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O Coiso
Memórias de um fumador
50 anos de história


24. A Psiquiatria (1982-1984)

Ao regressar à minha natural condição de cidadão civil, fui reintegrado na Função Pública e fiquei a aguardar o tal exame de saída de Internato e entrada na especialidade, no Hospital D. Estefânia. A Mila já ia no seu quinto ano de Internato de Policlínica – uma coisa que só devia durar dois anos, vejam bem! O dinheiro que o Estado poupou à custa desta manigância! De facto, se tivéssemos passado a internos de especialidade assim que tivéssemos terminado o internato de dois anos, subiríamos logo de categoria, o que corresponderia a um aumento razoável do ordenado. Assim, o Estado conseguiu milhares de médicos a preços módicos, cobriu a província toda a baixo custo e só cerca de quatro anos e meio depois de termos terminado o curso é que fizemos, finalmente, o tal exame.
Estudámos a sério para o exame, virámos o Harrison do avesso, fizemos várias revisões da matéria. Como o Harrison era em inglês, às tantas, já líamos aquilo como se fosse português corrente. Na véspera do exame fechámos o calhamaço depois de 890 horas de estudo. Estávamos preparados.
O exame foi a 22 de Maio. A Mila foi fazê-lo ao Gil Vicente, eu ao velho Camões. Da sede do Liceu Camões recordava-me do pátio central onde, nas tardes de Mocidade Portuguesa, alinhávamos por alturas e fazíamos a saudação fascista.
A Mocidade Portuguesa era mesmo uma grande treta! Não me lembro de quase nada: da farda idiota, com aqueles calções cor de caca e o bivaque pateta, e do hino (“Lá vamos, cantando e rindo, levados, levados sim!”) Éramos levados, não há dúvida… Mas, ou os meus instrutores não eram muito convincentes ou eu andava preocupado com outras coisas. A ida semanal às actividades da Mocidade Portuguesa era apenas uma maneira de passar o tempo e de, no fim das fantochadas para-militares, ficar no pátio do Camões a jogar à carica ou a fazer corridas com carrinhos – isto se o reitor, o famoso Totas – não aparecesse no varandim a mandar toda a gente embora, porque brincar, era uma coisa que o jovem adolescente daquela altura não era suposto fazer! Ainda me lembro de ter participado num 10 de Junho, no Estádio Nacional, vestindo a garbosa farda da Mocidade e marchar perante uma multidão de pais orgulhosos que, poucos anos depois, iriam andar pelas ruas a gritar “morte ao fascismo e a quem o apoiar!” Coisas…
O exame correu-nos muito bem. Das cem perguntas de resposta múltipla, a Mila acertou em 76 e eu em 64. Ficámos deslumbrados com as notas. A Mila foi mesmo uma das melhores classificadas da Faculdade de Lisboa (e éramos mais de mil candidatos!) e eu também não fiquei mal, talvez entre os duzentos primeiros, mais coisa menos coisa. Estas notas queriam dizer que poderíamos escolher, praticamente, qualquer especialidade.
E agora vem a explicação para a existência de milhares de portugueses sem médico de família. Praticamente não havia vagas para Clínica Geral: uma em Sintra, outra em Mafra, duas aqui, uma acolá – uma miséria. Nunca percebi a estratégia dos sucessivos Governos na área da saúde, simplesmente porque nunca houve nenhuma estratégia! Os Governos têm-se limitado a governar à vista, a aprovar medidas avulsas, que resolvem um problema e criam mais meia dúzia. O Estado nunca teve uma política concertada para a saúde, em Portugal. Agora, de repente, anda tudo muito aflito, porque os médicos actualmente no activo estão todos perto da reforma e porque não há quem os substitua e um médico demora muitos anos a formar. Então e é agora que dão por isso?… Depois do meu curso, que foi muito numeroso, com mais de mil inscritos, acho que ainda houve mais um curso numeroso e, depois, foi sempre a fechar a torneira, a apertar o numerus clausus cada vez mais, até se chegar a esta idiotice de se formarem cerca de cem médicos por ano, todos alunos brilhantes, com médias acima dos dezoito valores mas que, compreensivelmente, querem ser neurocirurgiões, cirurgiões plásticos ou outra coisa qualquer que os torne ricos no primeiro semestre de actividade – vocês estão a ver um aluno com média de dezanove a ir para Moimenta, dormir num quarto interior, em casa dos tios, com mais dez pessoas a viver na mesma casa, e depois ir mais um ano para Mourão, partilhar a casa com um colega quase desconhecido e passar as noites no Clube Mouranense, a jogar bilhar, quando pode começar a trabalhar para uma daquelas clínicas que tem também quotas no health club e uma joint venture com a companhia de seguros e desatar a fazer narizes novos e mamas maiores!…
