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O Coiso
Memórias de um fumador
50 anos de história


23. O Pão Comanteiga (1981)

No que respeita a leituras, o ano de 1981 não foi muito famoso; até Abril, andei obcecado com a tropa e as crises de pânico – depois de Abril, o Pão Comanteiga ocupava-me todos os bocadinhos livres. Além disso, tínhamos comprado o Harrison, que é o livro de texto, básico, de todas as doenças – que nos custou dois contos e oitocentos – e tínhamos começado a estudar para o tal exame de saída do internato e entrada na especialidade. Portanto, limitei-me, praticamente, a livros de ficção científica, da colecção Argonauta (Robert Heinlein, Ursula Le Guin, E. E. “Doc” Smith, Phillipe José Farmer) e aos policiais da Vampiro (Rex Stout, Simenon, Frank Gruber). Penso que foi o Humberto Eco que disse que todos os romances são policiais. Não sei se ele disse isto para justificar “O Nome da Rosa” que, no fundo é um romance policial, em “ambiente histórico”, se o disse convictamente. O que é certo é que um bom romance policial entretém e não estupidifica, se é que me faço entender e, quando um tipo anda demasiado preocupado com muitas coisas, sabe bem pegar num livrinho da Vampiro e “perder” algumas horas com uma boa trama policial.
Quanto a filmes, alguns importantes: “Este Obscuro Objecto do Desejo”, do Buñuel, “Ensaio de Orquestra” e “A Cidade das Mulheres”, do Fellini (tive uma crise de pânico tão grande durante todo o filme, mas vi-o até ao fim!), “O Touro Enraivecido”, do Martin Scorcese, com o de Niro, “Shining”, do Kubrick, com o Jack Nicholson (“Here’s Johnny!”), “Stardust Memories”, do Woody Allen e “Os Salteadores da Arca Perdida”, do Spielberg.
Mas contemos a história do Pão Comanteiga.
Comecei por ser convidado, em Abril, para a revista, que só sairia em Junho. Foi o Joaquim Furtado que me telefonou, já que era o único elemento da equipa que me conhecia bem, desde os tempos do jornalismo. Estava eu já todo entretido a escrever que nem um danado textos passíveis de serem publicados na revista, quando me convidaram, a 12 de Maio, para colaborar, também, no programa de rádio.
Parece que estava a ser difícil para a equipa encher três horas de programa, todos os domingos; talvez algum dos elementos da equipa se tenha lembrado da torrente de textos meus que surgiam semanalmente nos suplementos do República.
O Pão Comanteiga tinha sido uma ideia original do Carlos Cruz, José Duarte e Mário Zambujal, três grandes fumadores, e tinha começado a ir para o ar, das 10 às 13 horas de domingo, na Rádio Comercial, em 1980. A equipa inicial, além daqueles três, também incluía a Eduarda Ferreira, o Orlando Neves e o Bernardo Brito e Cunha, mais conhecido por BBC (outro enorme fumador). Quando eu entrei para a equipa, já tinha saído o Orlando Neves, e entrado o Joaquim Furtado e o José Fanha (mais dois grandes fumadores), a Eduarda não me recordo se fumava. Aos domingos de manhã, quando estava a equipa toda reunida no estúdio da Rádio Comercial, o fumo de cigarro imitava um denso nevoeiro. Quem não fumasse e entrasse, por descuido, no estúdio, ficaria com o equivalente a vinte anos de nicotina e fumos.
Convidaram-me, então, no dia 12 de Maio e o primeiro programa com a minha colaboração foi para o ar no dia 24; tive cerca de dez dias para escrever textos subordinados ao tema “jogos”. Entre as diversas frases ou aforismos, tão típicas do Pão Comanteiga que escrevi então, destaco:

“- Nunca jogue à barra do lenço com ranhosos
- Nas cartas, como no resto, uma dama nunca se balda
- É óptimo jogar ao bilas nos cemitérios; as covinhas já estão feitas…”

