22. As crises de pânico (1981)
O Natal de 1980 deixou de ser submetido a sorteio –
foi mesmo a 25 de Dezembro e toda a família se reuniu
em Mourão, na véspera, para a troca de prendas
que, desde então, passou a fazer parte da tradição
familiar.
Nesse ano, foi a família que se deslocou até
nós. Deitámos abaixo os tapumes que separavam
a nossa parte da casa Esquível da parte que era ocupada
pelos colegas do estágio de Saúde Pública
(que tinham ido passar o Natal a Lisboa) e ficámos
com um casarão para receber os pais da Mila, a sua
tia Otília e o marido, a Luisa e o Jorge, e ainda
os pais deste, os Saraivas.
Na noite de Natal, organizei um sarau e formei o GAG (Grupo
de Acção Gutural) – uma alusão
ao GAC (Grupo de Acção Cultural), de que já
falei. O GAG era formado por mim, pela Mila, pelo Pedro
e pela Marta. O sarau começou comigo, a imitar um
surdo a fumar; sentei-me numa cadeira e acendi um cigarro;
a Mila chamou-me, invectivou-me, berrou-me e eu continuei
a fumar calmamente. Seguidamente, imitei um mudo a fumar;
sentei-me na mesma cadeira, acendi outro cigarro e fui mexendo
os lábios sem nada dizer. Brilhante! Seguiu-se uma
apresentação de nós os quatro, cantando,
com a voz mais gutural possível (daí o gutural
de GAG), o “Rama, ó que linda rama”.
Após dois pequenos sketches representados por mim
e pela Mila, veio o grande ilusionista Petrus (o Pedro,
evidentemente, que sempre alinhou nestas brincadeiras),
que apresentou alguns números absurdos de prestidigitação.
Antes, tínhamos preparado uma série de slides
a que chamei “Rebotalhos da Vida de um médico”,
e em que nós os quatro nos entretínhamos a
contar a curta história de um médico falhado.
Após o sarau, muito festejado pela família,
seguiu-se um concurso de slides. A mania de fazer diapositivos
continuava e o Jorge e a Luisa também alinhavam.
Durante alguns Natais, organizámos um concurso, em
que cada um mostrava, à família, os melhores
slides. Seguia-se uma votação renhida e, habitualmente,
havia vencedores ex-aequo. Depois, era a troca de prendas.
Nesse ano, e apesar da contenção económica
que a tropa obrigava, conseguimos gastar trinta e um contos
em prendas para toda a família e amigos. Apenas por
curiosidade, eis algumas prendas, com o preço em
escudos entre parêntesis:
- Pedro: guindaste (627), cinco carros (425), estojo de
médico (360), dois livros dos Schtroumpfs (360),
lego (525), cowboys (180), um guiador (460), um tambor (120),
uma pistola (280), bolas (557), uma pandeireta (80), régua
e papel de desenho (65);
- Marta: uma bolsa a tiracolo (370), livros para colorir
(60), uma casa de banho (79), um cesto com fruta de plástico
(150), um estojo de costura (475), dois livros da Anita
(210), um tractor (800), um saco para compras (420), um
tambor (120), uma pandeireta (80), um aspirador (350);
- Artur: uma miniatura de uma Dona Elvira (355), um écran
para slides (2000), um flash (4100), o “Déjá
Vu”, dos Crosby, Stills, Nash and Young (395), postais
ilustrados (250), um cesto para papéis (175);
- Mila: brincos (150), um tapete (600), pantufas (380),
uma máquina de café (3000), dois livros (500),
um saco de água quente (193), um livro com reproduções
do Dali (752).
A passagem do ano ainda foi feita em Mourão mas,
no dia 10, como já contei, regressámos todos
ao Algueirão, a grande velocidade. No fim de Fevereiro
de 1981, o Zé, a Mizé, a Joana e o André
mudaram-se para a sua nova casa na Rebelva, e nós
ficámos com a vivenda toda. Embora algo nos dissesse
que, mais tarde ou mais cedo, o nosso senhorio viria exigir
a casa de volta, começámos logo a pensar em
grandes obras e ainda fizemos algumas: pintámos os
dois andares da casa (tudo de branco!), arranjámos
a parede do corredor, que estava a cair, tentámos
dar ao quintal e ao jardim um aspecto mais arranjadinho.
