24. A Psiquiatria (1982-1984)
Ao regressar à minha natural condição
de cidadão civil, fui reintegrado na Função
Pública e fiquei a aguardar o tal exame de saída
de Internato e entrada na especialidade, no Hospital D.
Estefânia. A Mila já ia no seu quinto ano de
Internato de Policlínica – uma coisa que só
devia durar dois anos, vejam bem! O dinheiro que o Estado
poupou à custa desta manigância! De facto,
se tivéssemos passado a internos de especialidade
assim que tivéssemos terminado o internato de dois
anos, subiríamos logo de categoria, o que corresponderia
a um aumento razoável do ordenado. Assim, o Estado
conseguiu milhares de médicos a preços módicos,
cobriu a província toda a baixo custo e só
cerca de quatro anos e meio depois de termos terminado o
curso é que fizemos, finalmente, o tal exame.
Estudámos a sério para o exame, virámos
o Harrison do avesso, fizemos várias revisões
da matéria. Como o Harrison era em inglês,
às tantas, já líamos aquilo como se
fosse português corrente. Na véspera do exame
fechámos o calhamaço depois de 890 horas de
estudo. Estávamos preparados.
O exame foi a 22 de Maio. A Mila foi fazê-lo ao Gil
Vicente, eu ao velho Camões. Da sede do Liceu Camões
recordava-me do pátio central onde, nas tardes de
Mocidade Portuguesa, alinhávamos por alturas e fazíamos
a saudação fascista.
A Mocidade Portuguesa era mesmo uma grande treta! Não
me lembro de quase nada: da farda idiota, com aqueles calções
cor de caca e o bivaque pateta, e do hino (“Lá
vamos, cantando e rindo, levados, levados sim!”) Éramos
levados, não há dúvida… Mas,
ou os meus instrutores não eram muito convincentes
ou eu andava preocupado com outras coisas. A ida semanal
às actividades da Mocidade Portuguesa era apenas
uma maneira de passar o tempo e de, no fim das fantochadas
para-militares, ficar no pátio do Camões a
jogar à carica ou a fazer corridas com carrinhos
– isto se o reitor, o famoso Totas – não
aparecesse no varandim a mandar toda a gente embora, porque
brincar, era uma coisa que o jovem adolescente daquela altura
não era suposto fazer! Ainda me lembro de ter participado
num 10 de Junho, no Estádio Nacional, vestindo a
garbosa farda da Mocidade e marchar perante uma multidão
de pais orgulhosos que, poucos anos depois, iriam andar
pelas ruas a gritar “morte ao fascismo e a quem o
apoiar!” Coisas…
O exame correu-nos muito bem. Das cem perguntas de resposta
múltipla, a Mila acertou em 76 e eu em 64. Ficámos
deslumbrados com as notas. A Mila foi mesmo uma das melhores
classificadas da Faculdade de Lisboa (e éramos mais
de mil candidatos!) e eu também não fiquei
mal, talvez entre os duzentos primeiros, mais coisa menos
coisa. Estas notas queriam dizer que poderíamos escolher,
praticamente, qualquer especialidade.
E agora vem a explicação para a existência
de milhares de portugueses sem médico de família.
Praticamente não havia vagas para Clínica
Geral: uma em Sintra, outra em Mafra, duas aqui, uma acolá
– uma miséria. Nunca percebi a estratégia
dos sucessivos Governos na área da saúde,
simplesmente porque nunca houve nenhuma estratégia!
