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O Coiso
Memórias de um fumador
50 anos de história


29. O Monte de Caparica (1985)

A 19 de Janeiro de 1985, o nosso casamento completou uma dúzia de anos. Dois dias antes, estava em casa com os miúdos e a Mila estava de Banco, na Estefânia – um dos últimos que fez como interna de Pediatria. Já lhe comprara uma caixa de lápis de cor Caran d´Ache para lhe oferecer no dia 19 mas estava com vontade de lhe oferecer algo de mais pessoal. Foi então que me lembrei de lhe escrever mais um livrinho de exemplar único. De um jorro, escrevi-lhe uma espécie de carta longa, em forma de livrinho de bolso, com doze páginas, que depois encadernei com cartolina decorada com um desenho feito com os lápis que lhe ia oferecer.
Acho que vale a pena transcrever essa espécie de carta na íntegra:

“Resumir 12 anos de vida em comum numa só tarde e em poucas páginas, é uma ideia peregrina e impossível de realizar.
Mas surgiu-me hoje, assim de repente e achei que devia concretizá-la, até porque há muitos anos que não te ofereço nada confeccionado por mim.
Portanto, neste momento, e nesta primeira página, não faço a mais pequena ideia do que vou escrever a seguir... Utilizarei o método mais simples que conheço: pensar em ti e nestes 12 anos que vivemos juntos e, depois, escrever o que me vier à cabeça.
Só conseguimos viver uma vida saudável quando nos apaixonamos pelas coisas e pelas pessoas. Uma vida sem paixão é um vazio, é a depressão. O Freud considerou algures que a paixão é uma doença, mas o judeu disse muitas coisas, portanto é natural que se tenha enganado algumas vezes.
Apesar dos revezes, dos azares, das desilusões e de tudo o resto, posso gabar-me de, nestes 12 anos de vida, ter vivido sempre apaixonado por alguma coisa.
As coisas foram passando e a minha paixão foi saltando de umas coisas para outras: colecções de caixas de fósforos e de rótulos variados, música clássica, mortalhas, pintar pedras da calçada e calhaus rolados, plantar alfaces e feijoeiros, estatísticas das consultas, livros de poesias mais ou menos tontas, música rock, pintura, literatura, cinema e por aí fora. Umas paixões foram substituindo outras, mas nunca estive desapaixonado.
Mas contigo foi diferente: há 12 anos que estou apaixonado por ti e esse sentimento não tem sofrido grandes alterações ao longo de todo este tempo. Existe uma base de paixão, sempre acesa e, depois, de quando em quando, grandes picos de intensidade tremenda.
E é esta paixão que me (nos) tem transportado, ao longo da vida, ultrapassando os azares, as mudanças de rumo, os altos e baixos, as dificuldades financeiras – tudo!
Aqui há uns anos atrás, teria escrito um poema, como já fiz, em que tentaria glorificar o nosso amor, traduzindo-o por imagens mais ou menos românticas, mais ou menos “revolucionárias”.
Essa fase já passou. Os poetas que escrevam os poemas. Prefiro dizer coisas banais, mas verdadeiras, sem subterfúgios e sem a preocupação de estar a respeitar a gramática ou a beleza da construção das frases. As coisas vão saindo, aos solavancos – até porque, ao meu lado, batalhando com uma ficha de matemática, está a Marta, às voltas com o quádruplo e o quíntuplo de um número, chateada que nem um peru com os trabalhos da escola. A Marta, que nasceu de nós...
De vez em quando, é o Pedro que vem até à sala. Há bocado, para me tocar uma melodia, no órgão, melodia que ele tinha inventado. O Pedro que, ao fim e ao cabo, é a causa de estarmos juntos há 12 anos.
E estes dois seres não existem desligados de ti e de mim. Por muito independentes que eles sejam, por muito crescidos que estejam, eles só existem, para mim, porque tu existes, eu existo e a nossa união permanece.
E, ao escrever isto e ao olhar para a cara rosada da Marta ou para as palhaçadas-tipo-break-dance que o Pedro executa, não os vejo só a eles – mas, sobretudo, vejo algo que não é visível: a nossa paixão.
Penso que já não interessa dizer-te como te desejo, como gosto do teu corpo, dos teus olhos, dos teus cabelos. Sabes isso muito bem, no dia-a-dia, ou melhor, na noite-a-noite, em que nos amamos cada vez melhor, com a ciência da experiência acumulada.
Passou a fase de exaltar, por escrito, as tuas qualidades como companheira, como mulher, como amante. Demonstro isso todos os dias.
Existe algo de muito mais importante. E é daí que decorre tudo o resto: a tal união de que estou a falar desde o princípio, a tal paixão, o tal fenómeno de difícil definição – fenómeno que consiste numa espécie de energia.
Energia que me faz, por exemplo, estar, neste momento, ansioso pelo teu telefonema.
Hoje, dia 17 de Janeiro de 1985, estás de Banco 24 horas. Sei que estás bem, eu também estou bem, a escrever-te este livrito e a ouvir a música do Donovan. No entanto, apetece-me ouvir a tua voz, só para me dizeres que estás cansada, ou que tens dores de estômago, ou que o Banco está uma merda, mas que está tudo bem e nós também, telefonas logo? Beijinhos, até logo... E logo, voltas a telefonar. Não tens nada de especial para me dizer, nem eu a ti, mas não passamos sem isso...
Se pensares na nossa relação sob este prisma, verás como ela é bela, exactamente por ser assim simples, feita de coisas do quotidiano, das nossas conversas sobre o futuro, sobre a nossa profissão ou os meus escritos, os nossos filhos, as nossas despesas, as coisas de todos os dias, que nós partilhamos, com a mesma intensidade, a mesma verdade com que partilhamos os nossos corpos.
De facto, é muito difícil de imaginar as nossas vidas separadas e mesmo os nossos filhos farão, certamente, notar isso, quando tiverem a sua vida própria. Desde sempre que estão habituados a viver num ambiente onde se fala do Artur e da Mila e – embora o Artur tenhas as suas coisas e a Mila tenha as dela – os dois funcionam como uma equipa: o pai e a mãe, o marido e a mulher. Somos boas figuras de identificação para eles. Até nisso não falhámos. E não fizemos de propósito, como é óbvio. Amamo-nos, fazemos as coisas em comum, mas não estamos fundidos. Assim, os nossos filhos sabem quem é o pai e quem é a mãe, sabem que cada um tem o seu papel, mas que funcionam em equipa. Isto parece complicado, e deve sê-lo para quem se esforça por isso. Nós não precisamos de nos esforçar – limitamo-nos a ser como somos e a amarmo-nos.
O papel está-se mesmo a acabar e a inspiração espontânea também.
Se fosse escrevendo isto aos poucos, dia a dia, sairia uma coisa mais compostinha, com menos repetições e não me esqueceria de coisas que falham aqui. No entanto, perderia a espontaneidade. A ideia foi mesmo: e seu escrevesse uma espécie de carta à Mila, assim, de jorro?
Saiu isto.
Agora, penso fazer uma capa para isto, com um desenho meu, o que vai ser um fartar de rir...”