Estava em Évora quando foi para o ar esse programa. Ouvi-o, com um certo nervosismo, juntamente com a Mila num rádio de pilhas que costumava levar comigo para as semanas castrenses e recordo bem a emoção que senti quando ouvi o Carlos Cruz dizer o meu nome, como membro da equipa do Pão Comanteiga e, sobretudo, quando leu – e interpretou, bem como sempre - os meus textos.
A partir desse dia, só parei quando o programa acabou. Tenho um volume espesso, devidamente encadernado, com todos os textos que escrevi em 1981 para o Pão, trinta e dois programas; outro volume com os textos dos trinta e dois programas de 1982/83; outro ainda com os textos que escrevi para a revista, entre 1981 e 1983; e um outro com os textos dos vinte e seis programas de 1988. E tenho mais volumes, com textos escritos para outros programas, quer com esta equipa, quer com outras; a seu tempo falarei deles.


A equipa do Pão Comanteiga, em Dezembro de 1981, na cabina da Rádio Comercial, numa foto do semanário Se7e. Da esquerda para a direita: Mário Zambujal, Eduarda Ferreira, eu, José Duarte, Bernardo Brito e Cunha e Joaquim Furtado; à frente, Carlos Cruz.

Por agora, gostava de falar um pouco mais da experiência inovadora que foi o Pão. Penso que valeria a pena escrever a história do programa mas penso que não é a mim que compete esse trabalho. Embora tenha consciência de que fiz parte do núcleo duro do programa, acho que o Carlos, o Zé Duarte ou o Mário Zambujal estão em muito melhores condições de contar a história do Pão.
Para mim, escrever para o Pão foi algo que nunca mais se repetiu, em termos de gozo. Colaborei, depois, em muitos outros programas mas, exceptuando o “Uma vez por Semana” (de que falarei mais à frente), nada me deu tanto prazer como o Pão.
Basicamente, a coisa funcionava assim: a equipa reunia-se e escolhia uma dúzia de temas para os próximos programas, calendarizando-os. Depois, cada um ia para casa puxar pela cabeça. A meio da semana, reuniamo-nos novamente, entregávamos os textos todos ao Carlos (o chefe), que procedia à sua leitura e- autocraticamente – escolhia os textos que iria ler e os que iriam para o lixo, quer porque achava não terem qualidade suficiente, quer porque não se sentia muito confortável a lê-los. No domingo de manhã, na Rádio Comercial, quase todos os elementos da equipa lá estavam a apoiar o chefe naquelas três horas malucas.
Para o Pão, escrevi de tudo: frases ou aforismos, pequenos e grandes contos, historinhas, textos absurdos, diálogos (que eram lidos pelo Carlos e pelo Zé Duarte). A partir do meu oitavo programa, comecei também a escrever o texto de abertura do programa. A minha média era de dez a doze páginas de texto, todas as semanas.
A título de exemplo, aqui vai a abertura do programa de 12 de Julho – tema: mamíferos:

“Mamíferos e mamíferas de Portugal – este é o vosso Cão Comanteiga. Primatas, priminhas, primogénitos, insectívoros, insecticidas, carnívoros e carniceiros, proboscídeos e proboscenos, a equipa do costume vai desvendar os vosso segredos:
- Artur Porco e Santos
- Bernardo Burro e Cunha
- Leoparda Ferreira
- ChimpaZé Duarte
- ChimpaZeca Fanha
- Saguim Furtado
- Mário Zebrajal
- e Carlos Cangurus
Hoje é que vai ser o fim da macacada! Estamos rodeados de mamíferos por todos os lados, menos por um, que se chama istmo. E istmo é que é qualidade de vida!
Os mamíferos caracterizam-se, em primeiro lugar, pela presença de mamas.. Vem em qualquer enciclopédia. Verifique em si próprio. Já verificou? Passemos à segunda característica: os mamíferos têm o corpo coberto de pelos – são, portanto, animais peludos. Verifique também no seu próprio corpo, pelo sim, pelo não. Tem pelinhos, não é verdade? Tem, claro que tem! A terceira característica vem logo a seguir à segunda: os mamíferos possuem dois pulmões e um coração dividido em quatro cavidades. Não pode verificar isso, mas acredite porque é mesmo verdade. Quanto ao cérebro, os mamíferos possuem-no, mais ou menos desenvolvido, conforme. O seu é substancialmente desenvolvido e por isso mesmo está, neste momento, a ouvir o Pão Comanteiga. Parabéns, caro mamífero! Em casa ou na jaula, na praia ou no pasto, na selva ou no jardim zoológico, este é o vosso programa.
A equipa do Pão Comanteiga não poupou esforços e consultou uma extensa bibliografia para elaborar o programa de hoje. Eis os títulos de algumas das obras que consultámos:
- “A Morte de um ouriço-caixeiro viajante”
- “O Gamo Sutra”, em várias versões, algumas delas ilustradas
- “Os Cavalos da casa mourisca”
- “ A Cabrinha dos canaviais”
- “As Pilecas do Sr. Reitor”
- “Recordações da casa dos porcos”
- “O Macaco nu” e “O Macaco em roupa interior”
- “Assim falou Zebratustra”
- “Eurico, o proboscídeo”
- “Doninha Flor e seus dois maridos”
- “O Tigre e o joio”
- “Ali Babá e os 40 camelos”
- “A manhã sub-morsa”
- “O Cão que o diabo amassou”
- “Alce no país das maravilhas”
- “A Dama dos camelos”
- “Cem anos de sol e cão”
E muitos outros, para além, é claro, das enciclopédias La-russo e La-americano – nossos habituais e insubstituíveis companheiros de trabalho.“

Era sempre com um texto deste género que o Carlos Cruz abria o Pão Comanteiga, ouvindo-se, em fundo, o tema musical escolhido para a abertura e fecho, “Head Hunters”, do Herbie Hanckok. Não sei quem escolheu o tema, mas mostrava bem as inclinações musicais da equipa – entre o jazz (de quem o Zé Duarte é um amador, palavra que vem do verbo amar) e o rock, que estaria mais próximo dos restantes elementos da equipa.
A minha técnica era simples: conhecido o tema, escrevia, primeiro, todas as palavras que pudessem estar relacionadas com ele. Por exemplo, no caso dos mamíferos, fia uma lista de todos os mamíferos de que fui capaz de me recordar. Depois, para cada um deles, tentava inventar uma frase, um aforismo, que tivesse alguma graça. E, neste particular, muito me ajudou a memória que tinha do “Pif Paf”, do brasileiro Millor Fernandes e que o Diário Popular publicava nos anos 70. Esgotadas as ideias para as frases, passava às historinhas ou aos textos um pouco mais longos, conforme a inspiração do momento. Finalmente, socorrendo-me das notícias da semana, escrevia alguns diálogos de actualidade política, que tinham sempre um bordão final, tipo “Isto é que é qualidade de vida!”.
Exemplo:

“A – Ó sócio!
B – Hum…
A – Então o ministro das Finanças disse que estamos a viver acima das nossas posses?…
B – O quê?!
A – Tou-te a dizer!
B – Hi jesus! Isso é que é qualidade de vida!”

Estávamos em 1981 e o ministro das Finanças da altura dizia o mesmo que o actual ministro diz, estão a reparar?…
Durante aqueles tempos, as minhas memórias confundem-se um pouco com as do Pão. Por isso mesmo, vou dar uma volta pelos programas de 1981, destacando as frases que escrevi e de que mais gosto, uma vez que penso que era nas frases que estava a grande força e originalidade dos textos do programa.
Depois da estreia, com o tema jogos, seguiu-se, a 31 de Maio, um programa sobre peixes. Das 45 frases que escrevi, destaco estas duas:

“- Todos os carapaus, quando são pequeninos, chamam-se Joaquim.
- Nunca se esqueça de limpar o rabo à pescadinha antes de lho enfiar na boca”

O tema dos peixes foi retomado no programa de 7 de Junho porque, como costumava dizer o Carlos, “há texto a mais!…” Escrevi mais 14 frases, colocando, ainda, três perguntas lancinantes:

“Quem matou o Mar Morto?
Quem pintou o Mar Vermelho?
E quem sujou o Lago Titicaca?”