Claro, é caricatura, mas é uma caricatura da realidade. Nós até queríamos ser clínicos gerais (e agora somos…) mas, terminado o exame, com notas boas, não tínhamos uma colocação que nos agradasse – a Mila em Sintra e eu em Mafra? Quando havia tantas vagas nas especialidades que também nos atraíam?
Resultado: a Mila foi para Pediatria e eu para Psiquiatria.
A Mila sempre gostara das consultas de Saúde Infantil, desde os tempos de Moimenta. Depois, o quarto e o quinto ano do internato, passou-o ela no Hospital pediátrico D. Estefânia e já tinha um traquejo razoável. Com uma nota daquelas, não quis deixar fugir a oportunidade de fazer uma especialidade.
Quanto a mim, a paixão pela Psiquiatria já vinha da faculdade, como relatei. E, naquela altura, angustiado como andava, com as minhas crises de pânico no auge fiz o que se diz que fazem todos os médicos que vão para Psiquiatria – escolhi essa especialidade a ver se me curava de vez!
Inscrevi-me, então, como interno da especialidade de Psiquiatria no Hospital Miguel Bombarda, que até fica ali perto da Estefânia – podíamos ir e vir juntos para o emprego…
No Bombarda, fiquei na equipa do Dr. Guilherme Ferreira e comecei o meu internato no dia 4 de Agosto, sob a orientação da Dra. Inês Silva Dias.
Aguentei-me até ao final de 1984. No início do ano seguinte, concorremos para Clínica Geral e, em Março de 1985, já estávamos na Unidade de Saúde do Monte de Caparica. Quando abandonei a Psiquiatria, um colega especialista, o Dr. Jacinto Nunes, resumiu a minha decisão de uma forma exemplar: “vieste ao cemitério, puseste as flores e foste-te embora…”
Mas estou a adiantar-me.
O internato de Psiquiatria até começou por ser aliciante. Tínhamos um curso teórico, durante o qual assisti a aulas muito interessantes dadas, por exemplo, pelo Professor Jaime Cortesão e pelo Dr. Bracinha Vieira. Aprendi muito sobre a história da Psiquiatria e a sua relação com a evolução do pensamento humano mas sempre achei que havia uma grande diferença entre aquilo que os mestres ensinavam e a sua prática do dia a dia. Chegava ao hospital por volta das 9 horas da manhã e só lá estavam os doentes, naturalmente, e os enfermeiros. Os médicos começavam a aparecer muito mais tarde e tentavam sair o mais depressa possível. O Bombarda funcionava quase como um asilo; os doentes crónicos, internados há décadas predominavam. Por esses doentes, não havia grande coisa a fazer – estavam institucionalizados, diziam-me. Fazia lembrar, um pouco, o “Voando sobre um ninho de cucos”, embora sem a graça do Nicholson. Quando aparecia um doente agudo, a coisa era um pouco diferente. Falava-se com o doente, ou melhor, estava-se com o doente que, muitas vezes, não estava nada interessado em falar connosco, nos ignorava ou se colocava numa atitude negativista, não respondendo às perguntas, ou respondendo ao lado. Terminada a consulta, escrevia-se a medicação na papeleta e o enfermeiro encarregava-se de lhe ministrar os neurolépticos da ordem. E o doente ia amaciando e, eventualmente, acabava por descobrir que, se queria ter alta, tinha que colaborar, dizer qualquer coisa, mostrar melhoras.
A equipa médica onde estive integrado tinha formação grupanalítica, influência do Professor Jaime Cortesão, que introduziu a grupanálise em Portugal. Mas, meus amigos, grupánalise com psicóticos, é mesmo “grupo”!
Mas eu tentei, juro que tentei. Juntamente com os outros internos, propusemos organizar uma reunião semanal com todos os doentes da enfermaria, onde estivessem presentes os doentes agudos e os “institucionalizados”, os enfermeiros e os médicos. Os especialistas acharam graça à ideia (já a deviam ter tido uns anos antes, quando ainda tinham ilusões) e apoiaram-na, mas nunca nenhum deles apareceu em nenhuma das nossas reuniões; só nós, os internos, os enfermeiros e os doentes. Essas reuniões foram, de facto, uma experiência penosa. Imaginem cerca de vinte doentes mentais sentados em círculo e, no meio, um ou dois médicos novinhos em folha e um enfermeiro. As regras que havíamos estabelecido determinavam que os técnicos só intervinham na discussão se para tal fossem solicitados pelos doentes – a reunião era-lhes destinada, era uma tentativa de mobilizar os crónicos, que passavam o dia a contemplar o vazio e a fumar cigarros. A coisa, por vezes, era difícil de suportar; chegávamos a estar uma reunião inteira em silêncio; ninguém dizia nada, olhavam uns para os outros, depois na nossa direcção, depois voltavam a contemplar o vazio – a única diferença é que estavam sentados em círculo. Por vezes, havia algum que dava uma gargalhadinha néscia e logo outro o molestava, mandando-o calar ou dando-lhe mesmo uma palmada. Se havia algum doente agudo acabado de chegar, ainda não suficientemente “anestesiado” pela medicação, a coisa podia tornar-se mais séria e, uma ou outra vez, ia havendo cenas de pugilato. Se algum doente se virava para um de nós e fazia alguma pergunta, o que era raro, respondíamos à psiquiatra, isto é, devolvendo a pergunta. Por exemplo:
Ele – O que estamos aqui a fazer?
Eu – O que acha que estamos aqui a fazer?
Ele – Posso ir-me embora?
Eu – Acha que pode ir-se embora?
Era arrasante! No dia daquelas reuniões, ficava exausto. Claro que a experiência acabou, já nem me lembro como. E ninguém ficou muito preocupado. Nós, técnicos, ficámos aliviados e os doentes ficaram, como sempre, indiferentes. Mas, para mim, algo soube a fracasso. Então, não valia mesmo a pena fazer nada?
O trabalho no hospital era, pois, desesperante. Valia a consulta que fazíamos, semanalmente, em Sintra. Durante os primeiros meses, limitava-me a acompanhar a Dra. Inês e a assistir às consultas, que decorriam num anexo qualquer dos já extintos Serviços Médico-Sociais. Os doentes vinham de todo o concelho de Sintra, e eram-nos referenciados pelos clínicos gerais da zona, ou eram doentes que já tinham estado internados no Bombarda e iam à consulta de acompanhamento da sua situação. Passados alguns meses, a Dra. Inês achou que eu estava capaz de fazer esse tipo de consultas e passei a ir, sozinho a Sintra. Essa consulta dava-me gozo porque estava mais perto dos doentes, estabelecia com eles uma boa relação, sentia que os podia ajudar e as patologias que apareciam eram mais leves, neuroses, depressões, apenas um ou outro caso de psicose. Lembro-me de um caso curioso de um indivíduo que tinha ido trabalhar para a Líbia, para qualquer coisa relacionada com o petróleo e, ao chegar lá, foi acometido por uma baforada delirante, começou a ouvir vozes e a ter visões; alguém pegou nele e o enfiou no avião de regresso. Esteve internado no Bombarda durante uns tempos e estava óptimo – tudo havia passado. A experiência de abandono da família e de ir para uma terra estranha, com hábitos e costumes tão diferentes, causou-lhe tamanho stress que o tipo descompensou. Teve sorte de o coronel Khadaffi não ter tido conhecimento do seu caso; podia muito bem ser, agora, o novo ministro líbio do petróleo, no mínimo.
Outra coisa que me causava grande angústia era o serviço de urgência. Eram 24 horas consecutivas de serviço. Durante a manhã, um tipo ainda se sentia acompanhado porque sabia que, se aparecesse algum caso mais complicado, podia sempre pedir ajuda. Mas, a partir do meio dia e até à manhã seguinte, ficávamos por nossa conta, apenas com o apoio – imprescindível, diga-se – do enfermeiro de serviço. O médico tinha um quarto, anexo à Urgência. Ali ficava eu, todo o dia, lendo ou ouvindo música ou angustiando-me, ou tudo ao mesmo tempo, esperando que o telefone tocasse e, do outro lado, o enfermeiro informasse: “Doutor, chegou um…” E, às vezes, chegava um doente com agitação psico-motora. Segurá-los era um trabalho ciclópico só conseguido graças à força dos auxiliares, que eram sempre uns calmeirões escolhidos a dedo. O diálogo com esse tipo de doentes era, a maior parte das vezes, impossível, pelo que a receita era sempre a mesma: “Sr. enfermeiro, dê-lhe dois Bês, dois Éles e dois Esses”, que era um cocktail formado por bialzepan, largactil e serenelfi, em partes iguais, suficiente para me por a dormir durante quinze dias mas que, naquelas agitações, se limitava a acalmar o sujeito ligeiramente.
Mas o trabalho da enfermaria era um deserto. Quando não havia doentes agudos recém-internados e não era dia de consulta em Sintra, passava as manhãs no hospital, a olhar para o tecto, como os doentes. Bom, estou a exagerar, claro. Aproveitava para escrever para o Pão Comanteiga e para estudar o Manuel, como eu lhe chamava e que era o livro de texto básico da especialidade – “Manuel de Psychiatrie”, do Henri Ey.
Foi a Ana, no tempo da Anatomia, e o Manuel no da Psiquiatria...
Pois o Manuel ensinou-me muito sobre Psiquiatria. E eu, angustiado com as minhas angústias, devorava-o, à procura do meu diagnóstico. Daí que os textos intimistas que escrevia nos caderninhos tivessem, então, um verniz, digamos, psicanalítico. Um exemplo, de 30 de Agosto:

“Agora que leio o “Livro do Desassossego”, do Fernando Pessoa e hoje, após uma crise de angústia, após mais uma conversa psicanalítica com a Mila até à uma da manhã, apetece-me escrever mas não sei bem o quê.
O livro do Pessoa ressuma tanta angústia, ansiedade e, depois, depressão, tantos sentimentos que se aproximam dos meus que, ao lê-lo, dá-me vontade de descrever os meus próprios medos e angústias de um modo, digamos, mais literário. No entanto, essas descrições seriam obrigatoriamente menos “reais”. Talvez que as minhas crises sejam isso mesmo – crises, que não permitem discernimento, nem para verificar que as sensações que me tolhem não são reais, quanto mais para escrever em lindo e gostoso cursivo que tenho medo de morrer, que me sinto mal dentro deste corpo. Por outro lado, entre as crises, como agora, não sinto necessidade dos escritos confessionais e, quando os escrevo, admiro-me depois de os ter escrito.
Estou a ler, também, os “Efeitos Secundários”, do Woody Allen e tenho uma vontade mais forte de escrever aquele tipo de textos, cheios de non-sense, mas que nem de longe cheiram à ansiedade, solidão e vazio do “Livro do Desassossego”. Talvez eu tenha medo desse vazio e o queira preencher com textos humorísticos. Talvez…”