Os Governos têm-se limitado a governar à vista,
a aprovar medidas avulsas, que resolvem um problema e criam
mais meia dúzia. O Estado nunca teve uma política
concertada para a saúde, em Portugal. Agora, de repente,
anda tudo muito aflito, porque os médicos actualmente
no activo estão todos perto da reforma e porque não
há quem os substitua e um médico demora muitos
anos a formar. Então e é agora que dão
por isso?… Depois do meu curso, que foi muito numeroso,
com mais de mil inscritos, acho que ainda houve mais um
curso numeroso e, depois, foi sempre a fechar a torneira,
a apertar o numerus clausus cada vez mais, até se
chegar a esta idiotice de se formarem cerca de cem médicos
por ano, todos alunos brilhantes, com médias acima
dos dezoito valores mas que, compreensivelmente, querem
ser neurocirurgiões, cirurgiões plásticos
ou outra coisa qualquer que os torne ricos no primeiro semestre
de actividade – vocês estão a ver um
aluno com média de dezanove a ir para Moimenta, dormir
num quarto interior, em casa dos tios, com mais dez pessoas
a viver na mesma casa, e depois ir mais um ano para Mourão,
partilhar a casa com um colega quase desconhecido e passar
as noites no Clube Mouranense, a jogar bilhar, quando pode
começar a trabalhar para uma daquelas clínicas
que tem também quotas no health club e uma joint
venture com a companhia de seguros e desatar a fazer narizes
novos e mamas maiores!…
Claro, é caricatura, mas é uma caricatura
da realidade. Nós até queríamos ser
clínicos gerais (e agora somos…) mas, terminado
o exame, com notas boas, não tínhamos uma
colocação que nos agradasse – a Mila
em Sintra e eu em Mafra? Quando havia tantas vagas nas especialidades
que também nos atraíam?
Resultado: a Mila foi para Pediatria e eu para Psiquiatria.
A Mila sempre gostara das consultas de Saúde Infantil,
desde os tempos de Moimenta. Depois, o quarto e o quinto
ano do internato, passou-o ela no Hospital pediátrico
D. Estefânia e já tinha um traquejo razoável.
Com uma nota daquelas, não quis deixar fugir a oportunidade
de fazer uma especialidade.
Quanto a mim, a paixão pela Psiquiatria já
vinha da faculdade, como relatei. E, naquela altura, angustiado
como andava, com as minhas crises de pânico no auge
fiz o que se diz que fazem todos os médicos que vão
para Psiquiatria – escolhi essa especialidade a ver
se me curava de vez!
Inscrevi-me, então, como interno da especialidade
de Psiquiatria no Hospital Miguel Bombarda, que até
fica ali perto da Estefânia – podíamos
ir e vir juntos para o emprego…
No Bombarda, fiquei na equipa do Dr. Guilherme Ferreira
e comecei o meu internato no dia 4 de Agosto, sob a orientação
da Dra. Inês Silva Dias.
Aguentei-me até ao final de 1984. No início
do ano seguinte, concorremos para Clínica Geral e,
em Março de 1985, já estávamos na Unidade
de Saúde do Monte de Caparica. Quando abandonei a
Psiquiatria, um colega especialista, o Dr. Jacinto Nunes,
resumiu a minha decisão de uma forma exemplar: “vieste
ao cemitério, puseste as flores e foste-te embora…”
Mas estou a adiantar-me.
O internato de Psiquiatria até começou por
ser aliciante. Tínhamos um curso teórico,
durante o qual assisti a aulas muito interessantes dadas,
por exemplo, pelo Professor Jaime Cortesão e pelo
Dr. Bracinha Vieira. Aprendi muito sobre a história
da Psiquiatria e a sua relação com a evolução
do pensamento humano mas sempre achei que havia uma grande
diferença entre aquilo que os mestres ensinavam e
a sua prática do dia a dia. Chegava ao hospital por
volta das 9 horas da manhã e só lá
estavam os doentes, naturalmente, e os enfermeiros. Os médicos
começavam a aparecer muito mais tarde e tentavam
sair o mais depressa possível. O Bombarda funcionava
quase como um asilo; os doentes crónicos, internados
há décadas predominavam. Por esses doentes,
não havia grande coisa a fazer – estavam institucionalizados,
diziam-me. Fazia lembrar, um pouco, o “Voando sobre
um ninho de cucos”, embora sem a graça do Nicholson.
Quando aparecia um doente agudo, a coisa era um pouco diferente.