Terminado o SMP, a Mila ficou colocada no Hospital D. Estefânia,
a frequentar uma coisa que era suposto não existir
– o quarto ano do internato Policlínico. De
facto, assim que terminasse o Serviço Médico
à Periferia, estava previsto que se realizasse o
exame de saída do internato e, consequentemente,
de entrada na especialidade, mas estava tudo muito atrasado.
Foi assim que a Mila, que até estava a pensar, eventualmente,
em ser Clínica Geral, começou a fazer Pediatria
e a gostar.
O Pedro, coitado, lá voltou para a escola primária
de Queluz, onde terminou a sua segunda classe; todos os
dias, eu ou a Mila íamos levá-lo a Queluz,
depois o Sousa ou a Arminda levavam-no e traziam-no da escola
e, ao fim do dia, um de nós ia buscá-lo. Uma
estafa – mas a família unida, jamais será
vencida!
Quanto à Marta, arranjámos-lhe uma escola
privada em Mem Martins, o Colégio da Nossa Senhora
da Conceição, que ela adorou desde o princípio,
até porque tinha ballet. As donas do Colégio,
ao saberem que ambos éramos médicos, fizeram
um contrato connosco: por quatro contos por mês, nós
ficámos como médicos do Colégio. Eu
tinha mais disponibilidade de tempo, porque só ia
a Évora uma semana por mês, pelo que vi todos
os meninos do Colégio, em consulta de rotina e, depois,
de vez em quando, éramos chamados para ver um ou
outro que estivesse doentinho.
E como os amigos são para as ocasiões, o tal
Dr. Cutileiro, cuja mulher era dona do primeiro infantário
do Pedro e da Marta, chamou-me algumas vezes para lhe fazer
consulta na Caixa de Previdência de Mem Martins, quando
ele não podia, ou para fazer alguns domicílios
a doentes dele. Uma consulta da Caixa, em Fevereiro, para
ver 16 doentes, valia 440 escudos; um domicílio,
400 escudos. Também o Manuel Marques, pediatra dos
nossos miúdos, conselheiro dos nossos tempos de província
e, então, colega da Mila no Hospital D. Estefânia,
nos deu uma ajuda: de vez em quando, a Mila substituía-o
no consultório, quando ele estava ausente; uma consulta
de Pediatria valia 500 escudos. Em Setembro, eu próprio
acabei por arranjar um Posto da Caixa de Previdência
(o nº 27, na Rua São Julião, em Lisboa),
onde fazia uma consulta de duas horas; acho que ganhava
cerca de seis contos por mês, enquanto que, da tropa,
recebia cerca de oito contos. Ao fim do primeiro mês
de consultas, um doente ofereceu-me uma rola e duas perdizes.
Assim começou uma longa tradição de
prendinhas de doentes, que fui registando, como mais adiante
se verá…
Enfim, o orçamento familiar compunha-se até
porque, a partir de Abril, comecei a colaborar a sério
no Pão Comanteiga. Mas essa história será
contada com mais detalhe no próximo capítulo.
O ano de 1981 ficou, no entanto, marcado pelo aumento desmedido
das minhas crises de pânico.
A primeira, como já referi, aconteceu quando estava
a assistir ao “Rei das Berlengas. Nessa altura, não
percebi o que me estava a acontecer. Tive uma segunda crise
certa noite em que estive de serviço, sozinho, no
Hospital de Reguengos. Mas em Évora, na Messe dos
oficiais, onde passava a maior parte dos dias da minha semana
de serviço à pátria, é que as
crises de pânico apareceram em força. Naquela
altura, não sabia o que era aquilo; aliás,
ninguém sabia – a chamada perturbação
de pânico só teve direito a classificação
como patologia individualizada muitos anos depois. Era angústia,
ansiedade, crise histérica? Tudo seria provocado
pelas extrassístoles? Sofreria eu de alguma doença
cardíaca? Quem me aturava era a Mila, claro. Mais
ninguém tinha conhecimento deste meu sofrimento.
Pacientemente, a Mila escutava as minhas dúvidas,
tentava tranquilizar-me, aconselhava-me e eu acatava as
suas palavras. No entanto, sempre que a crise estalava,
lá estava eu à beira… de quê?