Uma ova! O que eu tinha mesmo era uma perturbação de pânico, não diagnosticada e não tratada e os textos humorísticos não eram para preencher vazio nenhum – escrevia-os porque me dava gozo. Mais tarde, escrevi-os porque precisava do dinheiro. Quanto às angústias e depressões – sabia vivê-las mas não as sabia descrever. Para isso, temos o Fernando Pessoa…
Mas enfim, eu sou um gajo cheio de contradições. Mesmo à rasca, com o coração a bater válvulas, absolutamente convencido de que ia morrer em breve (durante algum tempo acreditei que não passaria dos trinta!), não deixava de brincar, sempre que podia. Reparem neste texto, de 11 de Setembro de 1982:

“Na semana passada, tudo correu bem. A Mila esteve de Banco todo o dia – tudo bem, até chegar à cama. Comecei por ler até ás duas da manhã. Depois, deitei-me e senti a angústia do costume, dei as habituais voltas e, quando começava a adormecer, senti-me invadido por insectos. E era verdade: formigas que, talvez buscando o doce do meu corpo suado (isto é bonito!), desataram a subir pela cama acima e a formigarem sobre mim. Eram, portanto, três da manhã, andava eu matando formigas. Nova tentativa para dormir e chegou a vez das melgas. Eram duas. Matei-as separadamente, com intervalo para mais algumas voltas na cama. Morta a última melga, sobreveio a fome. Como ou não como? Acabei por comer bolachas e fumar um cigarro. Não sei dizer se então, cinco e tal da madrugada, tinha sono ou não, mas lembro-me de que estava a encarar a hipótese de me levantar e esperar pela Mila. Foi então que apareceu o Pedro, com uma epistaxis. Feitos o tamponamento e a limpeza, lembro-me de ter visto as horas: seis. Depois, devo ter adormecido instantaneamente.”