O tema de 14 de Junho era difícil: os números. Escrevi apenas 22 frases, das quais destaco uma que demonstra bem que algumas coisas apenas resultavam quando transmitiam na rádio já que, quando lidas, não tinham a mesma piada:

“Insexto (leia-se incesto) é o atleta que corta a meta depois do quinto.”

No domingo, 21 de Junho, o tema foi, exactamente, o domingo. Difícil escrever frases com este tema. A 28 de Junho, o tema era mais fácil: pássaros. Inventei 45 frases, das quais destaco mais uma que resulta melhor em rádio, fazendo a ligação entre as duas primeiras palavras:

“Um magalinha põe ovos? Ai se as Forças Armadas sabem!…”

No dia 5 de Julho, outro tema difícil: burocracia. Mais uma frase relacionada com a tropa (estava obcecado):

“É na caderneta militar que se colam os cromos dos soldadinhos…”

Ao reler tudo o que escrevi para o Pão, fico com uma grande vontade de fazer um apanhado dos melhores textos – talvez seja este o meu próximo projecto.
Mas, para estas Memórias, fico-me por algumas frases que inventei durante aqueles trinta e dois programas e das quais me orgulho:

“- Um urso polar não é nada de especial. Se ainda fosse um urso voar!…
- Um esquilo levezinho não passa de um esgrama…
- Mas afinal, o leão ruge ou pó de arroz?…
- Se o cachorro estiver quente, primeiro búfalo e depois come-lo.”
- Nunca diga “Vai-te lixar!” Diga: “Vai-te esmerilar!” – é mais técnico.
- Quando pintar a sua casa, dê a primeira demão, a segunda de pé e a terceira sentado.
- Deus escreve direito por linhas tortas. Deve ser difícil; por isso mesmo é Deus…
- De todas as linhas, as que eu prefiro são as Mane-linhas, as Car-linhas e as Pau-linhas…
- Um batoteiro faz 29 por uma linha.
- Mais difícil do que ler nas entrelinhas é escrever nas linhas, de modo a que se leia nas entrelinhas.
- Comemorar em Lisboa, é vulgar. Mas – como morar em Lisboa?
- Isto é areia demais para a minha camioneta! – exclamou o camionista contemplando a praia.
- No litoral, não se deve usar roupa interior.
- À hora do chá, use sempre tea-shirt”
- Se o burro tem quatro patas, a pata tem quatro burras?
- Albardar um burro é fácil; aldrabar um burro é ainda mais fácil.
- É curioso como há burros que entram pela porta do cavalo…
- Os GaLopes distinguem-se dos Garcias porque andam mais depressa.
- É preciso ser-se burro para se chatear por dá cá aquela palha..
- Os portos do mar é onde atracam os cavalos-marinhos. Ou melhor: os potros do mar é onde atarcam os bracos.
- Dois concursos e picos quantos concursos hípicos são?
- Sansão tinha toda a sua força nos cabelos. Foi isso que desiludiu Dalila.
- O provador de vinhos é o único profissional autorizado oficialmente a beber nas horas de serviço.
- Júlio César tinha sede de poder porque ainda não conhecia o gin tónico.
- Diana era a deusa da caça. Mais uma vez, a cedilha salvou a situação!
- Um quarto de casal, que parte do casal é?
- Mulheres e lustres dão à luz.
- Como dizem os ingleses: Sofá so good…
- Um apartamento de duas divisões é fácil de decorar. Um palacete de vinte divisões é mais difícil: um tipo já nem se lembra onde fica a casa de banho!
- Há quem crie fama e se deite na cama; há também quem crie fama porque se deita na cama…
- Tenha cuidado: um corpo celeste não tem nada a ver com o corpo da Celeste.
- E fique sabendo que o contrário de largo não é estreito – é ogral.
- Quando um homem se vira do avesso é uma vergonha – vê-se-lhe tudo…
- A diferença entra aranha e aranhiço é…iço.
- Numa equipa de futebol, o jogador mais abalizado é o guarda-redes
- Uma mulher que pratica ciclismo por prazer, é amadora ou reboleira?
- O caminho para a Índia era a rota das especiarias. O regresso era arrota às especiarias.
- Foi Diogo Cão quem disse: “Eu sou o melhor amigo do homem!”
- Primeiro, partiram as naus. Depois, deitaram os pedaços ao mar.
- Na boca não se beija uma mulher só. Na boca não se beija só uma mulher. Não se beija só uma mulher na boca.
- Quando vai ao hospital visitar o amigo que foi atropelado há dois dias, não deve utilizar a expressão: “Venham de lá esses ossos!”
- Sempre que há cumprimentos, as mãos metem-se em apertos.
- Uma carabina de repetição é uma carabina de repetição é uma carabina de repetição é…
- A galinha dos ovos de ouro tinha um rico rabo…
- Quando o céu é de chumbo, os aviões amolgam-se.
- Pedra preciosa foi a que David atirou a Golias.
- Era um vigarista tão requintado que vendeu gato por lebre e o freguês, quando chegou a casa com o frango, assou o peru, convidou os amigos e, ao provarem o pato, todos acharam que sabia a faisão”.

