29. O Monte de Caparica (1985)
A 19 de Janeiro de 1985, o nosso casamento completou uma
dúzia de anos. Dois dias antes, estava em casa com
os miúdos e a Mila estava de Banco, na Estefânia
– um dos últimos que fez como interna de Pediatria.
Já lhe comprara uma caixa de lápis de cor
Caran d´Ache para lhe oferecer no dia 19 mas estava
com vontade de lhe oferecer algo de mais pessoal. Foi então
que me lembrei de lhe escrever mais um livrinho de exemplar
único. De um jorro, escrevi-lhe uma espécie
de carta longa, em forma de livrinho de bolso, com doze
páginas, que depois encadernei com cartolina decorada
com um desenho feito com os lápis que lhe ia oferecer.
Acho que vale a pena transcrever essa espécie de
carta na íntegra:
“Resumir 12 anos de vida em comum numa só
tarde e em poucas páginas, é uma ideia peregrina
e impossível de realizar.
Mas surgiu-me hoje, assim de repente e achei que devia concretizá-la,
até porque há muitos anos que não te
ofereço nada confeccionado por mim.
Portanto, neste momento, e nesta primeira página,
não faço a mais pequena ideia do que vou escrever
a seguir... Utilizarei o método mais simples que
conheço: pensar em ti e nestes 12 anos que vivemos
juntos e, depois, escrever o que me vier à cabeça.
Só conseguimos viver uma vida saudável quando
nos apaixonamos pelas coisas e pelas pessoas. Uma vida sem
paixão é um vazio, é a depressão.
O Freud considerou algures que a paixão é
uma doença, mas o judeu disse muitas coisas, portanto
é natural que se tenha enganado algumas vezes.
Apesar dos revezes, dos azares, das desilusões e
de tudo o resto, posso gabar-me de, nestes 12 anos de vida,
ter vivido sempre apaixonado por alguma coisa.
As coisas foram passando e a minha paixão foi saltando
de umas coisas para outras: colecções de caixas
de fósforos e de rótulos variados, música
clássica, mortalhas, pintar pedras da calçada
e calhaus rolados, plantar alfaces e feijoeiros, estatísticas
das consultas, livros de poesias mais ou menos tontas, música
rock, pintura, literatura, cinema e por aí fora.
Umas paixões foram substituindo outras, mas nunca
estive desapaixonado.
Mas contigo foi diferente: há 12 anos que estou apaixonado
por ti e esse sentimento não tem sofrido grandes
alterações ao longo de todo este tempo. Existe
uma base de paixão, sempre acesa e, depois, de quando
em quando, grandes picos de intensidade tremenda.
E é esta paixão que me (nos) tem transportado,
ao longo da vida, ultrapassando os azares, as mudanças
de rumo, os altos e baixos, as dificuldades financeiras
– tudo!
Aqui há uns anos atrás, teria escrito um poema,
como já fiz, em que tentaria glorificar o nosso amor,
traduzindo-o por imagens mais ou menos românticas,
mais ou menos “revolucionárias”.
Essa fase já passou. Os poetas que escrevam os poemas.
Prefiro dizer coisas banais, mas verdadeiras, sem subterfúgios
e sem a preocupação de estar a respeitar a
gramática ou a beleza da construção
das frases. As coisas vão saindo, aos solavancos
– até porque, ao meu lado, batalhando com uma
ficha de matemática, está a Marta, às
voltas com o quádruplo e o quíntuplo de um
número, chateada que nem um peru com os trabalhos
da escola. A Marta, que nasceu de nós...
De vez em quando, é o Pedro que vem até à
sala. Há bocado, para me tocar uma melodia, no órgão,
melodia que ele tinha inventado. O Pedro que, ao fim e ao
cabo, é a causa de estarmos juntos há 12 anos.
E estes dois seres não existem desligados de ti e
de mim. Por muito independentes que eles sejam, por muito
crescidos que estejam, eles só existem, para mim,
porque tu existes, eu existo e a nossa união permanece.
E, ao escrever isto e ao olhar para a cara rosada da Marta
ou para as palhaçadas-tipo-break-dance que o Pedro
executa, não os vejo só a eles – mas,
sobretudo, vejo algo que não é visível:
a nossa paixão.
Penso que já não interessa dizer-te como te
desejo, como gosto do teu corpo, dos teus olhos, dos teus
cabelos. Sabes isso muito bem, no dia-a-dia, ou melhor,
na noite-a-noite, em que nos amamos cada vez melhor, com
a ciência da experiência acumulada.