Depois de muito ruminar, acabei por me decidir a ir ao Hospital
de Santa Maria fazer um electrocardiograma que, obviamente,
não mostrou nada de especial, a não ser uma
extrassístole ventricular. O colega que me observou,
fez-me as recomendações da praxe (evitar o
café, o tabaco, o álcool, o stress) e receitou-me
amiodarona. Mais tarde, fui ao consultório do Professor
Carlos Ribeiro que, após uma observação
negativa, me aconselhou um beta bloqueante e diazepan. Experimentei
vários beta bloqueantes (Inderal, Calmicor, Trasicor)
mas, além das extrassístoles não desaparecerem,
tinha uma série de efeitos secundários muito
aborrecidos: extremidades frias, pesadelos, diminuição
da potência sexual. Entretanto, ia tomando ansiolíticos
que, embora nada fizessem às extrassístoles,
sempre acalmavam a angústia. Só muitos anos
mais tarde descobri a propafenona, um antiarrítmico
que, de facto, me conseguia eliminar as extrassístoles.
Tomei-o durante anos e só em 1997, aos 44 anos, consegui
largar toda a espécie de medicação.
Posso, portanto, dizer que durante quase vinte anos sofri
de perturbação de pânico e que, graças
sobretudo à Mila, sobrevivi para contar. E posso,
também, garantir que, durante esses vinte anos, vivi
bem, feliz, e que as crises de pânico foram, até,
um lenitivo para lutar com mais força pelas coisas
de que gostava…
Além da Mila, outra coisa me ajudou muito a ultrapassar
esses momentos de quase loucura: a escrita. Sem o saber,
usei uma técnica própria da terapia comportamental:
quando tinha uma crise de angústia, descrevia-a nos
meus caderninhos, em pormenor; depois, quando nova crise
batia à porta, relia o que tinha escrito na crise
anterior e descrevia a nova crise. Ao fim de alguns meses,
tinha os caderninhos saturados de descrições
de crises de pânico; a sua leitura, vezes sem conta,
ajudou-me a encontrar pontos comuns em algumas das crises,
a meditar sobre isso e, de certo modo, a tranquilizar-me.
No entanto, e embora tenha agora a certeza que, de facto,
sofri de perturbação de pânico, acho
que eram as extrassístoles o elemento altamente perturbador.
Assim que as consegui quase eliminar, graças à
propafenona, as tais crises de pânico começaram
a diminuir substancialmente. É mesmo angustiante
sentir o coração aos pulos, irresoluto, se
há-de bater ou parar, minutos, horas, dias a fio!
Certa vez, penso que no final de 1980, tive uma amigdalite
daquelas a valer, com febre alta e uma dor de garganta das
antigas; a febre fez aumentar o ritmo cardíaco e,
consequentemente, desencadear uma crise de extrassístoles
que descambou em bigeminismo que, para quem não sabe,
consiste num ritmo irritante de um batimento certo/uma extrassístole/uma
batimento certo/ uma extrassístole o que, ao fim
de umas horas, dá a um tipo uma enorme vontade de
bater em si próprio – coisa que eu fazia, aliás,
dando grandes socos no peito, tentando parar aquele ritmo
tipo drum’n’bass – ou de cometer alguma
loucura.
Hoje em dia, tenho uma extrassístole de vez em quando,
como quase toda a gente – só que a maior parte
das pessoas não dá por elas, enquanto eu,
de tão treinado que estou, não me falha a
percepção de uma única. No entanto,
já não ligo, não me ralo e nem isso
me angustia. Mas, meus caros, passaram vinte anos, até
eu conseguir ultrapassar esta coisa e, durante todo esse
tempo, fui tentando uma ou outra técnica para me
livrar daquilo, mas nunca dei um passo que, teoricamente,
poderia ser o mais importante: deixar de fumar!…
Como já disse, os caderninhos ajudaram-me muito.
Por isso, acho essencial para que tudo isto fique explícito,
transcrever um desses escritos que, apesar de extenso, demonstra
bem a minha angústia de então. Foi escrito
no quarto da Messe dos Oficiais, em Évora, numa das
minhas semanas castrenses:
“São 0.33 do dia 21/1 e estou, neste preciso
momento, com uma das minhas crises de angústia nocturna
– recente aquisição a juntar ao já
extenso rol de macacoas que me têm martirizado o espírito
ultimamente.
