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O Coiso
Memórias de um fumador
50 anos de história


27. A ansiedade, ainda (1984)

E como estavam as minhas crises de pânico?
Piores, muito obrigado.
O ano de 1984 foi para esquecer, nesse capítulo. A ansiedade generalizada atingiu picos idênticos aos verificados no tempo da tropa.
Se não fosse a Mila…
Os caderninhos desse ano estão repletos de descrições de crises no cacilheiro, no metro, na rua, em casa, no quarto do Banco do Miguel Bombarda, na casa de banho, sentado num banco de jardim, na cama, de manhã, à tarde, durante a noite, crises e mais crises, pensamentos circulares, ideias paranóides, introspecção de pacotilha.
Por vezes, continuava a querer armar-me em Bernardo Soares e pensei até em escrever um “Livro da Ansiedade”. Um excerto:

“Tiro os óculos para ver pior. Preciso de ver pior, de ver tudo deformado, as coisas e as pessoas. Talvez elas assim também não me vejam. Não sei se as minhas feições demonstram a minha ansiedade, o turbilhão de pensamentos desencontrados que me preenche. Parece-me que o meu rosto se mantém impassível e até consigo sorrir ou, por vezes, articular algumas palavras. No entanto, tirar os óculos significa colocar o mundo de acordo com o meu pensamento: confuso. Miopia, astigmatismo e pensamentos confusos. Isto adapta-se melhor do que estar a pensar em coisas contraditórias e angustiantes, olhar e ver pessoas a sorrir, uma máquina de café, um balcão, uma grade de cervejas. E parece que tudo está em paz, excepto eu. Assim, sem óculos, tudo se dilui e confunde.
Estou sentado ao balcão, aguardando o bitoque. Os óculos estão pousados ao lado do prato. As pessoas falam e riem alto. O empregado anda de um lado para o outro, servindo omeletas, bicas, rissóis. Sei que estou bem sentado, direito, como me ensinaram que as pessoas se sentam à mesa. Sei que ninguém sabe o que sinto por dentro. Pelo menos disso estou defendido. É que, por dentro, tenho pólvora nas veias, um turbilhão no coração, uma mó rodando no crânio, num movimento desencontrado, como se o eixo se tivesse partido e ela continuasse rodando graças à inércia.
Chega o bitoque e começo a engoli-lo rapidamente. Talvez que enchendo o estômago a mó reentre no eixo. Não sei se a carne é boa. Deve ter sabor. Mas a minha preocupação é outra: acabar depressa com este suplício, sair do restaurante e fechar-me no quarto, a escrever. Quando escrevo, o turbilhão dissipa-se, lentamente, como as neblinas na praia. A escrita aquece o ar e a neblina dos pensamentos confusos dissipa-se.”