Os caderninhos escritos entre 1982 e 1984 estão cheios de textos que descrevem crises de angústia nos mais variados sítios por onde passei. São todos tão semelhantes que quem ler um, lê todos. A única diferença reside nos termos utilizados, cada vez mais psiquiátricos. Mas a Psiquiatria não iria durar por muito tempo…
E, no entanto, em termos profissionais, os dois anos de internato de Psiquiatria não podiam ter corrido melhor. As minhas relações com os membros mais velhos da equipa médica eram óptimas, não só com a Dra. Inês, mas também com o Dr. Jacinto Nunes, o Dr. João Seinfelt e o Dr. Guilherme Ferreira. O meu trabalho era apreciado e, por isso mesmo, tive 19 valores, tanto no primeiro como no segundo ano do internato. Apresentei diversas histórias clínicas em reuniões de serviço, que foram sempre muito elogiadas, quer por estarem bem elaboradas, quer por estarem bem redigidas. Mas comecei a ficar farto. Podia muito bem acabar a especialidade e abrir consultório e aturar neuróticas o resto da minha vida. Um bom psiquiatra, safa-se bem. Mas nunca tive jeito para negócio nenhum, muito menos para ganhar dinheiro com a doença dos outros. Além disso, culpava, em parte, a Psiquiatria e o stress que ela envolvia, pelo agravamento da minha angústia. Eu, que tinha inventado para mim próprio um linfoma quando frequentava as aulas de Histologia, começava agora a inventar diversas doenças mentais para explicar os meus sintomas…
Como já disse, todos os especialistas da minha equipa tinham formação analítica. No entanto, eu punha um bocado em causa a obrigatoriedade de se ser um discípulo de Freud para poder ser um bom psiquiatra. Reli os livros do Ronald Laing e do David Cooper. Também na altura, lera um livro muito interessante do Thomas Szazz, chamado “Esquizofrenia – o mito sagrado da psiquiatria”, que me marcou muito. O sacana do livro desapareceu. Não sei se o emprestei a alguém, mas tenho uma vaga ideia de que o fiz. Como se costuma dizer, nunca se emprestam mulheres e livros; se forem bons, raramente serão devolvidos. Foi o que aconteceu com esse, pelos vistos. Se bem me lembro, a teoria do Thomas Szazz era mais ou menos esta: perante a incapacidade da Medicina em curar, de facto, as doenças, os seus grandes investigadores e pensadores, sempre tentaram explicar tudo através de grandes patologias. Explico melhor: se um doente vem à consulta e se queixa de dores de cabeça, tonturas, perda de memória, zumbidos, sensação de desmaio e pés inchados, eu vou tentar enquadrar todos estes sintomas num único diagnóstico, porque assim me foi ensinado – é raro uma só pessoa sofrer de duas ou mais patologias novas simultaneamente; é nossa obrigação, como médicos, tentar encontrar um diagnóstico que englobe todas as queixas, porque isso é o mais comum. Na perspectiva de Szazz, tudo começou com a sífilis que, antes da descoberta da penicilina, dizimou uma boa parte da população mundial e que, embora começasse por uma “simples” infecção, acabava por se generalizar e não havia órgão ou sistema que lhe escapasse, incluindo o sistema nervoso central. A descoberta da penicilina fez com que a Medicina controlasse a sífilis, mas esta logo foi substituída pela tuberculose que, mais uma vez, era uma doença que podia atingir qualquer órgão ou sistema. Portanto, segundo Szazz, quando os homens da Medicina não sabiam explicar a doença de um determinado doente, encontravam, primeiro na sífilis, depois na tuberculose, a Grande Explicação para tudo. Então, o autor estabelecia o paralelo com a esquizofrenia, que estaria para a Psiquiatria como a sífilis e a tuberculose estavam para a Medicina. Incapazes de explicar por que razão um indivíduo começava a delirar, a ouvir vozes, a comunicar com seres incríveis, a utilizar palavras que nunca ninguém ouviu, a ver inimigos em todos os cantos, incapazes de ajudar essas pessoas, de lhes diagnosticar um mal determinado, os psiquiatras socorriam-se da esquizofrenia, que não seria, afinal, uma doença, mas um mito – a Grande Explicação da doença mental.