Ao lado, o aspirante-advogado Nogueira dorme profundamente,
ressonando até um pouco, o que não me incomoda,
excepto pelo facto de me causar inveja...
Resolvi aproveitar a oportunidade para descrever estas estúpidas
crises de angústia, que têm sempre sido descritas
a posteriori e, ao mesmo tempo, tentarei acalmar-me e buscar
o sono, ao mesmo tempo que escrevo.
Comecemos pelos factos: terminada a TV, subi ao quarto,
seriam talvez 23h 35, tomei um Sopax (uma benzodiazepina),
vesti o pijama, escrevi o meu diário e estirei-me
na cama, lendo “O Mistério da Estrada de Sintra”.
Mas estava a ler superficialmente, sem dar muita atenção
ao texto, tendo que repetir a leitura de certas passagens
várias vezes. Isto porque estava já a prever
mais uma sessãozinha de angústia. (Agora parei
por um momento porque me deu um daqueles calores que me
fazem correr à casa de banho, uma náusea que
se resolve com um tímido arroto; estou sentado na
sanita, a escrever). Continuando: à meia noite, desliguei
o rádio, li mais um pouco, apaguei a luz e deitei-me.
Algumas reviravoltas na cama, já estava em pé,
suando e sentindo uma vontade quase irresistível
(voltei para a cama) de me vestir e sair porta fora, passear
pela rua, não sei muito bem para onde. Um desejo
enorme que me venham chamar para ir ver algum doente ao
hospital, para que eu possa sair daqui... Ou uma vontade
imensa de adormecer de repente, para que a noite passe depressa
e sem eu dar por isso, e chegue a manhã (nova pausa:
o calor é tanto que fui despir o pijama e substituí-lo
pelas cuecas e uma t-shirt; entretanto, o Nogueira deu uma
reviravolta na cama, abriu um olho de carneiro mal morto,
tapou a cara com o lençol e continuou a dormir).
Pois com a luz apagada e a cabeça apoiada na almofada,
uma angústia terrível começa a apoderar-se
de mim – angústia que se traduz por um calor
insuportável, com suores e uma insegurança,
que talvez seja medo, embora eu não consiga dizer
de quê. Como “flash” perpassa-me pela
cabeça a ideia, obviamente estúpida, de correr
ao hospital civil, pedir para me darem um Valium 10 injectável.
Mas logo afasto essa ideia. Médico sou eu e “tenho”
que saber controlar a situação sozinho. Então
e o Sopax? pergunto – não faz efeito nenhum?
Tomar um Morfex? Li a bula e penso que é melhor não
me meter nisso. Já pensei em fumar um cigarro mais
de 52 vezes mas, logo a seguir, penso que a nicotina só
me iria excitar mais. Continuar a ler, não me apetece.
Escrever está a fazer-me bem. Com a almofada sob
o peito, deitado de barriga para baixo, vou registando todas
estas reacções e sensações.
Como bom repórter – sempre em cima do acontecimento.
(…) E, para além dos sintomas psicossomáticos
que têm surgido, nomeadamente as extrassístoles,
surge também a insónia. E eu, tendo tido já
experiências semelhantes à que estou a viver
hoje, já deveria saber como lidar com elas. Vou,
pois, expor a teoria: nas horas que antecedem o momento
de vir para a cama, começo já a antever o
drama que se poderá vir a desenrolar: não
ter sono. Por isso, prolongo a minha estada no salão
até ao último fotograma do hino nacional (naquele
tempo, a RTP terminava as emissões com o hino, quem
não se lembra?…). Mas o aparelho apaga-se,
as luzes fecham-se e não há alternativa senão
subir. Depois, aceitando o facto, não direi normal,
mas pelo menos compreensível, de não ter sono,
não deveria preocupar-me com isso e entreter-me com
qualquer coisa (ler, palavras cruzadas, escrever, fumar
cigarros – a propósito, vou fumar um) até
que o sono chegasse. E, se tal fosse preciso, ficar a fazer
qualquer coisa até cair para o lado de fadiga ou,
eventualmente, esperar pela manhã. Mas não:
leio um pedaço, fecho a luz e deito-me, sabendo de
antemão que não vou adormecer instantaneamente,
nem pouco mais ou menos.