Apesar da sua simplicidade, esta carta resume tudo o que eu continuo a pensar da minha relação com a Mila.


Eu e a Mila, 12 anos depois...

Em Fevereiro de 1985, fomos colocados no Centro de Saúde de Almada, como clínicos gerais. Éramos os mais velhos do grupo de médicos colocados nesse Centro de Saúde, já que os restantes colegas eram do curso de 81. A orientação da nossa carreira mudada graças a um almoço, no primeiro dia de 1985, no restaurante Detraz das Dunas, na Costa da Caparica, em que gastámos, com os miúdos, 2 885 escudos e em que encontrámos os tais colegas que também estavam a fazer internato da especialidade e haviam decidido mudar para Clínica Geral.
O Centro de Saúde de Almada era constituído por uma série de Unidades de Saúde em Almada, na Cova da Piedade e na Costa da Caparica. Vivíamos em Almada há relativamente pouco tempo e, tirando a cidade propriamente dita, e a praia, os restantes nomes pouco nos diziam. Como havia duas vagas para a Unidade de Saúde do Monte de Caparica, e os restantes colegas, alguns vivendo em Lisboa, preferiam ficar na cidade, escolhemos essas vagas, sem sequer sabermos onde ficava o tal Monte.
Quando nos fomos apresentar, ficámos um pouco desiludidos – a Unidade de Saúde do Monte de Caparica ficava (e fica) num prédio de habitação (mal) adaptado. Era, ao fim e ao cabo, um Posto da Caixa de Previdência que tinha mudado de nome. Fomos recebidos pelo Coordenador médico, o Dr. Júlio Fonseca e começámos a trabalhar no dia 5 de Março.
No meu primeiro dia de trabalho como clínico geral, fiz apenas três consultas, mas rapidamente a minha lista se foi enchendo e depressa ultrapassou os mil e quinhentos utentes. Neste momento, 17 anos depois, tenho cerca de 1850 utentes inscritos na minha lista e quase 70% desses utentes vão, pelo menos, uma vez por ano à minha consulta; mas muitos vão muitas vezes, demasiadas vezes. A campeã é a Dona Laurinda, que já consultei cerca de 250 vezes nestes 16 anos, o que dá uma média superior a 15 consultas por ano. Se, no meu primeiro dia só tive três consultas, há muito tempo que o meu grande sonho é chegar à Unidade e a administrativa me dizer, espantada: “Doutor, hoje não há doentes!”
Naquele tempo, a Clínica Geral ainda dava os primeiros passos e quase não se falava em Médico de Família. Apesar da mudança dos nomes, as pessoas continuavam a chamar àquilo “Posto da Caixa”, e a nós, evidentemente, “médicos da Caixa”. Só fazíamos consulta ou de manhã, ou de tarde, o que nos deixava muito tempo livre. Mas depressa começámos a preencher esse tempo, começando a fazer consultas de Saúde Materna, Planeamento Familiar e Saúde Infantil. A pouco e pouco, os colegas que já estavam colocados no Monte e que ainda não faziam este tipo de consultas, começaram também a fazê-las e, passado pouco tempo, descobrimos que estávamos a formar uma equipa de saúde que, ao longo de todos estes anos, se foi fortalecendo, tentando melhorar os seus métodos de trabalho. O núcleo duro mantém-se o mesmo: Artur, Mila, Inês, Guimarães, Julia, Leitão (médicos), Paula, Ana Maria, Carrilho (enfermeiros), Manuela, Jardim, Afonso, Fátima e Isabel (administrativos). E penso que tem sido esta constância – e também o facto de sermos todos pessoas tolerantes e equilibradas – que tem permitido o bom ambiente de trabalho que se vive no Monte, apesar da pressão dos utentes, da insuficiência do pessoal e das instalações, das dificuldades próprias de uma Unidade de Saúde que serve uma população pobre, grande parte dela moradora nos chamados bairros sociais.
Fomos vendo crescer o Monte de Caparica; dezenas e dezenas de novos prédios se foram construindo, no lugar de antigas quintas, edificou-se a Faculdade de Ciências e Tecnologia e o Instituto das Ciências da Saúde, que para ali arrastou muita gente nova, a Ensul e a Meci – duas pequenas empresas situadas mesmo junto à Unidade de Saúde – cresceram e têm agora grandes e modernas instalações, a população residente e flutuante cresceu imenso, mas a Unidade continua no mesmo velho prédio de habitação, sem elevador, com três pisos e umas penosas escadas que os doentes e os profissionais têm que subir e descer vezes sem conta. Se pensarmos cinco minutos sobre isto, só podemos ficar revoltados. O Serviço de Saúde já é menosprezado por muitos utentes, que não dão valor a uma coisa que é gratuita ou quase e a usam como usam outros serviços públicos, sem perceber que tratar de doentes não é o mesmo que vender selos mas, com instalações destas, degradadas, ainda menos importância lhe dão. Falta dignidade à maior parte dos Centros de Saúde.
Mas isto são outras histórias que a seu tempo serão mais aprofundadas.
No meu primeiro dia de consultas como médico de Clínica Geral, após ter observado os meus únicos três doentes do dia, passei o resto do tempo a escrever e produzi esta reflexão sobre a Psiquiatria, que acabava de abandonar:

“Uma mesa é um peça de mobiliário sobre a qual se come ou se escreve ou se joga às cartas. Mas não deixa de ser uma mesa se sobre ela fizermos amor, ou cagarmos ou construirmos um castelo com peças de Lego. Uma mesa quer-se arrumada. Cá em casa, apesar do espírito arrumadinho que caracteriza os progenitores, os filhos têm o saudável hábito de deixar as coisas ao acaso. A secretária do Pedro é um verdadeiro vazadouro de lixo de um milionário excêntrico. Encontra-se lá de tudo, menos o que é habitual encontrar-se numa secretária. E, o que é mais interessante, é que ele próprio não faz ideia de mais de metade das coisas que lá estão. Vai daí, uma frase muito comum que, quer eu, quer a Mila, pronunciamos acerca da mesa onde passamos 70% do nosso dia útil: “Olha como está esta mesa!” E como está ela, habitualmente? Cheia de livros, cadernos, máquina de escrever, o pote com cravos vermelhos, tabaco e isqueiros, canetas das mais variadas cores, carteiras, blocos, recibos da electricidade, cinzeiros, papelinhos com as coisas que é preciso fazer – para além de pratos que se partiram e é preciso colar, o secador da Marta, que não funciona, a Tucha da Joana, que tenho que devolver. Quer com isto dizer que a mesa não devia ser assim. No entanto, não deixa de ser uma mesa por isso.
E quanto à chamada doença mental e a Psiquiatria? Esta será uma ciência, uma especialidade médica, uma filosofia, uma tentativa de explicar comportamentos chamados anormais? O psiquiatra de formação dinâmica engloba, de um modo geral, o analista, o grupanalista e similares, bem como todos os que, não tendo feito análise, estão de acordo com as bases da teoria freudiana. O psiquiatra dinâmico crê na doença mental, definindo-a como um conjunto de sinais e sintomas que formam um síndroma, que é depois etiquetado dentro de um dos dois grandes grupos: as neuroses e as psicoses, havendo também lugar para um grupo intermédio, dos borderline. O psiquiatra dinâmico percebe que certos sintomas surgem na sequência de coisas que acontecem ao doente, coisas diferentes dos agentes patogénicos habituais nas restantes doenças: desprezo, solidão, excitação, contrariedade, fracasso, perda de uma pessoa querida, desastre, catástrofe, separação, etc., são outros tantos factores desencadeantes. Por outras palavras: todos nós nascemos e crescemos com núcleos ditos normais, e outros neuróticos ou psicóticos. A proporção de cada um destes núcleos vai depender do desenvolvimento da criança nos primeiros anos de vida, de que forma ela vive o desmame, o controlo esfincteriano, o nascimento de um novo irmão, a descoberta de que o pai possui a mãe, o complexo de Édipo, a masturbação, as perdas, etc. Depois, o núcleo neurótico ou psicótico pode ficar latente e eclodir após um agressão exterior.
Mesmo descrita assim, tão sinteticamente e com tanta falta de rigor, chega para nos sentirmos atraídos por esta teoria. Acontece é que, assim como uma mesa se define, não como um móvel que serve para comer (porque serve para muitas outras coisas, como se viu), também a doença se define por uma alteração histopatológica, demonstrável em Anatomia Patológica. E isso, qualquer que seja a forma como a doença se manifesta. E, evidentemente, sabendo-se, ou não, a sua etiologia e tratamento.
Chega-se, portanto, à conclusão de que, por enquanto, não se pode chamar á neurose e à psicose, doenças. Ao fim de quase um século de pesquisas, ainda ninguém demonstrou uma alteração histopatológica da esquizofrenia ou da neurose fóbica, por exemplo. Enquanto essa descoberta não for feita, não podemos afirmar a existência de doentes mentais. Logo, a existência de médicos que tratem os doentes mentais, é também obsoleta. Mas existem, de facto, situações mais ou menos bem definidas: a pessoa que está permanentemente angustiada, com sintomas somáticos e psíquicos, deprimida, etc. O que terá ela? Uma doença? Uma desregulação neuro-humoral? Um conflito intrapsíquico? E quanto ao dito esquizofrénico, com delírios e alucinações?
Bom, para os mecanicistas, a resposta é simples: há um desregulamento das aminas cerebrais, as sinapses não funcionam bem e mais uma série de explicações nunca comprovadas. Então, medicam com tranquilizantes, antidepresssivos e antipsicóticos e os sintomas das pessoas melhoram durante algum tempo.
Para os dinâmicos, a resposta é igualmente simples, embora rodeiem essa simplicidade, misturando a influência de muitos factores. E o que fazem? Se fazem análise, bem podem publicar casos excepcionais de cura, que todos eles sabem que são, de facto, excepcionais. Resultarão, talvez, de uma boa relação entre o analista e o analisado. No entanto, no fundo, o que todos fazem é dar antidepresssivos, tranquilizantes e antipsicóticos. Conclui-se que o resultado é o mesmo.
Os organicistas, no fundo, temendo que o complexo de Édipo exista, agarrando-se desesperadamente a explicações mecanicistas, encharcando os doentes com drogas. Os dinâmicos, temendo que existam causas orgânicas, agarrando-se desesperadamente aos conflitos intrapsíquicos, encharcando os doentes com drogas.
É um mundo de contradições. E os psiquiatras temem essas contradições como os burocratas temem que alguém demonstre, de uma vez por todas, que o seu trabalho é desnecessário.
Apesar de tudo isso – que fazer a uma pessoa que voluntariamente vem ter connosco, queixando-se de sintomas somatopsíquicos, de ansiedade ou depressão, de delírios e alucinações? Deve ela dirigir-se ao psiquiatra, a qualquer outro médico, a um bombeiro ou a um guru indiano?
Quando se encontrar resposta para esta pergunta, teremos metade da questão resolvida.
Antigamente, não havia psiquiatras e, por isso, não havia malucos. Na Europa medieval, as pessoas eram possuídas pelo demónio e, logicamente, eram levadas ao padre, que as exorcizava. Depois, surgiram médicos que, não conseguindo notoriedade em nenhuma das especialidades já existentes e, desejando-a ardentemente, inventaram a Psiquiatria e, consequentemente, os malucos, e foi um campo infinitamente virgem que começaram a desbravar. No futuro, a Psiquiatria desaparecerá. Aliás, após o recuo da anti-psiquiatria, as sequelas foram visíveis, e já se fala em Saúde Mental. Novos nomes, reformismos, para tentar compor a imagem. É sinal de que a instituição começa a estar minada, agarrando-se desesperadamente a certos mitos, entretanto criados. O louco furioso, por exemplo. Todos os médicos o receiam e “ainda bem que há psiquiatras!” É com a ajuda dos doente entretanto inventados, da sociedade que rejeita as pessoas diferentes e dos cientistas que continuam a acreditar na existência de doenças mentais, é com essa ajuda, que a fraude psiquiátrica se mantém.
Uma pessoa vem ter comigo, dizendo que já nada lhe interessa na vida, que se quer matar, que passa o dia a chorar. Eu convido-a a falar mais sobre isso, a contar-me os seus problemas, não escamoteando os pormenores, ela fala, eu respondo e oiço, posso também contar algo da minha experiência. Foi uma consulta médica? De modo nenhum! Foi, quanto muito, uma conversa entre duas pessoas, uma troca de experiências que, no final, teve como consequência o enriquecimento de ambos. A pessoa mais vulnerável talvez tenha ganho mais com essa experiência, mas isso não pode chamar-se tratamento.”