Passou a fase de exaltar, por escrito, as tuas qualidades
como companheira, como mulher, como amante. Demonstro isso
todos os dias.
Existe algo de muito mais importante. E é daí
que decorre tudo o resto: a tal união de que estou
a falar desde o princípio, a tal paixão, o
tal fenómeno de difícil definição
– fenómeno que consiste numa espécie
de energia.
Energia que me faz, por exemplo, estar, neste momento, ansioso
pelo teu telefonema.
Hoje, dia 17 de Janeiro de 1985, estás de Banco 24
horas. Sei que estás bem, eu também estou
bem, a escrever-te este livrito e a ouvir a música
do Donovan. No entanto, apetece-me ouvir a tua voz, só
para me dizeres que estás cansada, ou que tens dores
de estômago, ou que o Banco está uma merda,
mas que está tudo bem e nós também,
telefonas logo? Beijinhos, até logo... E logo, voltas
a telefonar. Não tens nada de especial para me dizer,
nem eu a ti, mas não passamos sem isso...
Se pensares na nossa relação sob este prisma,
verás como ela é bela, exactamente por ser
assim simples, feita de coisas do quotidiano, das nossas
conversas sobre o futuro, sobre a nossa profissão
ou os meus escritos, os nossos filhos, as nossas despesas,
as coisas de todos os dias, que nós partilhamos,
com a mesma intensidade, a mesma verdade com que partilhamos
os nossos corpos.
De facto, é muito difícil de imaginar as nossas
vidas separadas e mesmo os nossos filhos farão, certamente,
notar isso, quando tiverem a sua vida própria. Desde
sempre que estão habituados a viver num ambiente
onde se fala do Artur e da Mila e – embora o Artur
tenhas as suas coisas e a Mila tenha as dela – os
dois funcionam como uma equipa: o pai e a mãe, o
marido e a mulher. Somos boas figuras de identificação
para eles. Até nisso não falhámos.
E não fizemos de propósito, como é
óbvio. Amamo-nos, fazemos as coisas em comum, mas
não estamos fundidos. Assim, os nossos filhos sabem
quem é o pai e quem é a mãe, sabem
que cada um tem o seu papel, mas que funcionam em equipa.
Isto parece complicado, e deve sê-lo para quem se
esforça por isso. Nós não precisamos
de nos esforçar – limitamo-nos a ser como somos
e a amarmo-nos.
O papel está-se mesmo a acabar e a inspiração
espontânea também.
Se fosse escrevendo isto aos poucos, dia a dia, sairia uma
coisa mais compostinha, com menos repetições
e não me esqueceria de coisas que falham aqui. No
entanto, perderia a espontaneidade. A ideia foi mesmo: e
seu escrevesse uma espécie de carta à Mila,
assim, de jorro?
Saiu isto.
Agora, penso fazer uma capa para isto, com um desenho meu,
o que vai ser um fartar de rir...”
Apesar da sua simplicidade, esta carta resume tudo o que
eu continuo a pensar da minha relação com
a Mila.
Eu e a Mila, 12 anos depois...
Em Fevereiro de 1985, fomos colocados no Centro de Saúde
de Almada, como clínicos gerais. Éramos os
mais velhos do grupo de médicos colocados nesse Centro
de Saúde, já que os restantes colegas eram
do curso de 81. A orientação da nossa carreira
mudada graças a um almoço, no primeiro dia
de 1985, no restaurante Detraz das Dunas, na Costa da Caparica,
em que gastámos, com os miúdos, 2 885 escudos
e em que encontrámos os tais colegas que também
estavam a fazer internato da especialidade e haviam decidido
mudar para Clínica Geral.
O Centro de Saúde de Almada era constituído
por uma série de Unidades de Saúde em Almada,
na Cova da Piedade e na Costa da Caparica. Vivíamos
em Almada há relativamente pouco tempo e, tirando
a cidade propriamente dita, e a praia, os restantes nomes
pouco nos diziam. Como havia duas vagas para a Unidade de
Saúde do Monte de Caparica, e os restantes colegas,
alguns vivendo em Lisboa, preferiam ficar na cidade, escolhemos
essas vagas, sem sequer sabermos onde ficava o tal Monte.
Quando nos fomos apresentar, ficámos um pouco desiludidos
– a Unidade de Saúde do Monte de Caparica ficava
(e fica) num prédio de habitação (mal)
adaptado. Era, ao fim e ao cabo, um Posto da Caixa de Previdência
que tinha mudado de nome. Fomos recebidos pelo Coordenador
médico, o Dr. Júlio Fonseca e começámos
a trabalhar no dia 5 de Março.