Esta é uma das selecções possíveis das centenas de frases que pari ao longo daqueles oito meses.
Cada programa rendia-me três contos, o que quer dizer que, nos meses de cinco semanas, recebia quinze contos do Pão Comanteiga enquanto, das gloriosas Forças Armadas, recebia pouco mais de oito contos por mês.
Mas, no dia 5 de Junho, com dois programas já emitidos, ainda não tinha recebido, naturalmente, nada do Pão Comanteiga e estávamos tesos – absolutamente tesos!
No caderninho, escrevi o seguinte:

“Estamos sem dinheiro. Não é a primeira vez que isto acontece, mas logo no princípio do mês, é muito grave. (…) Estou a tentar ganhar coragem para logo telefonar ao Carlos Cruz e pedir-lhe os seis contos dos dois programas que já elaborei. Esse dinheiro é-me devido e não deveria sentir tanto pejo em pedir-lho. No entanto, não sei como o hei-de fazer. É que temos apenas cerca de três contos dos quarenta e um que recebemos este mês. Mais dois que nos devem do infantário, ficamos com cerca de cinco contos até ao fim do mês, o que é impossível. Claro que podemos sempre pedir dinheiro emprestado a este ou àquele, mas isso sempre nos custou, ainda por cima agora, que até tenho a haver seis contos do programa e mais três da revista.
Este estúpido que agora escreve estas linhas, devia ter tido coragem de, ontem, ao longo das três horas que esteve em casa do manager do PcM, ter-lhe pedido a massa. Mas enconou-se. Afinal não passo de um tímido de merda!
Agora, estou decidido a telefonar ao CC e pedir-lhe a massa ainda hoje. Mas, muito provavelmente, não apanharei o homem em casa e ficarei de mãos a abanar.”