Falava-se com o doente, ou melhor, estava-se com o doente
que, muitas vezes, não estava nada interessado em
falar connosco, nos ignorava ou se colocava numa atitude
negativista, não respondendo às perguntas,
ou respondendo ao lado. Terminada a consulta, escrevia-se
a medicação na papeleta e o enfermeiro encarregava-se
de lhe ministrar os neurolépticos da ordem. E o doente
ia amaciando e, eventualmente, acabava por descobrir que,
se queria ter alta, tinha que colaborar, dizer qualquer
coisa, mostrar melhoras.
A equipa médica onde estive integrado tinha formação
grupanalítica, influência do Professor Jaime
Cortesão, que introduziu a grupanálise em
Portugal. Mas, meus amigos, grupánalise com psicóticos,
é mesmo “grupo”!
Mas eu tentei, juro que tentei. Juntamente com os outros
internos, propusemos organizar uma reunião semanal
com todos os doentes da enfermaria, onde estivessem presentes
os doentes agudos e os “institucionalizados”,
os enfermeiros e os médicos. Os especialistas acharam
graça à ideia (já a deviam ter tido
uns anos antes, quando ainda tinham ilusões) e apoiaram-na,
mas nunca nenhum deles apareceu em nenhuma das nossas reuniões;
só nós, os internos, os enfermeiros e os doentes.
Essas reuniões foram, de facto, uma experiência
penosa. Imaginem cerca de vinte doentes mentais sentados
em círculo e, no meio, um ou dois médicos
novinhos em folha e um enfermeiro. As regras que havíamos
estabelecido determinavam que os técnicos só
intervinham na discussão se para tal fossem solicitados
pelos doentes – a reunião era-lhes destinada,
era uma tentativa de mobilizar os crónicos, que passavam
o dia a contemplar o vazio e a fumar cigarros. A coisa,
por vezes, era difícil de suportar; chegávamos
a estar uma reunião inteira em silêncio; ninguém
dizia nada, olhavam uns para os outros, depois na nossa
direcção, depois voltavam a contemplar o vazio
– a única diferença é que estavam
sentados em círculo. Por vezes, havia algum que dava
uma gargalhadinha néscia e logo outro o molestava,
mandando-o calar ou dando-lhe mesmo uma palmada. Se havia
algum doente agudo acabado de chegar, ainda não suficientemente
“anestesiado” pela medicação,
a coisa podia tornar-se mais séria e, uma ou outra
vez, ia havendo cenas de pugilato. Se algum doente se virava
para um de nós e fazia alguma pergunta, o que era
raro, respondíamos à psiquiatra, isto é,
devolvendo a pergunta. Por exemplo:
Ele – O que estamos aqui a fazer?
Eu – O que acha que estamos aqui a fazer?
Ele – Posso ir-me embora?
Eu – Acha que pode ir-se embora?
Era arrasante! No dia daquelas reuniões, ficava exausto.
Claro que a experiência acabou, já nem me lembro
como. E ninguém ficou muito preocupado. Nós,
técnicos, ficámos aliviados e os doentes ficaram,
como sempre, indiferentes. Mas, para mim, algo soube a fracasso.
Então, não valia mesmo a pena fazer nada?
O trabalho no hospital era, pois, desesperante. Valia a
consulta que fazíamos, semanalmente, em Sintra. Durante
os primeiros meses, limitava-me a acompanhar a Dra. Inês
e a assistir às consultas, que decorriam num anexo
qualquer dos já extintos Serviços Médico-Sociais.
Os doentes vinham de todo o concelho de Sintra, e eram-nos
referenciados pelos clínicos gerais da zona, ou eram
doentes que já tinham estado internados no Bombarda
e iam à consulta de acompanhamento da sua situação.