No meu primeiro dia de trabalho como clínico geral,
fiz apenas três consultas, mas rapidamente a minha
lista se foi enchendo e depressa ultrapassou os mil e quinhentos
utentes. Neste momento, 17 anos depois, tenho cerca de 1850
utentes inscritos na minha lista e quase 70% desses utentes
vão, pelo menos, uma vez por ano à minha consulta;
mas muitos vão muitas vezes, demasiadas vezes. A
campeã é a Dona Laurinda, que já consultei
cerca de 250 vezes nestes 16 anos, o que dá uma média
superior a 15 consultas por ano. Se, no meu primeiro dia
só tive três consultas, há muito tempo
que o meu grande sonho é chegar à Unidade
e a administrativa me dizer, espantada: “Doutor, hoje
não há doentes!”
Naquele tempo, a Clínica Geral ainda dava os primeiros
passos e quase não se falava em Médico de
Família. Apesar da mudança dos nomes, as pessoas
continuavam a chamar àquilo “Posto da Caixa”,
e a nós, evidentemente, “médicos da
Caixa”. Só fazíamos consulta ou de manhã,
ou de tarde, o que nos deixava muito tempo livre. Mas depressa
começámos a preencher esse tempo, começando
a fazer consultas de Saúde Materna, Planeamento Familiar
e Saúde Infantil. A pouco e pouco, os colegas que
já estavam colocados no Monte e que ainda não
faziam este tipo de consultas, começaram também
a fazê-las e, passado pouco tempo, descobrimos que
estávamos a formar uma equipa de saúde que,
ao longo de todos estes anos, se foi fortalecendo, tentando
melhorar os seus métodos de trabalho. O núcleo
duro mantém-se o mesmo: Artur, Mila, Inês,
Guimarães, Julia, Leitão (médicos),
Paula, Ana Maria, Carrilho (enfermeiros), Manuela, Jardim,
Afonso, Fátima e Isabel (administrativos). E penso
que tem sido esta constância – e também
o facto de sermos todos pessoas tolerantes e equilibradas
– que tem permitido o bom ambiente de trabalho que
se vive no Monte, apesar da pressão dos utentes,
da insuficiência do pessoal e das instalações,
das dificuldades próprias de uma Unidade de Saúde
que serve uma população pobre, grande parte
dela moradora nos chamados bairros sociais.
Fomos vendo crescer o Monte de Caparica; dezenas e dezenas
de novos prédios se foram construindo, no lugar de
antigas quintas, edificou-se a Faculdade de Ciências
e Tecnologia e o Instituto das Ciências da Saúde,
que para ali arrastou muita gente nova, a Ensul e a Meci
– duas pequenas empresas situadas mesmo junto à
Unidade de Saúde – cresceram e têm agora
grandes e modernas instalações, a população
residente e flutuante cresceu imenso, mas a Unidade continua
no mesmo velho prédio de habitação,
sem elevador, com três pisos e umas penosas escadas
que os doentes e os profissionais têm que subir e
descer vezes sem conta. Se pensarmos cinco minutos sobre
isto, só podemos ficar revoltados. O Serviço
de Saúde já é menosprezado por muitos
utentes, que não dão valor a uma coisa que
é gratuita ou quase e a usam como usam outros serviços
públicos, sem perceber que tratar de doentes não
é o mesmo que vender selos mas, com instalações
destas, degradadas, ainda menos importância lhe dão.
Falta dignidade à maior parte dos Centros de Saúde.
Mas isto são outras histórias que a seu tempo
serão mais aprofundadas.
No meu primeiro dia de consultas como médico de Clínica
Geral, após ter observado os meus únicos três
doentes do dia, passei o resto do tempo a escrever e produzi
esta reflexão sobre a Psiquiatria, que acabava de
abandonar:
“Uma mesa é um peça de mobiliário
sobre a qual se come ou se escreve ou se joga às
cartas. Mas não deixa de ser uma mesa se sobre ela
fizermos amor, ou cagarmos ou construirmos um castelo com
peças de Lego. Uma mesa quer-se arrumada. Cá
em casa, apesar do espírito arrumadinho que caracteriza
os progenitores, os filhos têm o saudável hábito
de deixar as coisas ao acaso. A secretária do Pedro
é um verdadeiro vazadouro de lixo de um milionário
excêntrico. Encontra-se lá de tudo, menos o
que é habitual encontrar-se numa secretária.
E, o que é mais interessante, é que ele próprio
não faz ideia de mais de metade das coisas que lá
estão. Vai daí, uma frase muito comum que,
quer eu, quer a Mila, pronunciamos acerca da mesa onde passamos
70% do nosso dia útil: “Olha como está
esta mesa!” E como está ela, habitualmente?