Decidi transcrever este longo texto porque ele é a minha primeira reflexão escrita sobre a Psiquiatria e demonstra por que razão, acabei por desistir de uma especialidade que me tinha desiludido. O texto está um pouco confuso, fruto de não estar absolutamente convicto do que escrevia. Hoje já não tenho dúvidas. Existem, de facto, doenças mentais – as psicoses – cuja etiologia ainda não está demonstrada. Mas são doenças. Doentes diferentes, de raças e credos diferentes, vivendo em regiões diferentes do mundo, manifestam a sua doença de modo muito semelhante – existem pontos comuns nos temas dos delírios, comportamentos semelhantes, que levam a acreditar que, para além dos factores exógenos, existirão factores genéticos, hormonais ou outros, que estão na base deste tipo de doenças. No entanto, muitas das situações, ainda hoje consideradas como doenças mentais, não são verdadeiras doenças, na correcta acepção da palavra; estas situações, não deviam ser acompanhadas por médicos, mas sim por psicólogos. Em relação aos síndromas depressivos, por exemplo, temos casos que se resolvem com psicoterapia e outros que precisam apenas de seis meses de tratamento com um inibidor da recaptação da serotonina. Haverá, portanto, indivíduos deprimidos com excesso de serotonina nas sinapses (doença) e que devem ser tratados por médicos e outros, cujos conflitos intrapsíquicos jogam um papel determinante na génese da sua depressão, e que beneficiarão apenas da psicoterapia; talvez haja até quem tenha as duas coisas e necessite, então, de um bom antidepressivo e de um bom psicólogo. O psiquiatra é que não faz falta nenhuma. Há umas décadas, a especialidade que tratava destas doenças era a Neuro-Psiquiatria; depois, os psiquiatras tornaram-se independentes. Havemos de voltar aos especialistas em doenças do Sistema Nervoso Central e os Psicólogos tomarão conta do resto.
Aquele longo texto refere-se, também, a uma das nossas grandes lutas contra o nosso filho Pedro: a desarrumação. Fomos derrotados em toda a linha. O quarto do Pedro foi sempre (e continua a ser) a grande confusão. E como eu e a Mila somos muito arrumadinhos (quase obsessivamente arrumadinhos), essa desarrumação terá sido o modo que o Pedro encontrou para confrontar a autoridade paterna. Por exemplo, quando estou em casa, tenho sempre um disco a rodar; o disco acaba, guardo-o na prateleira e ponho outro no leitor; o Pedro vai empilhando os discos e só quando a pilha começa a parecer-se perigosamente com os Himalaias – ou quando lhe dá a fúria da arrumação, o que é raro – é que volta a colocar os discos no seu sítio. É apenas um pequenino exemplo mas, se o meu filho sempre me viu arrumar tudo, por que razão faz ao contrário? Bom, talvez seja, também, por confrontação que o Pedro nunca fumou, bem como a Marta, o que é curioso. Os meus pais nunca fumaram, eu sou fumador; eu e a Mila sempre fumámos, os nossos filhos não são fumadores. Mistérios…
A Clínica Geral trouxe-nos, finalmente, a estabilidade por que tanto ansiávamos. Estávamos a cerca de dez minutos de carro da Unidade de Saúde e, pela frente, uma carreira segura, sem mais sobressaltos, sem mais mudanças. E a trabalhar por nossa conta e risco, directamente com as pessoas. Esta é, aliás, a grande diferença entre a Medicina Hospitalar e a Clínica Geral: no hospital, nós tratamos doenças – no ambulatório, tratamos doentes; o doente entra no hospital, é tratado, tem alta e, regra geral, nunca mais o vemos – no ambulatório, o doente nunca tem alta e vamos acompanhando toda a sua vida. Neste momento, os primeiros recém-nascidos que eu consultei, no Monte, em 1985, já têm 17 anos; tenho visto crescer muitos dos meus doentes, vejo-os casarem-se, sigo-lhes a gravidez e, depois, sigo os respectivos filhos. Conheço todos os meus doentes pelo nome, sei onde moram, o que fazem na vida, as doenças que já tiveram. É, de facto, aliciante.
E se a estabilidade tinha, finalmente, chegado, começámos a pensar em comprar uma casa. Só para apalpar o mercado, em Março decidimos ir a uma agência mediadora, a fim de vermos algumas casas. Vale a pena transcrever o episódio seguinte, que descrevo no caderninho:

“Há muito tempo que, no Diário de Notícias, surgem anúncios deste género: “Habite já a sua casa, sem entrada, sem outros encargos, por 17 contos mensais, 3-4 assoalhadas, Almada”. E se fôssemos ver? Aí vamos nós. Acabámos por descobrir que o “escritório” de vendas fica mesmo ao cimo da nossa rua. É um escritório kafkiano; cá fora, na campainha, dizia “cabeleireiro”, mas já caíram tantas vogais que apenas se consegue adivinhar o que lá estava escrito. Tocamos à campainha e surge um rapazinho, de gravata, muito semelhante aos meninos de Deus que andam por aí de nome na lapela e bíblia debaixo do braço, distribuindo a verdade gratuitamente. Nas faustosas instalações, onde pululam dossiers e móveis velhos, põe-nos logo ao corrente da situação: são casas que foram ocupadas e que se encontram um pouco degradadas. As condições de pagamento são, de facto, as do anúncio, e o preço é de 3 700 contos. Vamos ver? Por que não? Evidenciando sinais inequívocos de demência, para além de uma ligeira ataxia, arruma a sua pasta tipo executivo, através do curioso método de atirar com as coisas lá para dentro. Seguimo-lo, mais ou menos receosos. Vamos no carro dele, já que a casa fica perto do Laranjeiro. O carro trata-se de um conjunto de peças outrora pertencentes a um Renault 5 e possui algumas modificações curiosas, como um tijolo que impede que o banco do motorista se esparrame para trás. A viagem até ao Laranjeiro é uma verdadeira corrida contra a morte. Infringe o código de estrada diversas vezes, ultrapassa carros perigosamente, mete a terceira quando o motor pede a segunda e é com grande alívio que, uma eternidade depois, chegamos ao imóvel em questão. A degradação é total. O elevador não pára no primeiro andar, pelo que ele tem que ir à cave buscá-lo. E a casa é uma maravilha de buracos na parede, canos arrancados, tacos soltos, rodapés fora do sítio: quatro assoalhadas pequeníssimas, com uma linda vista sobre as barracas da região. Havia um hall para o qual se abriam três portas: a da cozinha, a da casa de banho e a da despensa, de modo que, duas teriam que estar fechadas, para que a terceira se pudesse abrir. Naquele hall poderia filmar-se uma sequência giríssima de um filme mudo. Regressámos correndo os mesmos riscos e despedimo-nos aliviados.”