Passados alguns meses, a Dra. Inês achou que eu estava
capaz de fazer esse tipo de consultas e passei a ir, sozinho
a Sintra. Essa consulta dava-me gozo porque estava mais
perto dos doentes, estabelecia com eles uma boa relação,
sentia que os podia ajudar e as patologias que apareciam
eram mais leves, neuroses, depressões, apenas um
ou outro caso de psicose. Lembro-me de um caso curioso de
um indivíduo que tinha ido trabalhar para a Líbia,
para qualquer coisa relacionada com o petróleo e,
ao chegar lá, foi acometido por uma baforada delirante,
começou a ouvir vozes e a ter visões; alguém
pegou nele e o enfiou no avião de regresso. Esteve
internado no Bombarda durante uns tempos e estava óptimo
– tudo havia passado. A experiência de abandono
da família e de ir para uma terra estranha, com hábitos
e costumes tão diferentes, causou-lhe tamanho stress
que o tipo descompensou. Teve sorte de o coronel Khadaffi
não ter tido conhecimento do seu caso; podia muito
bem ser, agora, o novo ministro líbio do petróleo,
no mínimo.
Outra coisa que me causava grande angústia era o
serviço de urgência. Eram 24 horas consecutivas
de serviço. Durante a manhã, um tipo ainda
se sentia acompanhado porque sabia que, se aparecesse algum
caso mais complicado, podia sempre pedir ajuda. Mas, a partir
do meio dia e até à manhã seguinte,
ficávamos por nossa conta, apenas com o apoio –
imprescindível, diga-se – do enfermeiro de
serviço. O médico tinha um quarto, anexo à
Urgência. Ali ficava eu, todo o dia, lendo ou ouvindo
música ou angustiando-me, ou tudo ao mesmo tempo,
esperando que o telefone tocasse e, do outro lado, o enfermeiro
informasse: “Doutor, chegou um…” E, às
vezes, chegava um doente com agitação psico-motora.
Segurá-los era um trabalho ciclópico só
conseguido graças à força dos auxiliares,
que eram sempre uns calmeirões escolhidos a dedo.
O diálogo com esse tipo de doentes era, a maior parte
das vezes, impossível, pelo que a receita era sempre
a mesma: “Sr. enfermeiro, dê-lhe dois Bês,
dois Éles e dois Esses”, que era um cocktail
formado por bialzepan, largactil e serenelfi, em partes
iguais, suficiente para me por a dormir durante quinze dias
mas que, naquelas agitações, se limitava a
acalmar o sujeito ligeiramente.
Mas o trabalho da enfermaria era um deserto. Quando não
havia doentes agudos recém-internados e não
era dia de consulta em Sintra, passava as manhãs
no hospital, a olhar para o tecto, como os doentes. Bom,
estou a exagerar, claro. Aproveitava para escrever para
o Pão Comanteiga e para estudar o Manuel, como eu
lhe chamava e que era o livro de texto básico da
especialidade – “Manuel de Psychiatrie”,
do Henri Ey.
Foi a Ana, no tempo da Anatomia, e o Manuel no da Psiquiatria...
Pois o Manuel ensinou-me muito sobre Psiquiatria. E eu,
angustiado com as minhas angústias, devorava-o, à
procura do meu diagnóstico. Daí que os textos
intimistas que escrevia nos caderninhos tivessem, então,
um verniz, digamos, psicanalítico. Um exemplo, de
30 de Agosto:
“Agora que leio o “Livro do Desassossego”,
do Fernando Pessoa e hoje, após uma crise de angústia,
após mais uma conversa psicanalítica com a
Mila até à uma da manhã, apetece-me
escrever mas não sei bem o quê.
O livro do Pessoa ressuma tanta angústia, ansiedade
e, depois, depressão, tantos sentimentos que se aproximam
dos meus que, ao lê-lo, dá-me vontade de descrever
os meus próprios medos e angústias de um modo,
digamos, mais literário. No entanto, essas descrições
seriam obrigatoriamente menos “reais”. Talvez
que as minhas crises sejam isso mesmo – crises, que
não permitem discernimento, nem para verificar que
as sensações que me tolhem não são
reais, quanto mais para escrever em lindo e gostoso cursivo
que tenho medo de morrer, que me sinto mal dentro deste
corpo. Por outro lado, entre as crises, como agora, não
sinto necessidade dos escritos confessionais e, quando os
escrevo, admiro-me depois de os ter escrito.