Cheia de livros, cadernos, máquina de escrever, o
pote com cravos vermelhos, tabaco e isqueiros, canetas das
mais variadas cores, carteiras, blocos, recibos da electricidade,
cinzeiros, papelinhos com as coisas que é preciso
fazer – para além de pratos que se partiram
e é preciso colar, o secador da Marta, que não
funciona, a Tucha da Joana, que tenho que devolver. Quer
com isto dizer que a mesa não devia ser assim. No
entanto, não deixa de ser uma mesa por isso.
E quanto à chamada doença mental e a Psiquiatria?
Esta será uma ciência, uma especialidade médica,
uma filosofia, uma tentativa de explicar comportamentos
chamados anormais? O psiquiatra de formação
dinâmica engloba, de um modo geral, o analista, o
grupanalista e similares, bem como todos os que, não
tendo feito análise, estão de acordo com as
bases da teoria freudiana. O psiquiatra dinâmico crê
na doença mental, definindo-a como um conjunto de
sinais e sintomas que formam um síndroma, que é
depois etiquetado dentro de um dos dois grandes grupos:
as neuroses e as psicoses, havendo também lugar para
um grupo intermédio, dos borderline. O psiquiatra
dinâmico percebe que certos sintomas surgem na sequência
de coisas que acontecem ao doente, coisas diferentes dos
agentes patogénicos habituais nas restantes doenças:
desprezo, solidão, excitação, contrariedade,
fracasso, perda de uma pessoa querida, desastre, catástrofe,
separação, etc., são outros tantos
factores desencadeantes. Por outras palavras: todos nós
nascemos e crescemos com núcleos ditos normais, e
outros neuróticos ou psicóticos. A proporção
de cada um destes núcleos vai depender do desenvolvimento
da criança nos primeiros anos de vida, de que forma
ela vive o desmame, o controlo esfincteriano, o nascimento
de um novo irmão, a descoberta de que o pai possui
a mãe, o complexo de Édipo, a masturbação,
as perdas, etc. Depois, o núcleo neurótico
ou psicótico pode ficar latente e eclodir após
um agressão exterior.
Mesmo descrita assim, tão sinteticamente e com tanta
falta de rigor, chega para nos sentirmos atraídos
por esta teoria. Acontece é que, assim como uma mesa
se define, não como um móvel que serve para
comer (porque serve para muitas outras coisas, como se viu),
também a doença se define por uma alteração
histopatológica, demonstrável em Anatomia
Patológica. E isso, qualquer que seja a forma como
a doença se manifesta. E, evidentemente, sabendo-se,
ou não, a sua etiologia e tratamento.
Chega-se, portanto, à conclusão de que, por
enquanto, não se pode chamar á neurose e à
psicose, doenças. Ao fim de quase um século
de pesquisas, ainda ninguém demonstrou uma alteração
histopatológica da esquizofrenia ou da neurose fóbica,
por exemplo. Enquanto essa descoberta não for feita,
não podemos afirmar a existência de doentes
mentais. Logo, a existência de médicos que
tratem os doentes mentais, é também obsoleta.
Mas existem, de facto, situações mais ou menos
bem definidas: a pessoa que está permanentemente
angustiada, com sintomas somáticos e psíquicos,
deprimida, etc. O que terá ela? Uma doença?
Uma desregulação neuro-humoral? Um conflito
intrapsíquico? E quanto ao dito esquizofrénico,
com delírios e alucinações?
Bom, para os mecanicistas, a resposta é simples:
há um desregulamento das aminas cerebrais, as sinapses
não funcionam bem e mais uma série de explicações
nunca comprovadas. Então, medicam com tranquilizantes,
antidepresssivos e antipsicóticos e os sintomas das
pessoas melhoram durante algum tempo.
Para os dinâmicos, a resposta é igualmente
simples, embora rodeiem essa simplicidade, misturando a
influência de muitos factores. E o que fazem? Se fazem
análise, bem podem publicar casos excepcionais de
cura, que todos eles sabem que são, de facto, excepcionais.
Resultarão, talvez, de uma boa relação
entre o analista e o analisado. No entanto, no fundo, o
que todos fazem é dar antidepresssivos, tranquilizantes
e antipsicóticos. Conclui-se que o resultado é
o mesmo.
Os organicistas, no fundo, temendo que o complexo de Édipo
exista, agarrando-se desesperadamente a explicações
mecanicistas, encharcando os doentes com drogas. Os dinâmicos,
temendo que existam causas orgânicas, agarrando-se
desesperadamente aos conflitos intrapsíquicos, encharcando
os doentes com drogas.