Claro que não apanhei o Carlos Cruz em casa, mas ele acabou por me pagar os programas, como sempre fez, certinho. E passou mais uma crise financeira.
Estas crises marcaram-me de tal modo que, desde sempre, entrego toda a responsabilidade das contas domésticas à Mila. Aliás, a minha falta de jeito para números vem do tempo em que tive três valores no exame de Matemática do 7º ano. Engano-me nas contas mesmo com a ajuda da máquina de calcular. Para passar um cheque, tenho que o preencher muito devagarinho, caso contrário sou bem capaz de colocar um zero a mais e de a quantia por extenso não ter nada a ver com os números.
A minha primeira visita à casa do Carlos foi no dia 18 de Abril. Foi lá que conheci o José Duarte, com quem desenvolvi uma relação curiosa; durante alguns anos, o Zé Duarte foi assim uma espécie de irmão mais velho. Com ele discuti a vida a fundo e muitas coisas nos uniam, além da colaboração nos vários programas do Carlos, que se manteve até 1995. A arritmia, por exemplo. Eu com as minhas extrassístoles – o Zé, com a fibrilhação auricular. Mas ele, depois de muitos sustos, acabou por deixar de fumar – o terceiro desertor que eu conheci. No entanto, quando o conheci, o Zé fumava por todos os lados. O Carlos também. O Mário Zambujal, idem. E o Joaquim Furtado, o Zé Fanha, o BBC. Aliás, o programa bem se podia chamar “Cigarros com manteiga”, por exemplo. No final de uma reunião, os cinzeiros abarrotavam de beatas. Ao longo do programa, a assistente ia despejando, de vez em quando, o cinzeiro. O Carlos também acabou por deixar os cigarros, mas manteve os charutos, pelo menos, até à última vez que o encontrei, no estádio nacional, pendurado num enorme charuto, aqui há uns anos, no espectáculo da Aída.
Voltarei ao Pão Comanteiga e à sua equipa, até porque a minha relação com o Carlos e os seus programas de rádio e televisão, e não só, se manteve durante mais catorze anos.
Mas, por agora, vamos a outros acontecimentos que marcaram a minha vida, nesse ano.
Em Julho, o senhorio do Algueirão, voltava à carga: queria mesmo a casa de volta, porque era emigrante, coitadinho, e não tinha outra casa para viver. Tínhamos quase a certeza de que tudo isto era uma mentira pegada, mas não havia como prová-la. Contactámos a Associação dos Inquilinos Lisbonenses e começámos a perceber que não devíamos ter sorte nenhuma. Apesar disso, ainda tentámos negar a evidência e, em Setembro, adoptávamos mais uma gata – a Panqueca, a tal maluca que fugia para o telhado e, depois, não sabia como descer.
Entretanto, o meu pai casa-se no dia 20 de Setembro. A segunda mulher do meu pai nunca me disse nada, como pessoa. Ignorei-a pura e simplesmente. Não posso dizer que, conscientemente, negasse ao meu pai o direito de ter uma nova companheira. Acreditem que nem pensei nisso: era-me indiferente.
No entanto, indiferente não foi para o meu irmão. O conflito do Paulo com o meu pai parece ter sido mais agudo do que o meu. O Paulo casou-se dois dias depois, ou dois dias antes – tanto faz. Namorava com a Guida já há uns tempos e o casamento do meu pai foi o pretexto para acelerarem o processo. Foram viver para um quarto alugado. Por pouco tempo, como a seu tempo esclarecerei…
Claro que o Pedrocas passou para a terceira classe e ingressou no colégio onde a Marta já andava. Ainda não foi a estabilidade para este estudante itinerante, mas foi bom enquanto durou. Integrou-se facilmente no Colégio Nossa Senhora da Conceição e, na festa de Natal, participou activamente, fazendo de anjo. Foi, talvez, uma vingança por não ter participado na procissão de Moimenta...


O Pedro e a Marta, no Algueirão, numa das suas brincadeiras preferidas: vestirem-se com roupas nossas. Lá atrás, a colecção de latas, ainda no início – a única que se mantém até hoje.

O nosso Natal, voltou a ser em família mas, desta vez, em casa dos Saraivas, pais do Jorge. Pontificava o Pão Comanteiga; portanto, organizei um sarau com a participação activa do Pedro e da Marta, que interpretaram alguns diálogos escritos por mim, relacionados com as prendas que trocámos.
E, finalmente, no dia 31 de Dezembro, terminava a merda da tropa!
Voltei a ser um cidadão civil.
Os dezoito meses que passei na instituição militar não me deixou uma única boa recordação. Por vezes, mesmo em situações extremas, o nosso optimismo leva-nos a encontrar sempre coisas boas. Na tropa, não houve nada de bom, nunca!
A não ser, talvez, as aulas de ballet…



Próximo capítulo: "A Psiquiatria (1982-1984"

 

Actualizado em: 10 Agosto 2003
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