Desistimos de comprar casa, claro. Apesar de, economicamente, a coisa já não estar tão má como antes, ainda não dava para uma boa entrada: eu estava a ganhar cerca de 160 contos por mês com os meus escritos para o Júlio Isidro, Solnado e Paulo Fernando e, como médicos, ganhávamos, cada um, 55 contos. Fomos amealhando... Entretanto, decidimos investir algum dinheiro na nossa casa alugada: pela primeira vez em 12 anos de casamento, gastámos umas notas valentes em móveis e até fomos passar uma semana ao Algarve, com os miúdos! O Gin, que tinha entrado para a família há pouco tempo, ficou em casa a tomar conta da avó Rita. No final do ano, trocámos o órgão Casio por um Siel, que custou 60 notas, e já soava a Mike Oldfield (mas pouco…)
Com esta estabilidade, a minha ansiedade, melhorava. Em Setembro, escrevi um texto sobre coisas que me fazem sentir bem, que transcrevo:

“À noite, depois do amor, trinco três ou quatro bolachas torradas (prefiro as Triunfo) enquanto leio um livro policial (neste momento, “A Caixa Vermelha”, do Rex Stout). Terminada a mastigação, bebo um copo de água fresca e penso – tantas vezes! – como é bom beber um copo de água! Que bebida mais satisfatória! Que maravilhosa sensação senti-la percorrer o esófago! Sinto-me verdadeiramente feliz!
O gin tónico tornou-se um hábito, que não poderei dizer salutar e, por vezes, bebo-o como tal, um hábito, e até nem sabe a nada. No entanto, antes do almoço, depois de uma consulta em que me fartei de falar, que bom que é saborear um gin bem fresquinho! Ou antes do jantar, depois de um duche, nestes dias estivais. Que frescura! Sinto-me mesmo feliz.
Tirar macacos do nariz é uma actividade a que me entrego quase por acaso, sem dar por isso. No entanto, por vezes, faço-o deliberadamente. E tenho sempre macacos para tirar. São pegajosos e elásticos e agrada-me tirá-los, enrolá-los e atirá-los para longe ou colá-los no banco do carro. Quando saem, sinto-me feliz.
Nestes dias quentes, deitar-me, todo nu, sobre a cama, enquanto a Mila, ao lado, depois de trinta segundos em pelota, se tapa até ao pescoço com lençóis e cobertores, porque treme de frio quando está a adormecer. Acho engraçado e sinto-me feliz.
Reparar que, quase de repente (desde o início deste ano), vamos os quatro ao cinema, sem nos obrigarmos a ver filmes infantis e todos nos divertimos. Foi “Um Cadáver à Sobremesa”, foi “Indiana Jones e o Templo Perdido” e foram outros. Somos uma família, funcionamos em grupo – sinto-me feliz.
Depois do jantar, depois de um dia de doentes, sem ter que escrever patetices para o Isidro, ficar, feito estúpido, a olhar para a TV, de perna estendida, a “comer” quase tudo o que eles transmitem, incluindo, por vezes, a telenovela. Estou parado, conscientemente, a deixar que me cilindrem com anúncios, séries, maus filmes. Mas estou descansado, aparentemente acéfalo, feliz.
Ler uma boa frase num livro. Adoro aforismos, sentenças, frases em geral, como as centenas que escrevi para o Pão Comanteiga, máximas sarcásticas, cínicas que, em poucas palavras, resumem um tratado psico-sócio-antropológico. Exemplo: “a maior força do Universo é a inércia”. Sinto-me feliz.”

Repararam, certamente, na diferença entre este escrito e os anteriores. Estava a melhorar. Mas, nunca fiando…
Esta listagem das coisas que me faziam sentir feliz, faz-me lembrar uma outra lista que eu gostaria de fazer: a das coisas que me chateiam como, por exemplo, abrir uma caixa de comprimidos e acertar, sempre, com o lado onde está a bula! Chego a dar duas ou três voltas à embalagem, antes de abrir mas, no fim, acabo por abri-la pelo lado errado. Outras coisas que me irritam solenemente: cortar as unhas das mãos (só o consigo fazer depois do banho, com as unhas húmidas), usar camisolas de lã que rocem o pescoço, sentir as calças apertadas na barriga, deparar com erros gramaticais nos órgãos de comunicação, ver alguém comer com a boca aberta, ter azia, não conseguir adormecer.
Naquele texto, refiro-me a uma coisa que me dava muito gozo: ir ao cinema com os meus filhos. É uma das vantagens de ter sido pai muito novo… Ainda hoje, muita gente fica admirada por eu já ter um filho com 28 anos e uma filha com 25… A culpa é da minha cara, que continua a não parecer ter a idade adequada. Parece ser uma característica da família – já que ninguém diz que, quer o Pedro, quer a Marta, têm a idade que têm. E o mesmo posso dizer da Mila, que continua fresca aos 49 como aos 29.
Outros filmes que vimos os quatro, em 84 e 85: “Ghostbusters”, no Império, “Gremlins” no Cinestúdio de Almada, “Neverending Story”, na Academia Almadense.


Com a mudança para a Almada, começou a ser mais fácil irmos os quatro ao cinema, no Centro Comercial ou na Academia Almadense.