É um mundo de contradições. E os psiquiatras
temem essas contradições como os burocratas
temem que alguém demonstre, de uma vez por todas,
que o seu trabalho é desnecessário.
Apesar de tudo isso – que fazer a uma pessoa que voluntariamente
vem ter connosco, queixando-se de sintomas somatopsíquicos,
de ansiedade ou depressão, de delírios e alucinações?
Deve ela dirigir-se ao psiquiatra, a qualquer outro médico,
a um bombeiro ou a um guru indiano?
Quando se encontrar resposta para esta pergunta, teremos
metade da questão resolvida.
Antigamente, não havia psiquiatras e, por isso, não
havia malucos. Na Europa medieval, as pessoas eram possuídas
pelo demónio e, logicamente, eram levadas ao padre,
que as exorcizava. Depois, surgiram médicos que,
não conseguindo notoriedade em nenhuma das especialidades
já existentes e, desejando-a ardentemente, inventaram
a Psiquiatria e, consequentemente, os malucos, e foi um
campo infinitamente virgem que começaram a desbravar.
No futuro, a Psiquiatria desaparecerá. Aliás,
após o recuo da anti-psiquiatria, as sequelas foram
visíveis, e já se fala em Saúde Mental.
Novos nomes, reformismos, para tentar compor a imagem. É
sinal de que a instituição começa a
estar minada, agarrando-se desesperadamente a certos mitos,
entretanto criados. O louco furioso, por exemplo. Todos
os médicos o receiam e “ainda bem que há
psiquiatras!” É com a ajuda dos doente entretanto
inventados, da sociedade que rejeita as pessoas diferentes
e dos cientistas que continuam a acreditar na existência
de doenças mentais, é com essa ajuda, que
a fraude psiquiátrica se mantém.
Uma pessoa vem ter comigo, dizendo que já nada lhe
interessa na vida, que se quer matar, que passa o dia a
chorar. Eu convido-a a falar mais sobre isso, a contar-me
os seus problemas, não escamoteando os pormenores,
ela fala, eu respondo e oiço, posso também
contar algo da minha experiência. Foi uma consulta
médica? De modo nenhum! Foi, quanto muito, uma conversa
entre duas pessoas, uma troca de experiências que,
no final, teve como consequência o enriquecimento
de ambos. A pessoa mais vulnerável talvez tenha ganho
mais com essa experiência, mas isso não pode
chamar-se tratamento.”
Decidi transcrever este longo texto porque ele é
a minha primeira reflexão escrita sobre a Psiquiatria
e demonstra por que razão, acabei por desistir de
uma especialidade que me tinha desiludido. O texto está
um pouco confuso, fruto de não estar absolutamente
convicto do que escrevia. Hoje já não tenho
dúvidas. Existem, de facto, doenças mentais
– as psicoses – cuja etiologia ainda não
está demonstrada. Mas são doenças.
Doentes diferentes, de raças e credos diferentes,
vivendo em regiões diferentes do mundo, manifestam
a sua doença de modo muito semelhante – existem
pontos comuns nos temas dos delírios, comportamentos
semelhantes, que levam a acreditar que, para além
dos factores exógenos, existirão factores
genéticos, hormonais ou outros, que estão
na base deste tipo de doenças. No entanto, muitas
das situações, ainda hoje consideradas como
doenças mentais, não são verdadeiras
doenças, na correcta acepção da palavra;
estas situações, não deviam ser acompanhadas
por médicos, mas sim por psicólogos. Em relação
aos síndromas depressivos, por exemplo, temos casos
que se resolvem com psicoterapia e outros que precisam apenas
de seis meses de tratamento com um inibidor da recaptação
da serotonina. Haverá, portanto, indivíduos
deprimidos com excesso de serotonina nas sinapses (doença)
e que devem ser tratados por médicos e outros, cujos
conflitos intrapsíquicos jogam um papel determinante
na génese da sua depressão, e que beneficiarão
apenas da psicoterapia; talvez haja até quem tenha
as duas coisas e necessite, então, de um bom antidepressivo
e de um bom psicólogo. O psiquiatra é que
não faz falta nenhuma. Há umas décadas,
a especialidade que tratava destas doenças era a
Neuro-Psiquiatria; depois, os psiquiatras tornaram-se independentes.
Havemos de voltar aos especialistas em doenças do
Sistema Nervoso Central e os Psicólogos tomarão
conta do resto.