Ainda bem que não escrevi nenhum “Livro da Ansiedade”. Devia ser uma chatice pegada.
Se não fosse a Mila…
A ansiedade generalizada manteve-se até aos 33 anos e, depois, foi desaparecendo gradualmente, à medida que as extrassístoles foram melhorando, graças à propafenona, que comecei a tomar em 1986. Passados todos estes anos, sei agora que as extrassístoles desempenharam um papel determinante nessas crises de pânico, ao instalarem-se numa personalidade predisposta à angústia. No entanto, naquele tempo, eu não era capaz de distinguir a causa do efeito. Aliás, é quase sempre impossível encontrar uma causa única para um determinado fenómeno; geralmente, as causas são sempre multifactoriais. No meu caso, penso que diversos factores jogaram em conjunto: a minha predisposição (genética?), a insegurança da nossa vida, as dúvidas sobre o futuro profissional (jornalismo ou medicina, médico na província ou em Lisboa, clínica geral ou especialidade hospitalar?), as dificuldades económicas, a súbita passagem da condição de filho para a de pai mas, sobretudo, as extrassístoles que, além de me causarem um mal estar físico inenarrável, criavam no meu espírito uma ideia de fragilidade, de morte precoce e eminente, que não é habitual num jovem com pouco mais de 20 anos. É que eram muitas!… Fiz um electrocardiograma de 24 horas em que foram detectadas mais de mil, e não estava num dia dos piores…
Se não fosse a Mila…
A paciência com que ela escutava as minhas lamúrias, as minhas dúvidas. As minhas angústias. As longas conversas que tivemos até às tantas da madrugada, em que ela me tentava acalmar, me encostava a cabeça no peito, para amansar o cavalo maluco que galopava lá dentro. As vezes que acabei por adormecer, esgotado, reclinado na cama, agarrando a mão dela. E o mais importante: a Mila escutava pacientemente os meus pensamentos circulares. Nunca me disse que estava farta. Nunca me disse que não tinha disponibilidade. Nunca desistiu de me apoiar. Nunca deixou de me amar.
Os caderninhos foram importantes porque, através deles, fui elaborando a minha angústia, mas a Mila foi essencial.
Nesse ano, as coisas talvez tenham piorado por três razões: o internato de Psiquiatria desiludia-me, os textos que escrevia não me davam prazer e as dúvidas sobre o nosso futuro profissional haviam regressado. No fim do ano, terminava o estágio de Saúde Mental Infantil e ficariam a faltar, apenas, seis meses de Neurologia e mais seis meses no Bombarda e tinha o internato feito. Com as notas que tinha conseguido nos dois primeiros anos, o exame de saída não seria problema e eu seria especialista, um ano antes da Mila. Vagas nos Hospitais Miguel Bombarda e Júlio de Matos, não havia – logo teria que concorrer para outro lado. Na província também não havia assim tantos hospitais psiquiátricos e quanto a psiquiatras nos Centros de Saúde, não se falava, nem se fala. A Saúde Mental é um parente pobre do nosso pobre sistema de saúde. Falava-se em vagas em Penafiel! E eu ia para Penafiel e esperava que a Mila, um ano depois, conseguisse uma vaga lá perto, em Pediatria? Mudar de casa, mudar de escolas? Outra vez?!
Já sabem que resolvemos este problema concorrendo para clínicos gerais, no ano seguinte, mas a decisão não foi fácil, até porque a Clínica Geral não é muito bem vista, mesmo na nossa classe, é uma despromoção passar de interno de uma especialidade hospitalar para clínico geral; é voz corrente que só vai para Clínica Geral quem não consegue vaga para entrar numa especialidade hospitalar. O prestígio da Clínica Geral é, de facto, muito baixo; para muita gente, continuamos a ser os médicos da Caixa.
Penso que tudo isto contribuiu para um mau ano, em 1984.
Se não fosse a Mila…
E, no entanto, a vida – ou melhor, a vidinha, como diria o Alexandre O’Neill – até corria bem.
A avó Rita tinha vindo viver connosco. Com vinte e oito contos de renda por mês – e não antecipando que eu iria ganhar tanta massa na escrita – não nos podíamos dar ao luxo de inscrever o Pedro e a Marta num colégio particular. Foram, portanto, para a escola oficial que, naquele tempo, só funcionava de manhã ou de tarde, e ainda não se falava de programas de ocupação de tempos livres. A avó, apesar dos seus 74 anos, rejubilou quando lhe pedimos ajuda e veio logo a correr – isto é, meteu-se num táxi em Santiago de Cassurrães e só parou em nossa casa. Era um descanso sabermos que os miúdos tinham alguém em casa quando regressavam da escola, sobretudo nos dias em que estávamos de Banco.
E como não tinha que pagar mensalidade a nenhum colégio particular e cada vez escrevia para mais sítios, gastei o dinheiro noutras coisas: comprei, na Bepaliz, um vídeogravador Wega, sistema beta (alguém se lembra?), que pesava 35 quilos e que custou 140 contos. Mesmo para os dias de hoje, 140 contos é caro para um vídeo; naquele tempo foi uma fortuna... Claro que desatei logo a gravar filmes da televisão e, em pouco tempo, já tinha uma videoteca razoável. Comprei também uma máquina de escrever eléctrica, marca Messa, por 37 contos; escrevia muito e tinha que ser depressa… Curiosidade: tanto a Bepaliz como a Messa já faliram…
Os miúdos adaptaram-se muito bem à vida num andar, até porque o terraço substituía, de certo modo, o quintal do Algueirão. Aliás, os nossos filhos não se podem queixar de não terem tido espaço para as brincadeiras da infância; quer no Algueirão, quer em Moimenta, Mourão ou Almada, sempre tiveram largueza de espaço para jogarem à bola, andarem de bicicleta, brincarem com água à vontade, fazerem aqueles jantarinhos super molhados que todos os miúdos adoram. E, além da Pantufa e dos canários e dos periquitos, também um cágado, a quem chamámos Speedy, passou a fazer parte da família. A Marta, apesar da megera da professora, andava contentíssima, sobretudo depois de ter participado, activamente, na sua primeira festa de ballet, na Academia Almadense – o maillot, as sapatilhas, as rendas e os lacinhos, sempre a fascinaram. O Pedro continuava a levar a escola com uma perna às costas e distinguia-se em quase todas as disciplinas, sobretudo o inglês, embora tivesse sempre alguns problemas na educação física.


O Pedro e a Marta, pouco antes de ingressarem na escola, em Almada.

E no fim do ano, até já tínhamos duzentos contos no Banco!
Mas a angústia!
Em Novembro, escrevi este naco revelador:

“Sou um velhaco para mim próprio. Brinco aos polícias e ladrões. Eu sou o polícia e o ladrão de mim próprio. Prendo-me e ponho-me em liberdade condicional no minuto seguinte. Agora, estou em liberdade condicional, gozando-a, mas sabendo que, a qualquer momento, o polícia pode vir e prender-me. Por momentos, resistirei, depois deixar-me-ei prender, depois voltarei à liberdade.”

Eram assim os meus pensamentos, naquele tempo.
Se não fosse a Mila…

 

 

 


 

 





 

 

 



Próximo capítulo: "O Gin Tónico" (1985)

 

Actualizado em: 7 Outubro 2003
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