E, já agora, outros filmes importantes daqueles anos: “1984”, segundo o livro do Orwell, o divertidíssimo “Meaning of Life”, dos Monty Python, “Zelig”, “Rosa Púrpura do Cairo” e “O Agente da Broadway”, do Woody Allen, “Amadeus”, do Milos Forman, “Dune”, do David Lynch, “O Padrinho” I e II, do Coppola, “Killing Fields”, do Joffe, “Paris, Texas”, do Wenders e “A Testemunha”, do Peter Weir, com o Harrison Ford.
Quanto a livros, continuava a devorar policiais e livros de ficção científica e, todos os meses, comprava o livrinho da Vampiro e da Argonauta. Às tantas, apercebi-me que estava a fazer mais uma colecção: comprava aqueles livros, não porque me desse prazer lê-los todos, mas porque me dava gozo tê-los todos. A minha preferência ia (e vai) para a Patrícia Highsmith, a Ruth Rendell, o Rex Stout e o Ross McDonald, no que respeita à literatura dita policial.
Em Setembro, estava entre programas de televisão, fazia consulta de manhã, a Mila fazia consulta à tarde, de modo que, depois do almoço, ficava a vegetar no terraço, sem nada para fazer e escrevia coisas como esta:

“Tenho que aproveitar estas tardes para escrever, aproveitá-las para fingir que sou um famoso autor.
Melhor! O famoso escritor solitário, sentado no terraço, sob o olhar terno e submisso do seu cocker spaniel, cujo nome denuncia um dos seus vícios: Gin Tonic. Porque todos os escritores têm enormes vícios: bebem que nem esponjas, fumam que nem máquinas a vapor e entregam-se a outras excentricidades, como aturar doentes, ver os desenhos animados do segundo canal, fazer a barba todos os dias, arranjar um tofina para a avó setentona e coleccionar bilhetes postais, isqueiros de deitar fora, autocolantes e telefonias antigas.”

No entanto, apesar deste aparente bem estar, as extrassístoles continuavam, eu ainda não tinha arranjado coragem para fazer um ecocardiograma e, de vez em quando, a ansiedade batia à porta. Aqui vai mais uma transcrição:

“De altos e baixos é tudo feito neste mundo a três dimensões. O pior é quando ele se torna chato.
As pessoas têm altos e baixos, o alto da cabeça, o baixo ventre, o alto do nariz, o baixo do braço. E também há altos e baixos da mente, espírito, alma, consciência, psique, astral ou seja lá o que for. Tenho andado numa tremenda crise de altos e baixos, que me tem deitado abaixo. Neste momento, o suor percorre-me a epiderme de um modo que não se coaduna com o calor que, apesar de ser algum, não justifica tamanho suadouro. A cabeça está quase oca e anda-me à roda. O coração palpita que nem uma batata frita. A ansiedade é óbvia. A razão nunca o é. Assim tenho estado, dia sim dia não, momento sim momento não, num frenesim constante de não saber como enfrentar, viver, assumir e resolver o velho problema de sempre. Não é um problema profundo, de alto valor nutritivo-filosófico: o que faço na vida? Por que estou aqui? Quem sou eu?
Saberia responder a estas perguntas se me preocupasse com elas. A pergunta é bem mais comezinha e, por isso mesmo, confrangedora: de que sofro eu? Porque estou sempre cheio de extrassístoles? Porque me sinto tão mal?
Estas tardes de inactividade têm-me permitido reflectir sobre tudo isto, mas sempre superficialmente e com resultados nulos. Dou uma volta com os miúdos e o cão e já não me apetece fazer mais nada, a libido anda por baixo, o corpo parece pesar toneladas e o medo assusta-me.
Depois de um período livre de mais ou menos quatro meses, eis que regressam os mesmos sintomas de sempre, a mesma sensação de que não estou bem em lado nenhum. A consulta corre-me bem, almoço bem mas o bichinho lá está, sempre a roer. Para a tarde, as coisas pioram. Que hei-de fazer? Escrever mais episódios de uma série que ninguém vai ler? Tocar viola? Ler? Estudar? Lanchar?
A inacção chega ao ponto de não ir buscar o carro para o pé da porta, para não ter que o lavar.
Quando assim estou, não sou capaz de comunicar livremente com os meus próprios filhos. Se não tivesse tanta “educação” e conhecimentos médicos, era capaz de estar constantemente a mandá-los calar.
O sono também. As toneladas que se abatem sobre as minhas pálpebras, o bocejo permanente e os olhos que piscam, se fecham quase a cada palavra que escrevo. Olhos húmidos, rogando que os feche e deixe que o sono reparador me infiltre. Será a adaptação a mais um estilo de vida? A depressão de me sentir “inútil” à tarde?
Penso que, no fundo, são sempre as ideias hipocondríacas. E por que não uma TP? Sim, por que não? A astenia física, psíquica e até sexual, os suores… Mas o aumento de peso, como bem e sou uma grande besta!
Segue-se o lanche, com café para tentar arrebitar e a procura de algo para fazer.
São 17 horas. A avó faz as palavras cruzadas do Diário Popular. O Pedro, a Marta e um amigo brincam a algo de extraordinário e fascinante, fechados no quarto. Eu como pão com manteiga, bebo um café e esfolo o tempo num trabalho de Penélope.
Desfaço, em pouco tempo, aquilo que me demorou horas, ou mesmo dias, a conseguir.
Caio na fossa, obrigo-me a sair dela, muitas vezes com a ajuda da Mila, aguento-me em cima durante algum tempo e depois, novo trambolhão. Porquê esta incapacidade de ficar inactivo? Por que não aproveitar para ler livros atrasados, que já devia ter lido (“Moravagine” ou “O Nome da Rosa”, por exemplo)? Ao fim e ao cabo, queimo o tempo com este diário benzodazepínico…
Descubro que, afinal, não sei viver sozinho. Amadureci e conquistei a minha independência, sempre numa simbiose com a Mila e, sem ela, não sei mesmo como ocupar o tempo. Daí eu ter saudado, em Abril passado, o Arroz Doce, o Pau de Canela, Pé de Vento e Intocáveis. Não havia tarde que não passasse a escrever ou que ocupasse com reuniões. Mas é claro que estou a rodear o problema. A ansiedade lá estava, as extrassístoles e a dúvida permanente. As coisas devem passar por mim e deixar traços indeléveis. No fundo, nunca penso muito nelas, nunca medito profundamente nas pequenas coisas que me acontecem todos os dias. Não tiro lições da vida, não aprendo a compreendê-las. Faço como o político, que promete mundos e fundos na campanha eleitoral, mas que rapidamente se esquece do que prometeu, quando chega a altura de cumprir. É raro o dia que não dou lições de vida às pessoas que me procuram como médico. Sei que são eficazes. Elas vêm agradecer-me. Mas para mim não há nada. Duas dezenas de cadernos, centenas de crises de ansiedade, algumas delas terríveis, centenas de conversas com a Mila, nada disso serviu ainda para me ajudar a ultrapassar estes momentos de desânimo, diria mesmo, de terror. Sempre lá no fundo, o mesmo desejo de dependência total: estou doente – que alguém me ajude, tenham pena de mim, tratem-me, acariciem-me, extraiam-me os meus conhecimentos médicos e digam-me mentiras piedosas, ou uma injecção para eu não ficar assim…”