Aquele longo texto refere-se, também, a uma das nossas
grandes lutas contra o nosso filho Pedro: a desarrumação.
Fomos derrotados em toda a linha. O quarto do Pedro foi
sempre (e continua a ser) a grande confusão. E como
eu e a Mila somos muito arrumadinhos (quase obsessivamente
arrumadinhos), essa desarrumação terá
sido o modo que o Pedro encontrou para confrontar a autoridade
paterna. Por exemplo, quando estou em casa, tenho sempre
um disco a rodar; o disco acaba, guardo-o na prateleira
e ponho outro no leitor; o Pedro vai empilhando os discos
e só quando a pilha começa a parecer-se perigosamente
com os Himalaias – ou quando lhe dá a fúria
da arrumação, o que é raro –
é que volta a colocar os discos no seu sítio.
É apenas um pequenino exemplo mas, se o meu filho
sempre me viu arrumar tudo, por que razão faz ao
contrário? Bom, talvez seja, também, por confrontação
que o Pedro nunca fumou, bem como a Marta, o que é
curioso. Os meus pais nunca fumaram, eu sou fumador; eu
e a Mila sempre fumámos, os nossos filhos não
são fumadores. Mistérios…
A Clínica Geral trouxe-nos, finalmente, a estabilidade
por que tanto ansiávamos. Estávamos a cerca
de dez minutos de carro da Unidade de Saúde e, pela
frente, uma carreira segura, sem mais sobressaltos, sem
mais mudanças. E a trabalhar por nossa conta e risco,
directamente com as pessoas. Esta é, aliás,
a grande diferença entre a Medicina Hospitalar e
a Clínica Geral: no hospital, nós tratamos
doenças – no ambulatório, tratamos doentes;
o doente entra no hospital, é tratado, tem alta e,
regra geral, nunca mais o vemos – no ambulatório,
o doente nunca tem alta e vamos acompanhando toda a sua
vida. Neste momento, os primeiros recém-nascidos
que eu consultei, no Monte, em 1985, já têm
17 anos; tenho visto crescer muitos dos meus doentes, vejo-os
casarem-se, sigo-lhes a gravidez e, depois, sigo os respectivos
filhos. Conheço todos os meus doentes pelo nome,
sei onde moram, o que fazem na vida, as doenças que
já tiveram. É, de facto, aliciante.
E se a estabilidade tinha, finalmente, chegado, começámos
a pensar em comprar uma casa. Só para apalpar o mercado,
em Março decidimos ir a uma agência mediadora,
a fim de vermos algumas casas. Vale a pena transcrever o
episódio seguinte, que descrevo no caderninho:
“Há muito tempo que, no Diário
de Notícias, surgem anúncios deste género:
“Habite já a sua casa, sem entrada, sem outros
encargos, por 17 contos mensais, 3-4 assoalhadas, Almada”.
E se fôssemos ver? Aí vamos nós. Acabámos
por descobrir que o “escritório” de vendas
fica mesmo ao cimo da nossa rua. É um escritório
kafkiano; cá fora, na campainha, dizia “cabeleireiro”,
mas já caíram tantas vogais que apenas se
consegue adivinhar o que lá estava escrito. Tocamos
à campainha e surge um rapazinho, de gravata, muito
semelhante aos meninos de Deus que andam por aí de
nome na lapela e bíblia debaixo do braço,
distribuindo a verdade gratuitamente. Nas faustosas instalações,
onde pululam dossiers e móveis velhos, põe-nos
logo ao corrente da situação: são casas
que foram ocupadas e que se encontram um pouco degradadas.
As condições de pagamento são, de facto,
as do anúncio, e o preço é de 3 700
contos. Vamos ver? Por que não? Evidenciando sinais
inequívocos de demência, para além de
uma ligeira ataxia, arruma a sua pasta tipo executivo, através
do curioso método de atirar com as coisas lá
para dentro. Seguimo-lo, mais ou menos receosos. Vamos no
carro dele, já que a casa fica perto do Laranjeiro.
O carro trata-se de um conjunto de peças outrora
pertencentes a um Renault 5 e possui algumas modificações
curiosas, como um tijolo que impede que o banco do motorista
se esparrame para trás. A viagem até ao Laranjeiro
é uma verdadeira corrida contra a morte. Infringe
o código de estrada diversas vezes, ultrapassa carros
perigosamente, mete a terceira quando o motor pede a segunda
e é com grande alívio que, uma eternidade
depois, chegamos ao imóvel em questão. A degradação
é total. O elevador não pára no primeiro
andar, pelo que ele tem que ir à cave buscá-lo.