E agora, antes de continuar, quero registar que estou muito
melhor: o sentimento de angústia, de opressão,
de claustrofobia, de necessidade imperiosa de sair daqui
para fora, já passou e acrescentarei até,
que os olhos começam já a fechar-se, embora
ainda não o suficiente para me aventurar a deitar-me
e apagar a luz. Aliás, nestas situações,
um tipo como que regride, revivendo os seus terrores de
criança e tenho a impressão de que vou dormir
(se conseguir!…) de luz acesa. E, sinceramente, estou-me
borrifando, neste momento, para o Nogueira, que parece até
nem estar muito incomodado, tendo-se virado agora para o
outro lado – também ele acalorado, atirando
com os cobertores para o lado.
Pois mal fecho a luz e me deito, cerro os olhos e tento
pensar em alguma coisa que me entretenha o espírito
até que o sono venha. Ultimamente, por exemplo, tenho
pensado no arranjo do nosso salão no Algueirão,
onde colocaremos os móveis e os biblots e coisas
no género; mas os calores começam, o desejo
de me levantar e andar de um lado para o outro surge, implacável,
o pensamento perde-se e tento concentrar-me noutro tema.
Por exemplo (1h 21), novas ideias para contos ou textos
passíveis de enviar para o Pão Comanteiga.
Acaba por não resultar e passo a outro assunto e
depois a outro, enquanto me viro, ora para a direita, ora
para a esquerda, escolhendo posições para
os braços e pernas, que se coadunem melhor com uma
possível chegada do sono. E penso: que bom seria
se adormecesse já porque, amanhã, ao acordar,
sei que me vou rir das dificuldades da noite anterior, porque
o sono me sabe bem (se calhar é a bica post-jantar
que anda também a contribuir para me tirar o sono,
embora em circunstâncias normais isso não aconteça).
E acabo por chegar a esta triste conclusão: quando
se está com insónia, com um grande desejo
de se ter sono, mas o sono não surge, um tipo apercebe-se
que, desgraçadamente, não pode saber quando
adormece. Quer dizer: o momento da passagem do estado de
vigília ao de adormecimento, não é
percebido pelo nosso consciente. Portanto, eu penso: que
bom seria se adormecesse. E quando finalmente adormeço,
não dou por isso e não tenho o prazer de pensar:
que bom, estou a dormir! Esse prazer só o tenho na
manhã seguinte, quando acordo e, nessa altura, já
não me dá tanto gozo como agora me daria.
Considero estes apontamentos da máxima importância
para futura leitura, porque são escritos em cima
do acontecimento e estão a ter o condão de
me trazer o sono, gradualmente. No entanto, quero que as
pálpebras me pesem como chumbo, e só depois
pousarei a caneta. Não quero arriscar-me a fechar
os olhos e continuar a matutar em nem-eu-sei-bem-o-quê.
Agora estou muito mais lúcido e parece-me incompreensível
como me deixo levar pela angústia, como sou capaz
de desenvolver pensamentos do tipo “vou-me vestir
e vou ao hospital dizer que me estou a sentir mal.”
Logo a seguir, vejo mentalmente a cena: os gajos perguntavam-me
o que é que eu sentia, eu dizia que sentia simplesmente
uma grande angústia. Chateadíssimos por estarem
a aturar o enésimo psicopata do dia, fornecer-me-iam
o bial da ordem e mandar-me-iam embora. Mas se eles soubessem,
de algum modo, e isso não seria difícil, que
eu sou médico, com que cara me olhariam?
Por que não assumo eu a insónia?
Por que não assumo eu as extrassístoles? A
hipertensão arterial e tudo o mais? Por que procuro
eu estar doente?
São 1h 36 e, do andar de cima, chega música,
provavelmente, do quarto do engenheiro e do veterinário.
Possivelmente, também eles não têm sono.
É para as pessoas que não têm sono que
se inventaram os programas radiofónicos all over
the night. Sinceramente, já não sei o que
hei-de escrever e os olhos estão a fechar-se-me,
mas ainda queria dizer mais algumas coisas a mim próprio.