Muito curiosa, esta teoria – e peço desculpa ao autor se a estou a deturpar, mas não sei onde está o livro e estou a escrever tudo isto de memória! E mais curiosa se torna quando reparamos que a sífilis é uma doença de transmissão sexual e a tuberculose, embora não o seja exclusivamente, assim era considerada no início; todos se lembram que a tuberculose – ou a tísica – era conotada com a má vida, a prostituição, a deficiente alimentação, as noites mal dormidas, os maus costumes, enfim. E eis que, quando parecia que a Medicina tinha conseguido dominar, quer a sífilis, quer a tuberculose, surge a Sida, também ela uma doença global, à qual não escapa qualquer órgão ou sistema, também ela uma doença relacionada com o sexo e os “maus costumes”. O irónico de tudo isto é que, séculos atrás, os europeus deram novos mundos ao mundo e exportaram a sífilis para o continente africano, dizimando populações inteiras. A Sida parece ter feito o percurso inverso, para dizimar o mundo ocidental.
O Thomas Szazz também não ia muito à bola com o Freud. Dizia que, se o Freud tivesse registado a psicanálise como marca registada, teria morrido hiper-milionário, tal como o inventor da Coca Cola. Considerava, portanto, que o Freud tinha inventado a psicanálise que, tal como a Coca Cola, não serve para nada – mas quem pode viver sem uma ou outra?
Hoje em dia, as ideias do Freud estão em toda a parte e não há ignorante, analfabeto ou iliterato que não diga que está “traumatizado” com isto ou com aquilo!
Sinceramente, não me apetece alongar mais este assunto, porque estas não são as memórias do Szazz, nem tão pouco do Freud. Toda esta conversa serviu só para dizer que não estava com muita vontade de me submeter a uma psicanálise, não achava que isso fosse essencial para a minha vida profissional e, confessemos, não tinha dinheiro. Três sessões por semana durante não sei quantos anos, convenhamos que sai mais caro dar cabo de um complexo de Édipo mal resolvido do que alimentar um burro a pão de ló!
Quando acabei o meu curso, entusiasmado como estava com a Psiquiatria, escrevi uma carta à Sociedade Portuguesa de Psicanálise, perguntando como é que um recém licenciado poderia obter treino nessa área. Eu não sabia nada de psicanálise; durante o curso de Medicina, ninguém nos tinha falado nisso. Responderam-me que teria que contactar com um dos elementos da Sociedade, fazer a minha própria psicanálise e, só depois, poderia estar, eventualmente, apto a exercer a minha actividade. Está bem! Se eu não tinha dinheiro para pagar as minhas dívidas, onde iria eu arranjar a massa para fazer a minha psicanálise?…
Bom, como interno de Psiquiatria, já ganhava um pouco melhor (cerca de vinte e cinco contos) e, com a ajuda do dinheiro que ganhava no Pão, o ordenado, ao fim do mês, já não era tão mau como isso. No entanto, a pouca massa que sobrava, depois de pagas as despesas obrigatórias, serviam para outros prazeres, pequenos prazeres, digamos, livros e discos. Aliás, neste particular, andava a recuperar o tempo perdido, digamos assim, comprando todos os discos dos Beatles que ainda não tinha, bem como os dos Pink Floyd, alguns dos Rolling Stones, Jethro Tull, bem como os desse grande fumador chamado Tom Waits, que me foi dado a conhecer pela malta do Pão Comanteiga, e com quem estabeleci uma relação cúmplice, que se mantém muito forte, apesar do rapaz já não lançar nenhum disco novo há alguns anos. Portanto, nunca me passou pela cabeça juntar o pouco dinheiro que me sobrava ao fim do mês para o ir entregar a um qualquer psicanalista que me ajudasse a perceber as minhas crises de angústia.
Ninguém da minha equipa me pressionou para que eu fizesse grupanálise ou psicanálise, mas iam dizendo, quando calhava, que eu não fazia nada disso porque tinha resistências inconscientes, o que só provava que precisava mesmo de uma terapia dessas. Pois. Acabei por fazê-la, talvez, com os meus escritos e com a Mila. Saiu-me mais barato e diverti-me muito mais.
Aqui está outro exemplo dessa auto-análise, sob a forma de mais um texto num dos caderninho, datado de Maio de 1984:

“Atenção: parte importante, que deve ser lida sempre que esteja em crise, por muitos e bons anos – penso e tenho quase a certeza de que continuarei a ser assim pela vida fora e, embora receie que o meu “eu” não aguente e que, mais tarde ou mais cedo, estoire, sei, sinto, que isso não vai acontecer; a minha força é a minha fraqueza, é a minha fragilidade, que me permite ter as barreiras abertas e ser generoso e tolerante, o meu desequilíbrio é que me permite entusiasmar-me com quase tudo e não me prender a quase nada. A minha imaginação criadora, incessante há mais de dez anos, vem exactamente daí, dessa angústia, deste borbulhar incessante do meu cérebro, destas incertezas, angústias, desesperos, depressões, extrassístoles, e tudo o mais que me corrói e me obriga a reconstruir-me em cada dia. Sozinho. Sem analista, sem grupo, procurando nas palavras da Mila, no ansiolítico, nas páginas dos caderninhos, no gin tónico, nos livros, nos discos, na rádio, na televisão, no cinema, na psiquiatria, em tudo, procurando-me em tudo, juntando os bocados em que me desfaço em cada crise!”

Lindo! Mais uma vez, só não me escangalho a rir porque me lembro perfeitamente do que sofria naqueles tempos…
Mas, apesar de toda a ingenuidade destas palavras, continuo a pensar o mesmo. Há bem pouco tempo, li uma entrevista com o David Lynch, em que ele dizia que tinha ido, uma única vez, a uma consulta com um psicoterapeuta e lhe perguntou que, caso se sujeitasse a um tratamento, se a sua “imaginação” sofreria alguma alteração significativa. Perante a resposta afirmativa do psicoterapeuta, o David Lynch desistiu de fazer qualquer tipo de tratamento.
No final de 1984, estava no terceiro ano do meu internato de especialidade, a frequentar um estágio de seis meses de Saúde Mental, no Hospital Júlio de Matos e as coisas não podiam correr pior. Por um lado, o estágio desagradava-me profundamente: todas as manhãs me arrastava para a famosa Casa Amarela e esperava horas até que alguém aparecesse; depois, assistia a meia dúzia de consultas, sobretudo de crianças epilépticas e era tudo. Uma vez por semana, era a tortura das 24 horas de serviço de urgência no Bombarda. Paralelamente, tinha suspendido a minha colaboração com o Carlos Cruz (o Pão Comanteiga tinha acabado) e estava, então, a colaborar com o Júlio Isidro, o que não me estava a agradar, embora fosse bem pago. Finalmente, o internato da Mila, em Pediatria, durava mais um ano que o meu (cinco e quatro anos, respectivamente). E a falta de estratégia do Governo na área da saúde continuava. Quando eu terminasse o internato – um ano antes da Mila – iria fazer o quê? As vagas hospitalares disponíveis eram todas longe de Lisboa. Escolheria eu, novamente, uma vaga num cu de judas qualquer, esperando que, um ano depois, a Mila conseguisse uma vaga também nesse mesmo cu de judas? Novamente um ano separados? Depois de termos tentado quase tudo para ficar a trabalhar na província e termos sido quase obrigado a regressar à capital, saltávamos, novamente, para a periferia? E os miúdos, sobretudo o Pedro, ia voltar à dança das escolas?
A todas estas perguntas, nós não tínhamos resposta.
Até que, no primeiro dia de 1985, fomos almoçar à Costa da Caparica e, no restaurante, reencontrámos um casal de colegas que não víamos há muito tempo. Ambos frequentavam, também, uma especialidade, ambos andavam desiludidos e ambos tinham decidido concorrer para Clínica Geral, aproveitando as vagas que iam abrir em breve e que, pela primeira vez – a exemplo do que acontecia com os professores – contemplavam os casais, quer dizer, um casal de médicos podia concorrer para vagas no mesmo Centro de Saúde, apresentando, como nota, a média das notas finais de curso dos dois elementos do casal. Ora, nós tínhamos ambos, como média final de curso, quinze valores – parecia haver uma boa possibilidade de ficarmos colocados no mesmo Centro de Saúde, perto do nosso local de residência que, nessa altura, já era Almada.
A Mila não estava desiludida com o seu internato. A Pediatria tinha-lhe trazido, para além de uma prática médica excelente, algumas gratificações profissionais. Mas, também ela temia que nos tivéssemos que separar novamente.
Concorremos para Clínica Geral.
Foi a grande decisão de 1985.
Em Março, já estávamos a trabalhar na Unidade de Saúde do Monte de Caparica.
Até hoje…

 

 


 

 





 

 

 



Próximo capítulo: "A Pantufa" (1982)

 

Actualizado em: 23 Agosto 2003
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