Estou a ler, também, os “Efeitos Secundários”,
do Woody Allen e tenho uma vontade mais forte de escrever
aquele tipo de textos, cheios de non-sense, mas que nem
de longe cheiram à ansiedade, solidão e vazio
do “Livro do Desassossego”. Talvez eu tenha
medo desse vazio e o queira preencher com textos humorísticos.
Talvez…”
Uma ova! O que eu tinha mesmo era uma perturbação
de pânico, não diagnosticada e não tratada
e os textos humorísticos não eram para preencher
vazio nenhum – escrevia-os porque me dava gozo. Mais
tarde, escrevi-os porque precisava do dinheiro. Quanto às
angústias e depressões – sabia vivê-las
mas não as sabia descrever. Para isso, temos o Fernando
Pessoa…
Mas enfim, eu sou um gajo cheio de contradições.
Mesmo à rasca, com o coração a bater
válvulas, absolutamente convencido de que ia morrer
em breve (durante algum tempo acreditei que não passaria
dos trinta!), não deixava de brincar, sempre que
podia. Reparem neste texto, de 11 de Setembro de 1982:
“Na semana passada, tudo correu bem. A Mila esteve
de Banco todo o dia – tudo bem, até chegar
à cama. Comecei por ler até ás duas
da manhã. Depois, deitei-me e senti a angústia
do costume, dei as habituais voltas e, quando começava
a adormecer, senti-me invadido por insectos. E era verdade:
formigas que, talvez buscando o doce do meu corpo suado
(isto é bonito!), desataram a subir pela cama acima
e a formigarem sobre mim. Eram, portanto, três da
manhã, andava eu matando formigas. Nova tentativa
para dormir e chegou a vez das melgas. Eram duas. Matei-as
separadamente, com intervalo para mais algumas voltas na
cama. Morta a última melga, sobreveio a fome. Como
ou não como? Acabei por comer bolachas e fumar um
cigarro. Não sei dizer se então, cinco e tal
da madrugada, tinha sono ou não, mas lembro-me de
que estava a encarar a hipótese de me levantar e
esperar pela Mila. Foi então que apareceu o Pedro,
com uma epistaxis. Feitos o tamponamento e a limpeza, lembro-me
de ter visto as horas: seis. Depois, devo ter adormecido
instantaneamente.”
Os caderninhos escritos entre 1982 e 1984 estão
cheios de textos que descrevem crises de angústia
nos mais variados sítios por onde passei. São
todos tão semelhantes que quem ler um, lê todos.
A única diferença reside nos termos utilizados,
cada vez mais psiquiátricos. Mas a Psiquiatria não
iria durar por muito tempo…
E, no entanto, em termos profissionais, os dois anos de
internato de Psiquiatria não podiam ter corrido melhor.
As minhas relações com os membros mais velhos
da equipa médica eram óptimas, não
só com a Dra. Inês, mas também com o
Dr. Jacinto Nunes, o Dr. João Seinfelt e o Dr. Guilherme
Ferreira. O meu trabalho era apreciado e, por isso mesmo,
tive 19 valores, tanto no primeiro como no segundo ano do
internato. Apresentei diversas histórias clínicas
em reuniões de serviço, que foram sempre muito
elogiadas, quer por estarem bem elaboradas, quer por estarem
bem redigidas. Mas comecei a ficar farto. Podia muito bem
acabar a especialidade e abrir consultório e aturar
neuróticas o resto da minha vida. Um bom psiquiatra,
safa-se bem. Mas nunca tive jeito para negócio nenhum,
muito menos para ganhar dinheiro com a doença dos
outros. Além disso, culpava, em parte, a Psiquiatria
e o stress que ela envolvia, pelo agravamento da minha angústia.
Eu, que tinha inventado para mim próprio um linfoma
quando frequentava as aulas de Histologia, começava
agora a inventar diversas doenças mentais para explicar
os meus sintomas…
Como já disse, todos os especialistas da minha equipa
tinham formação analítica. No entanto,
eu punha um bocado em causa a obrigatoriedade de se ser
um discípulo de Freud para poder ser um bom psiquiatra.