E a casa é uma maravilha de buracos na parede, canos
arrancados, tacos soltos, rodapés fora do sítio:
quatro assoalhadas pequeníssimas, com uma linda vista
sobre as barracas da região. Havia um hall para o
qual se abriam três portas: a da cozinha, a da casa
de banho e a da despensa, de modo que, duas teriam que estar
fechadas, para que a terceira se pudesse abrir. Naquele
hall poderia filmar-se uma sequência giríssima
de um filme mudo. Regressámos correndo os mesmos
riscos e despedimo-nos aliviados.”
Desistimos de comprar casa, claro. Apesar de, economicamente,
a coisa já não estar tão má
como antes, ainda não dava para uma boa entrada:
eu estava a ganhar cerca de 160 contos por mês com
os meus escritos para o Júlio Isidro, Solnado e Paulo
Fernando e, como médicos, ganhávamos, cada
um, 55 contos. Fomos amealhando... Entretanto, decidimos
investir algum dinheiro na nossa casa alugada: pela primeira
vez em 12 anos de casamento, gastámos umas notas
valentes em móveis e até fomos passar uma
semana ao Algarve, com os miúdos! O Gin, que tinha
entrado para a família há pouco tempo, ficou
em casa a tomar conta da avó Rita. No final do ano,
trocámos o órgão Casio por um Siel,
que custou 60 notas, e já soava a Mike Oldfield (mas
pouco…)
Com esta estabilidade, a minha ansiedade, melhorava. Em
Setembro, escrevi um texto sobre coisas que me fazem sentir
bem, que transcrevo:
“À noite, depois do amor, trinco três
ou quatro bolachas torradas (prefiro as Triunfo) enquanto
leio um livro policial (neste momento, “A Caixa Vermelha”,
do Rex Stout). Terminada a mastigação, bebo
um copo de água fresca e penso – tantas vezes!
– como é bom beber um copo de água!
Que bebida mais satisfatória! Que maravilhosa sensação
senti-la percorrer o esófago! Sinto-me verdadeiramente
feliz!
O gin tónico tornou-se um hábito, que não
poderei dizer salutar e, por vezes, bebo-o como tal, um
hábito, e até nem sabe a nada. No entanto,
antes do almoço, depois de uma consulta em que me
fartei de falar, que bom que é saborear um gin bem
fresquinho! Ou antes do jantar, depois de um duche, nestes
dias estivais. Que frescura! Sinto-me mesmo feliz.
Tirar macacos do nariz é uma actividade a que me
entrego quase por acaso, sem dar por isso. No entanto, por
vezes, faço-o deliberadamente. E tenho sempre macacos
para tirar. São pegajosos e elásticos e agrada-me
tirá-los, enrolá-los e atirá-los para
longe ou colá-los no banco do carro. Quando saem,
sinto-me feliz.
Nestes dias quentes, deitar-me, todo nu, sobre a cama, enquanto
a Mila, ao lado, depois de trinta segundos em pelota, se
tapa até ao pescoço com lençóis
e cobertores, porque treme de frio quando está a
adormecer. Acho engraçado e sinto-me feliz.
Reparar que, quase de repente (desde o início deste
ano), vamos os quatro ao cinema, sem nos obrigarmos a ver
filmes infantis e todos nos divertimos. Foi “Um Cadáver
à Sobremesa”, foi “Indiana Jones e o
Templo Perdido” e foram outros. Somos uma família,
funcionamos em grupo – sinto-me feliz.
Depois do jantar, depois de um dia de doentes, sem ter que
escrever patetices para o Isidro, ficar, feito estúpido,
a olhar para a TV, de perna estendida, a “comer”
quase tudo o que eles transmitem, incluindo, por vezes,
a telenovela. Estou parado, conscientemente, a deixar que
me cilindrem com anúncios, séries, maus filmes.
Mas estou descansado, aparentemente acéfalo, feliz.
Ler uma boa frase num livro. Adoro aforismos, sentenças,
frases em geral, como as centenas que escrevi para o Pão
Comanteiga, máximas sarcásticas, cínicas
que, em poucas palavras, resumem um tratado psico-sócio-antropológico.
Exemplo: “a maior força do Universo é
a inércia”. Sinto-me feliz.”
