Giraldo, as ruas estreitinhas, a Praça do Giraldo outra vez, o templo de Diana, o Convento dos Lóios, a Praça do Giraldo, a Sé Catedral, o Largo das Portas de Moura, para já não falar na… Praça do Giraldo… Ao fim de algum tempo, já conhecia a cidade de fio a pavio e, sinceramente, fiquei farto de Évora, apesar de toda a sua beleza.
E escrevia… escrevia muito, sobretudo depois de Abril, a partir do momento em que comecei a colaborar no Pão Comanteiga, a sério.
Vale a pena transcrever mais um excerto de um caderninho, também datado de Junho:

“(…) Não é depressão, é medo, injustificado já se vê e que, fisicamente, se manifesta ao nível das pernas, assim como uma lassidão muito grande, como se as pernas me pesassem… Estou fraccionado, como é costume quando aqui estou. Para o Pão Comanteiga escrevi 21 frases, um textozito e uma brincadeira e não sai mais nada. O tema é mau, claro, mas eu também não ajudo. Pois. Estudar, tenho estudado, ou melhor, tenho traduzido o Harrison, sem dar grande atenção ao que escrevo. E os conflitos sucedem-se: tenho vontade de fumar e fumo, depois penso que esta tensão é devida ao excesso de cigarros e decido fumar menos, mas logo penso que, se não fumar, mais tenso ficarei. O mesmo no que respeita ao álcool. Há bocado, por exemplo, tinha fome e trinquei, a custo, três bolachas; não lanchei; agora estou cheio de fome, mas pensar que me vou sentar naquela sala, diante do bacalhau à Brás, ainda por cima mais cedo do que o habitual, só de pensar nisso, me parece que não vou ser capaz de engolir, sequer, a primeira garfada. (…) E tenho alguns momentos de descanso. Poucos. Logo volta esta tensão, a vontade de andar de um lado para o outro até cair exausto, ou adormecer e acordar longe disto e longe de mim, tal como sou agora.”

Detestava-me, naqueles momentos. Mas depois, a crise dissipava-se e era como se nada se tivesse passado. Rapidamente me esquecia das figuras que fazia perante mim próprio, da angústia terminal que havia vivido. Aliás, acredito que ninguém, a não ser a Mila, chegou alguma vez a aperceber-se desta minha luta quase permanente. Para toda a gente, eu era um tipo bem disposto, sempre com o sentido de humor bem apurado, com um comentário jocoso para todas as situações; só para mim – e para a Mila, coitada! – é que eu era um chato, inseguro, ruminando sempre os mesmos temores.
Meus amigos, as semanas passadas em Évora destruíram-me! Merda prá tropa, carago!
Valiam-me as visitas da Mila que fazia o favor de deixar os meninos em casa dos pais e ir de comboio até Lisboa, a pé até ao Terreiro do paço, de barco até ao Barreiro, de comboio até Évora, para passar uma ou duas noites comigo, sempre que era possível – quando eu tinha o quarto só para mim e quando ela não estava de Banco no Hospital D. Estefânia. Nessas noites, com a Mila ao meu lado, não precisava do caderninho para nada. Descarregava nela toda a minha angústia e ela escutava-me, pacientemente. Depois, fazíamos amor e tudo ficava bem outra vez. Até ela se ir embora e eu ficar, novamente, na merda!


Num dos fins de semana, a Mila e os miúdos foram ter com o oficial médico a Évora. Estava um calor de ananazes e fomos todos para as piscinas municipais. Eis aqui a Marta e o Pedro, no banco de trás do Fiat, acalorados e lindíssimos.