Reli os livros do Ronald Laing e do David Cooper. Também
na altura, lera um livro muito interessante do Thomas Szazz,
chamado “Esquizofrenia – o mito sagrado da psiquiatria”,
que me marcou muito. O sacana do livro desapareceu. Não
sei se o emprestei a alguém, mas tenho uma vaga ideia
de que o fiz. Como se costuma dizer, nunca se emprestam
mulheres e livros; se forem bons, raramente serão
devolvidos. Foi o que aconteceu com esse, pelos vistos.
Se bem me lembro, a teoria do Thomas Szazz era mais ou menos
esta: perante a incapacidade da Medicina em curar, de facto,
as doenças, os seus grandes investigadores e pensadores,
sempre tentaram explicar tudo através de grandes
patologias. Explico melhor: se um doente vem à consulta
e se queixa de dores de cabeça, tonturas, perda de
memória, zumbidos, sensação de desmaio
e pés inchados, eu vou tentar enquadrar todos estes
sintomas num único diagnóstico, porque assim
me foi ensinado – é raro uma só pessoa
sofrer de duas ou mais patologias novas simultaneamente;
é nossa obrigação, como médicos,
tentar encontrar um diagnóstico que englobe todas
as queixas, porque isso é o mais comum. Na perspectiva
de Szazz, tudo começou com a sífilis que,
antes da descoberta da penicilina, dizimou uma boa parte
da população mundial e que, embora começasse
por uma “simples” infecção, acabava
por se generalizar e não havia órgão
ou sistema que lhe escapasse, incluindo o sistema nervoso
central. A descoberta da penicilina fez com que a Medicina
controlasse a sífilis, mas esta logo foi substituída
pela tuberculose que, mais uma vez, era uma doença
que podia atingir qualquer órgão ou sistema.
Portanto, segundo Szazz, quando os homens da Medicina não
sabiam explicar a doença de um determinado doente,
encontravam, primeiro na sífilis, depois na tuberculose,
a Grande Explicação para tudo. Então,
o autor estabelecia o paralelo com a esquizofrenia, que
estaria para a Psiquiatria como a sífilis e a tuberculose
estavam para a Medicina. Incapazes de explicar por que razão
um indivíduo começava a delirar, a ouvir vozes,
a comunicar com seres incríveis, a utilizar palavras
que nunca ninguém ouviu, a ver inimigos em todos
os cantos, incapazes de ajudar essas pessoas, de lhes diagnosticar
um mal determinado, os psiquiatras socorriam-se da esquizofrenia,
que não seria, afinal, uma doença, mas um
mito – a Grande Explicação da doença
mental.
Muito curiosa, esta teoria – e peço desculpa
ao autor se a estou a deturpar, mas não sei onde
está o livro e estou a escrever tudo isto de memória!
E mais curiosa se torna quando reparamos que a sífilis
é uma doença de transmissão sexual
e a tuberculose, embora não o seja exclusivamente,
assim era considerada no início; todos se lembram
que a tuberculose – ou a tísica – era
conotada com a má vida, a prostituição,
a deficiente alimentação, as noites mal dormidas,
os maus costumes, enfim. E eis que, quando parecia que a
Medicina tinha conseguido dominar, quer a sífilis,
quer a tuberculose, surge a Sida, também ela uma
doença global, à qual não escapa qualquer
órgão ou sistema, também ela uma doença
relacionada com o sexo e os “maus costumes”.
O irónico de tudo isto é que, séculos
atrás, os europeus deram novos mundos ao mundo e
exportaram a sífilis para o continente africano,
dizimando populações inteiras. A Sida parece
ter feito o percurso inverso, para dizimar o mundo ocidental.
O Thomas Szazz também não ia muito à
bola com o Freud. Dizia que, se o Freud tivesse registado
a psicanálise como marca registada, teria morrido
hiper-milionário, tal como o inventor da Coca Cola.