É natural um tipo não ter sono, de vez em
quando, assim como é natural não ter fome,
não ter líbido, etc. Num período de
stress como este, é ainda mais natural que a insónia
surja. Portanto, por que queres tu dormir à força?
E por que te angustias quando não adormeces? Por
que não admites tudo isso como natural e esperas
pacientemente que o sono venha ou que não venha até?
Não seria a primeira vez que passarias uma noite
em claro e terás muito dias para recuperar isso.
São 1h 44 e parece-me que, agora, estou mesmo cheio
de sono. Mas prometo a mim próprio que não
vou fazer esforço algum para adormecer. Se os olhos
se não fecharem ao fim de alguns minutos, se me sentir
inundado, novamente, pelas tais ondas de calor e pelo impulso
irresistível de me levantar, tornarei a pegar na
caneta e prosseguirei este monólogo.”
Adormeci. O último parágrafo deste longo
texto, está escrito com uma caligrafia quase indecifrável,
de quem estava mesmo a cair de sono. Escritos como este
inundam os caderninhos escritos ao longo de 1981, sobretudo
nas noites em que ficava em Évora e teria vergonha
deles se não me recordasse da angústia tremenda
que me invadia então.
Quando acontecia ficar com o quarto só para mim,
sem mais nenhum aspirante a pernoitar comigo, a angústia
era a mesma, mas mais fácil de ultrapassar. Sozinho,
podia ouvir música e deixar a luz acesa durante toda
a noite. Ou sentar-me, todo nu, na borda da cama, a fumar
um Português Suave (embalagem amarela, cada maço
a 45 escudos).
Afinal, o que é que eu fazia em Évora, durante
a tropa? De manhã, uma consulta de Clínica
Geral para os familiares dos militares de carreira; uma
vez por semana, uma Junta Médica, de parceria com
o director do hospital (o capião Leiria), em que
confirmávamos, ou não, as doenças dos
soldados das várias Unidades da zona; de vez em quando,
um domicílio, visitando um senhor oficial de carreira
que não lhe apetecia deslocar-se ao médico;
muito esporadicamente, uma chamada ao hospital, para ver
algum soldadinho. A propósito, foi numa dessas chamadas
que vi, pela primeira vez, um tipo cheio de piolhos do púbis.
Numa das semanas castrenses, tive que ir a Beja, fazer uma
consulta, porque o médico daquela Unidade estava
de férias. Foi uma experiência interessante
porque destacaram um soldado (um cabo?) para me conduzir
até Beja num Citroen Mehari lembram-se da publicidade?
“Com capota, sem capota, ele é jipe, é
camião – Citroen – Mehari!” Bom,
nas mãos daquele rapazinho, não era jipe nem
camião – era um veículo em grandes dificuldades.
O tipo meteu a primeira, depois a segunda e fomos percorrendo
as ruas de Évora; saímos da cidade, a caminho
de Beja e, a medo, o rapaz meteu a terceira; e assim continuou
durante largos quilómetros. Confesso que a minha
ignorância em relação a veículos
motorizados era (e é…) tão grande que,
apesar do motor ir a fazer um barulho estranho, do género
“ai que me estou quase a partir!”, ainda pensei
que o carrito só tinha três mudanças;
mas não me atrevi a dizer nada ao motorista –
o fulano ia tão aflito, com as mãos crispadas
no volante, gotas de suor a escorrerem do bivaque que, eu
temi que, se lhe dissesse alguma coisa, ele se assustaria
de tal maneira que nos atiraria aos dois para a valeta.
Entretanto, o motor pedia socorro, cada vez com mais força
e eu fui olhando, disfarçadamente, para a alavanca
das velocidades e verifiquei que havia lugar para uma quarta
velocidade – já nós íamos, talvez,
a meio caminho entre Évora e Beja. Aclarei a garganta,
fiz uma observação qualquer sobre o calor,
que era tórrido, apenas para ganhar coragem e, finalmente,
consegui perguntar: “Este carro não tem quatro
velocidades?…” O rapazinho hesitou – e,
subitamente, passámos da sideral velocidade de 40
quilómetros/hora para o estado de virtualmente parados
– e lá conseguiu meter a quarta. O carro ia
tão devagar que, claro, foi-se abaixo!… No
entanto, a partir daí, foi sempre a abrir até
Beja!…
E, além das consultas – o que fazia em Évora?