As crises de pânico assaltavam-me, muitas vezes, durante as refeições na Messe dos Oficiais. Mas eu não me atrapalhava: pegava no caderninho e escrevia, mesmo à mesa, como desta vez, em Agosto:

“Atenção Artur! Estás a deixar-te ir abaixo! Após os registos optimistas dos últimos dias, eis que chego ao segundo dia e começo a vacilar! Estou neste momento em frente ao arroz de polvo e suo. No estômago, a habitual sensação de fome-mas-se-como-se-calhar-vomito. No entanto, e por experiência já longa, sei que não vomito. Estou a tentar superar-me e começar a comer lentamente. (…) Vou tentar começar a comer, caramba!… Já enfiei duas garfadas. Que tortura! Mais umas quantas garfadas mas com muita dificuldade. Eu já devia ter decidido que, em Évora, só com ansiolíticos. (…) Passaram-se 14 minutos e a coisa está a ir, lentamente. Se alguém estiver a olhar para mim com um mínimo de atenção, já deve ter chegado à conclusão de que sou marado, porque como umas garfadas e escrevo algumas linhas. Passaram 25 minutos. Lá consegui engolir o arroz de polvo com alguma dificuldade; se o menu fosse mais agradável, talvez tivesse comido mais. Chegou a vez de uma terrível mousse de cacau. Bravo Artur!”

Recordo que, em Agosto, já colaborava com o Pão Comanteiga há cinco meses. Talvez por isso, os meus textos intimistas, polvilhavam já com algum humor, as descrições das crises. Como esta frase, também de Agosto:

“(…) eis que agora escrevo no decorrer de uma mini-crise, em que o meu estômago, mal preenchido com uma reles omeleta, está novamente naquela sua indecisão entre a bolacha e a náusea…”

Para além das crises de pânico, Évora trouxe outro acontecimento importante: fui ao barbeiro! Uma das muitas competências da Mila – excelente mãe, boa colega, óptima cozinheira, suprema amante! – sempre foi a de saber cortar o cabelo, tanto a mim, como ao Pedro. Por isso, assim que me apercebi disso, deixei de ir ao barbeiro – tortura que me humilhava. Resquícios do tempo em que o meu pai me levava ao barbeiro e lhe recomendava que me rapasse convenientemente a nuca. Aliás, o meu pai só me levava a dois sítios, a saber: ao futebol e ao barbeiro. Não sei qual era o motivo desta fixação do meu pai pelo cabelo. Quando eu era puto, a minha mãe cuidava de mim sob todos os aspectos; no entanto, quem me penteava, habitualmente, era o meu pai. Porquê?… A Mila foi a minha libertação – sexual e do barbeiro! Durante algum tempo, depois de conhecer a Mila, até me dei ao luxo de fazer um jogo perverso. Claro que o meu pai, nessa altura, já não me acompanhava ao barbeiro mas, todos os meses, não se esquecia de me dar dinheiro para a tosquia – dinheiro que eu guardava para mim, já que era a Mila que me cortava o cabelo; e fazia-o tão bem, que o Zé Couto não dava pela diferença. Só voltei ao barbeiro na recruta, porque fui obrigado. E em Évora, para passar o tempo, também fui ao barbeiro; paguei 70 escudos por um tradicional corte de cabelo, com a nuca bem rapada, é claro…
E é com a nuca bem rapada que sou contactado pelo Joaquim Furtado, no dia 15 de Abril, para colaborar na revista Pão Comanteiga, que está prestes a ser publicada pela primeira vez. Oferecem-me mil e quinhentos escudos por texto mas, para mim, o dinheiro é o menos importante – poder voltar a escrever textos humorísticos com direito a publicação é, para mim, muito mais importante.
É, portanto, altura de abrir novo capítulo nestas memórias…


 

 





 

 

 



Próximo capítulo: 23. O Pão Comanteiga (1981)

 

Actualizado em: 27 Julho 2003
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O MELHOR DO PAU DE CANELA
Textos selecionados deste jornaleco de 1985

HISTÓRIAS POUCO CLÍNICAS
...mas muito cínicas
O MELHOR DO UMA VEZ POR SEMANA
Textos seleccionados deste programa sexual de 1986

COISAS DO COISO
textos e bonecos seleccionados que sairam no Coiso em papel

CAUSAS DO COISO
Como tudo começou

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Este é o Coiso do Artur Couto e Santos.
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