Considerava, portanto, que o Freud tinha inventado a psicanálise
que, tal como a Coca Cola, não serve para nada –
mas quem pode viver sem uma ou outra?
Hoje em dia, as ideias do Freud estão em toda a parte
e não há ignorante, analfabeto ou iliterato
que não diga que está “traumatizado”
com isto ou com aquilo!
Sinceramente, não me apetece alongar mais este assunto,
porque estas não são as memórias do
Szazz, nem tão pouco do Freud. Toda esta conversa
serviu só para dizer que não estava com muita
vontade de me submeter a uma psicanálise, não
achava que isso fosse essencial para a minha vida profissional
e, confessemos, não tinha dinheiro. Três sessões
por semana durante não sei quantos anos, convenhamos
que sai mais caro dar cabo de um complexo de Édipo
mal resolvido do que alimentar um burro a pão de
ló!
Quando acabei o meu curso, entusiasmado como estava com
a Psiquiatria, escrevi uma carta à Sociedade Portuguesa
de Psicanálise, perguntando como é que um
recém licenciado poderia obter treino nessa área.
Eu não sabia nada de psicanálise; durante
o curso de Medicina, ninguém nos tinha falado nisso.
Responderam-me que teria que contactar com um dos elementos
da Sociedade, fazer a minha própria psicanálise
e, só depois, poderia estar, eventualmente, apto
a exercer a minha actividade. Está bem! Se eu não
tinha dinheiro para pagar as minhas dívidas, onde
iria eu arranjar a massa para fazer a minha psicanálise?…
Bom, como interno de Psiquiatria, já ganhava um pouco
melhor (cerca de vinte e cinco contos) e, com a ajuda do
dinheiro que ganhava no Pão, o ordenado, ao fim do
mês, já não era tão mau como
isso. No entanto, a pouca massa que sobrava, depois de pagas
as despesas obrigatórias, serviam para outros prazeres,
pequenos prazeres, digamos, livros e discos. Aliás,
neste particular, andava a recuperar o tempo perdido, digamos
assim, comprando todos os discos dos Beatles que ainda não
tinha, bem como os dos Pink Floyd, alguns dos Rolling Stones,
Jethro Tull, bem como os desse grande fumador chamado Tom
Waits, que me foi dado a conhecer pela malta do Pão
Comanteiga, e com quem estabeleci uma relação
cúmplice, que se mantém muito forte, apesar
do rapaz já não lançar nenhum disco
novo há alguns anos. Portanto, nunca me passou pela
cabeça juntar o pouco dinheiro que me sobrava ao
fim do mês para o ir entregar a um qualquer psicanalista
que me ajudasse a perceber as minhas crises de angústia.
Ninguém da minha equipa me pressionou para que eu
fizesse grupanálise ou psicanálise, mas iam
dizendo, quando calhava, que eu não fazia nada disso
porque tinha resistências inconscientes, o que só
provava que precisava mesmo de uma terapia dessas. Pois.
Acabei por fazê-la, talvez, com os meus escritos e
com a Mila. Saiu-me mais barato e diverti-me muito mais.
Aqui está outro exemplo dessa auto-análise,
sob a forma de mais um texto num dos caderninho, datado
de Maio de 1984:
“Atenção: parte importante, que
deve ser lida sempre que esteja em crise, por muitos e bons
anos – penso e tenho quase a certeza de que continuarei
a ser assim pela vida fora e, embora receie que o meu “eu”
não aguente e que, mais tarde ou mais cedo, estoire,
sei, sinto, que isso não vai acontecer; a minha força
é a minha fraqueza, é a minha fragilidade,
que me permite ter as barreiras abertas e ser generoso e
tolerante, o meu desequilíbrio é que me permite
entusiasmar-me com quase tudo e não me prender a
quase nada. A minha imaginação criadora, incessante
há mais de dez anos, vem exactamente daí,
dessa angústia, deste borbulhar incessante do meu
cérebro, destas incertezas, angústias, desesperos,
depressões, extrassístoles, e tudo o mais
que me corrói e me obriga a reconstruir-me em cada
dia. Sozinho. Sem analista, sem grupo, procurando nas palavras
da Mila, no ansiolítico, nas páginas dos caderninhos,
no gin tónico, nos livros, nos discos, na rádio,
na televisão, no cinema, na psiquiatria, em tudo,
procurando-me em tudo, juntando os bocados em que me desfaço
em cada crise!”