Patético, é o que me apetece dizer…
As extrassístoles incomodavam-me e agravavam a minha ansiedade mas, acima de tudo, faziam-me temer uma qualquer doença cardíaca, que eu me recusava a diagnosticar, na medida em que fugia a fazer exames complementares. Não sei como reagiria se sofresse de urticária como a Mila… Tenho a impressão de que não aguentaria se, de repente, acordasse com a cara toda inchada, com as feições irreconhecíveis, com o corpo todo marcado por enormes babas vermelhas e com uma comichão de fazer perder a razão ao mais equilibrado. A Mila tem uma urticária crónica desde a adolescência e que surge inopinadamente, sem nenhum factor desencadeante que possa ser acusado. Aguenta aquilo firmemente, coça-se que nem uma perdida, enfia, de vez em quando, uma dose de Solu-dacortina para a veia e toma anti-histamínicos quase todos os dias. Grande Mila!
Mas enfim, era assim que eu me sentia, por vezes, naquele tempo. A tal astenia que eu sentia tinha a ver com o beta bloqueante que andava a tomar, um tal Trasicor que, além de não me eliminar as extrassístoles, diminuía-me de tal modo o ritmo cardíaco que só me apetecia dormir. Uma noite, em que estava de serviço no Serviço de Atendimento Permanente (SAP), em Almada, o ritmo cardíaco baixou para cerca de 40 por minuto e apanhei mesmo um grande susto, acabando por desistir do medicamento.
O SAP era o serviço de urgência, que funcionava todos os dias, 24 horas por dia; todas as semanas, tínhamos que fazer um turno de 12 horas, eu à segunda feira, a Mila, à quinta feira, embora nos calhasse um fim de semana de vez em quando. Era uma grande seca, sobretudo porque, da meia noite às 8 horas da manhã, raramente surgia uma situação verdadeiramente urgente; típico era o sacana que aparecia às 4 da manhã por causa de uma dor de dentes! Só depois de ter sido inaugurado o Hospital Garcia de Orta é que terminou o SAP nocturno; e foi preciso esperar pela experiência da nossa Unidade de Saúde e da Unidade da Cova da Piedade, criando serviços de atendimento diários, até às 22 horas, para que a Administração acedesse a só abrir o SAP aos fins de semana e feriados.
As noites no SAP eram uma chatice das antigas. Deitava-me, tentava dormir um pouco mas, às tantas, lá aparecia um doente. Transcrevo um pequeno texto escrito em Outubro, numa dessas noites de serviço:

“Chegou um doente!
Afinal foram quatro.
Aqui estou e, para dar uma imagem para a posteridade, como bolachas, bebo leite e escrevo; lá dentro, o enfermeiro Monteiro escarra, arrota e peida-se à fartazana!”

Concordemos que o ambiente sonoro do SAP era divertido, sempre que o enfermeiro Monteiro estava de serviço…
Nesse mesmo mês, a Marta começava as aulas da 4ª classe e o Pedro as do 7º ano; e o miúdo andava preocupado, pelo menos segundo este pequeno texto:

“O Pedro anda visivelmente perturbado com o início das aulas. Diz que gosta de assistir às aulas e, quando os professores faltam, gosta de conversar com os colegas, mas que se chateia de andar com a mala às costas, à procura das salas. Sábado à noite, foi para a cama às dez e picos ler o livro de História! E tem manifestado o seu interesse (súbito!) por esta disciplina. Chegou mesmo ao ponto de dizer que gostava de ser professor de História Universal!”

Coisas que os miúdos dizem, não é verdade?… Quem diria que um miúdo que se interessava assim tanto por História, que era um perito em Inglês (sempre com testes próximos da nota máxima) e cuja única negativa que teve, em todo o ensino liceal, foi a Desenho, se tornaria, mais tarde, num designer?…
Enfim, talvez o Pedro explique isso nas suas memórias…

 

 

 

 

 


 

 





 

 

 



Próximo capítulo: 30. O meu pai (1985)

 

Actualizado em: 25 Outubro 2003
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