Bom… angustiava-me, sobretudo à noite, fumava,
muito e bebia, demais: um gin tónico antes do almoço,
outro antes do jantar, cerveja, muita cerveja, que a sede
era ensurdecedora, e uma aguardente gelada S. Domingos ou
Valpaços, após as refeições.
Veja-se este naco, que escrevi em Junho:
“Bebi um gin + uma cerveja + um Valpaços
e estou melhor. Viva o álcool, mesmo com extrassístoles!
Viva a nicotina, a cafeína e todos os restantes excitantes
que, muito provavelmente, excitam o meu músculo cardíaco
mas, simultaneamente, libertam a minha mente! Vivam!….”
E passeava por Évora: a Praça do Giraldo,
as ruas estreitinhas, a Praça do Giraldo outra vez,
o templo de Diana, o Convento dos Lóios, a Praça
do Giraldo, a Sé Catedral, o Largo das Portas de
Moura, para já não falar na… Praça
do Giraldo… Ao fim de algum tempo, já conhecia
a cidade de fio a pavio e, sinceramente, fiquei farto de
Évora, apesar de toda a sua beleza.
E escrevia… escrevia muito, sobretudo depois de Abril,
a partir do momento em que comecei a colaborar no Pão
Comanteiga, a sério.
Vale a pena transcrever mais um excerto de um caderninho,
também datado de Junho:
“(…) Não é depressão,
é medo, injustificado já se vê e que,
fisicamente, se manifesta ao nível das pernas, assim
como uma lassidão muito grande, como se as pernas
me pesassem… Estou fraccionado, como é costume
quando aqui estou. Para o Pão Comanteiga escrevi
21 frases, um textozito e uma brincadeira e não sai
mais nada. O tema é mau, claro, mas eu também
não ajudo. Pois. Estudar, tenho estudado, ou melhor,
tenho traduzido o Harrison, sem dar grande atenção
ao que escrevo. E os conflitos sucedem-se: tenho vontade
de fumar e fumo, depois penso que esta tensão é
devida ao excesso de cigarros e decido fumar menos, mas
logo penso que, se não fumar, mais tenso ficarei.
O mesmo no que respeita ao álcool. Há bocado,
por exemplo, tinha fome e trinquei, a custo, três
bolachas; não lanchei; agora estou cheio de fome,
mas pensar que me vou sentar naquela sala, diante do bacalhau
à Brás, ainda por cima mais cedo do que o
habitual, só de pensar nisso, me parece que não
vou ser capaz de engolir, sequer, a primeira garfada. (…)
E tenho alguns momentos de descanso. Poucos. Logo volta
esta tensão, a vontade de andar de um lado para o
outro até cair exausto, ou adormecer e acordar longe
disto e longe de mim, tal como sou agora.”
Detestava-me, naqueles momentos. Mas depois, a crise dissipava-se
e era como se nada se tivesse passado. Rapidamente me esquecia
das figuras que fazia perante mim próprio, da angústia
terminal que havia vivido. Aliás, acredito que ninguém,
a não ser a Mila, chegou alguma vez a aperceber-se
desta minha luta quase permanente. Para toda a gente, eu
era um tipo bem disposto, sempre com o sentido de humor
bem apurado, com um comentário jocoso para todas
as situações; só para mim – e
para a Mila, coitada! – é que eu era um chato,
inseguro, ruminando sempre os mesmos temores.
Meus amigos, as semanas passadas em Évora destruíram-me!
Merda prá tropa, carago!
Valiam-me as visitas da Mila que fazia o favor de deixar
os meninos em casa dos pais e ir de comboio até Lisboa,
a pé até ao Terreiro do paço, de barco
até ao Barreiro, de comboio até Évora,
para passar uma ou duas noites comigo, sempre que era possível
– quando eu tinha o quarto só para mim e quando
ela não estava de Banco no Hospital D. Estefânia.
Nessas noites, com a Mila ao meu lado, não precisava
do caderninho para nada. Descarregava nela toda a minha
angústia e ela escutava-me, pacientemente. Depois,
fazíamos amor e tudo ficava bem outra vez. Até
ela se ir embora e eu ficar, novamente, na merda!