Lindo! Mais uma vez, só não me escangalho
a rir porque me lembro perfeitamente do que sofria naqueles
tempos…
Mas, apesar de toda a ingenuidade destas palavras, continuo
a pensar o mesmo. Há bem pouco tempo, li uma entrevista
com o David Lynch, em que ele dizia que tinha ido, uma única
vez, a uma consulta com um psicoterapeuta e lhe perguntou
que, caso se sujeitasse a um tratamento, se a sua “imaginação”
sofreria alguma alteração significativa. Perante
a resposta afirmativa do psicoterapeuta, o David Lynch desistiu
de fazer qualquer tipo de tratamento.
No final de 1984, estava no terceiro ano do meu internato
de especialidade, a frequentar um estágio de seis
meses de Saúde Mental, no Hospital Júlio de
Matos e as coisas não podiam correr pior. Por um
lado, o estágio desagradava-me profundamente: todas
as manhãs me arrastava para a famosa Casa Amarela
e esperava horas até que alguém aparecesse;
depois, assistia a meia dúzia de consultas, sobretudo
de crianças epilépticas e era tudo. Uma vez
por semana, era a tortura das 24 horas de serviço
de urgência no Bombarda. Paralelamente, tinha suspendido
a minha colaboração com o Carlos Cruz (o Pão
Comanteiga tinha acabado) e estava, então, a colaborar
com o Júlio Isidro, o que não me estava a
agradar, embora fosse bem pago. Finalmente, o internato
da Mila, em Pediatria, durava mais um ano que o meu (cinco
e quatro anos, respectivamente). E a falta de estratégia
do Governo na área da saúde continuava. Quando
eu terminasse o internato – um ano antes da Mila –
iria fazer o quê? As vagas hospitalares disponíveis
eram todas longe de Lisboa. Escolheria eu, novamente, uma
vaga num cu de judas qualquer, esperando que, um ano depois,
a Mila conseguisse uma vaga também nesse mesmo cu
de judas? Novamente um ano separados? Depois de termos tentado
quase tudo para ficar a trabalhar na província e
termos sido quase obrigado a regressar à capital,
saltávamos, novamente, para a periferia? E os miúdos,
sobretudo o Pedro, ia voltar à dança das escolas?
A todas estas perguntas, nós não tínhamos
resposta.
Até que, no primeiro dia de 1985, fomos almoçar
à Costa da Caparica e, no restaurante, reencontrámos
um casal de colegas que não víamos há
muito tempo. Ambos frequentavam, também, uma especialidade,
ambos andavam desiludidos e ambos tinham decidido concorrer
para Clínica Geral, aproveitando as vagas que iam
abrir em breve e que, pela primeira vez – a exemplo
do que acontecia com os professores – contemplavam
os casais, quer dizer, um casal de médicos podia
concorrer para vagas no mesmo Centro de Saúde, apresentando,
como nota, a média das notas finais de curso dos
dois elementos do casal. Ora, nós tínhamos
ambos, como média final de curso, quinze valores
– parecia haver uma boa possibilidade de ficarmos
colocados no mesmo Centro de Saúde, perto do nosso
local de residência que, nessa altura, já era
Almada.
A Mila não estava desiludida com o seu internato.
A Pediatria tinha-lhe trazido, para além de uma prática
médica excelente, algumas gratificações
profissionais. Mas, também ela temia que nos tivéssemos
que separar novamente.
Concorremos para Clínica Geral.
Foi a grande decisão de 1985.
Em Março, já estávamos a trabalhar
na Unidade de Saúde do Monte de Caparica.
Até hoje…
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