Num dos fins de semana, a Mila e os miúdos foram
ter com o oficial médico a Évora. Estava um
calor de ananazes e fomos todos para as piscinas municipais.
Eis aqui a Marta e o Pedro, no banco de trás do Fiat,
acalorados e lindíssimos.
As crises de pânico assaltavam-me, muitas vezes,
durante as refeições na Messe dos Oficiais.
Mas eu não me atrapalhava: pegava no caderninho e
escrevia, mesmo à mesa, como desta vez, em Agosto:
“Atenção Artur! Estás a
deixar-te ir abaixo! Após os registos optimistas
dos últimos dias, eis que chego ao segundo dia e
começo a vacilar! Estou neste momento em frente ao
arroz de polvo e suo. No estômago, a habitual sensação
de fome-mas-se-como-se-calhar-vomito. No entanto, e por
experiência já longa, sei que não vomito.
Estou a tentar superar-me e começar a comer lentamente.
(…) Vou tentar começar a comer, caramba!…
Já enfiei duas garfadas. Que tortura! Mais umas quantas
garfadas mas com muita dificuldade. Eu já devia ter
decidido que, em Évora, só com ansiolíticos.
(…) Passaram-se 14 minutos e a coisa está a
ir, lentamente. Se alguém estiver a olhar para mim
com um mínimo de atenção, já
deve ter chegado à conclusão de que sou marado,
porque como umas garfadas e escrevo algumas linhas. Passaram
25 minutos. Lá consegui engolir o arroz de polvo
com alguma dificuldade; se o menu fosse mais agradável,
talvez tivesse comido mais. Chegou a vez de uma terrível
mousse de cacau. Bravo Artur!”
Recordo que, em Agosto, já colaborava com o Pão
Comanteiga há cinco meses. Talvez por isso, os meus
textos intimistas, polvilhavam já com algum humor,
as descrições das crises. Como esta frase,
também de Agosto:
“(…) eis que agora escrevo no decorrer
de uma mini-crise, em que o meu estômago, mal preenchido
com uma reles omeleta, está novamente naquela sua
indecisão entre a bolacha e a náusea…”
Para além das crises de pânico, Évora
trouxe outro acontecimento importante: fui ao barbeiro!
Uma das muitas competências da Mila – excelente
mãe, boa colega, óptima cozinheira, suprema
amante! – sempre foi a de saber cortar o cabelo, tanto
a mim, como ao Pedro. Por isso, assim que me apercebi disso,
deixei de ir ao barbeiro – tortura que me humilhava.
Resquícios do tempo em que o meu pai me levava ao
barbeiro e lhe recomendava que me rapasse convenientemente
a nuca. Aliás, o meu pai só me levava a dois
sítios, a saber: ao futebol e ao barbeiro. Não
sei qual era o motivo desta fixação do meu
pai pelo cabelo. Quando eu era puto, a minha mãe
cuidava de mim sob todos os aspectos; no entanto, quem me
penteava, habitualmente, era o meu pai. Porquê?…
A Mila foi a minha libertação – sexual
e do barbeiro! Durante algum tempo, depois de conhecer a
Mila, até me dei ao luxo de fazer um jogo perverso.
Claro que o meu pai, nessa altura, já não
me acompanhava ao barbeiro mas, todos os meses, não
se esquecia de me dar dinheiro para a tosquia – dinheiro
que eu guardava para mim, já que era a Mila que me
cortava o cabelo; e fazia-o tão bem, que o Zé
Couto não dava pela diferença. Só voltei
ao barbeiro na recruta, porque fui obrigado. E em Évora,
para passar o tempo, também fui ao barbeiro; paguei
70 escudos por um tradicional corte de cabelo, com a nuca
bem rapada, é claro…
E é com a nuca bem rapada que sou contactado pelo
Joaquim Furtado, no dia 15 de Abril, para colaborar na revista
Pão Comanteiga, que está prestes a ser publicada
pela primeira vez. Oferecem-me mil e quinhentos escudos
por texto mas, para mim, o dinheiro é o menos importante
– poder voltar a escrever textos humorísticos
com direito a publicação é, para mim,
muito mais importante.
É, portanto, altura de abrir novo capítulo
nestas memórias…
|