Repararam, certamente, na diferença entre este escrito
e os anteriores. Estava a melhorar. Mas, nunca fiando…
Esta listagem das coisas que me faziam sentir feliz, faz-me
lembrar uma outra lista que eu gostaria de fazer: a das
coisas que me chateiam como, por exemplo, abrir uma caixa
de comprimidos e acertar, sempre, com o lado onde está
a bula! Chego a dar duas ou três voltas à embalagem,
antes de abrir mas, no fim, acabo por abri-la pelo lado
errado. Outras coisas que me irritam solenemente: cortar
as unhas das mãos (só o consigo fazer depois
do banho, com as unhas húmidas), usar camisolas de
lã que rocem o pescoço, sentir as calças
apertadas na barriga, deparar com erros gramaticais nos
órgãos de comunicação, ver alguém
comer com a boca aberta, ter azia, não conseguir
adormecer.
Naquele texto, refiro-me a uma coisa que me dava muito gozo:
ir ao cinema com os meus filhos. É uma das vantagens
de ter sido pai muito novo… Ainda hoje, muita gente
fica admirada por eu já ter um filho com 28 anos
e uma filha com 25… A culpa é da minha cara,
que continua a não parecer ter a idade adequada.
Parece ser uma característica da família –
já que ninguém diz que, quer o Pedro, quer
a Marta, têm a idade que têm. E o mesmo posso
dizer da Mila, que continua fresca aos 49 como aos 29.
Outros filmes que vimos os quatro, em 84 e 85: “Ghostbusters”,
no Império, “Gremlins” no Cinestúdio
de Almada, “Neverending Story”, na Academia
Almadense.
Com a mudança para a Almada, começou a
ser mais fácil irmos os quatro ao cinema, no Centro
Comercial ou na Academia Almadense.
E, já agora, outros filmes importantes daqueles
anos: “1984”, segundo o livro do Orwell, o divertidíssimo
“Meaning of Life”, dos Monty Python, “Zelig”,
“Rosa Púrpura do Cairo” e “O Agente
da Broadway”, do Woody Allen, “Amadeus”,
do Milos Forman, “Dune”, do David Lynch, “O
Padrinho” I e II, do Coppola, “Killing Fields”,
do Joffe, “Paris, Texas”, do Wenders e “A
Testemunha”, do Peter Weir, com o Harrison Ford.
Quanto a livros, continuava a devorar policiais e livros
de ficção científica e, todos os meses,
comprava o livrinho da Vampiro e da Argonauta. Às
tantas, apercebi-me que estava a fazer mais uma colecção:
comprava aqueles livros, não porque me desse prazer
lê-los todos, mas porque me dava gozo tê-los
todos. A minha preferência ia (e vai) para a Patrícia
Highsmith, a Ruth Rendell, o Rex Stout e o Ross McDonald,
no que respeita à literatura dita policial.
Em Setembro, estava entre programas de televisão,
fazia consulta de manhã, a Mila fazia consulta à
tarde, de modo que, depois do almoço, ficava a vegetar
no terraço, sem nada para fazer e escrevia coisas
como esta:
“Tenho que aproveitar estas tardes para escrever,
aproveitá-las para fingir que sou um famoso autor.
Melhor! O famoso escritor solitário, sentado no terraço,
sob o olhar terno e submisso do seu cocker spaniel, cujo
nome denuncia um dos seus vícios: Gin Tonic. Porque
todos os escritores têm enormes vícios: bebem
que nem esponjas, fumam que nem máquinas a vapor
e entregam-se a outras excentricidades, como aturar doentes,
ver os desenhos animados do segundo canal, fazer a barba
todos os dias, arranjar um tofina para a avó setentona
e coleccionar bilhetes postais, isqueiros de deitar fora,
autocolantes e telefonias antigas.”
No entanto, apesar deste aparente bem estar, as extrassístoles
continuavam, eu ainda não tinha arranjado coragem
para fazer um ecocardiograma e, de vez em quando, a ansiedade
batia à porta. Aqui vai mais uma transcrição:
“De altos e baixos é tudo feito neste
mundo a três dimensões. O pior é quando
ele se torna chato.
As pessoas têm altos e baixos, o alto da cabeça,
o baixo ventre, o alto do nariz, o baixo do braço.
E também há altos e baixos da mente, espírito,
alma, consciência, psique, astral ou seja lá
o que for. Tenho andado numa tremenda crise de altos e baixos,
que me tem deitado abaixo. Neste momento, o suor percorre-me
a epiderme de um modo que não se coaduna com o calor
que, apesar de ser algum, não justifica tamanho suadouro.
A cabeça está quase oca e anda-me à
roda. O coração palpita que nem uma batata
frita. A ansiedade é óbvia. A razão
nunca o é. Assim tenho estado, dia sim dia não,
momento sim momento não, num frenesim constante de
não saber como enfrentar, viver, assumir e resolver
o velho problema de sempre. Não é um problema
profundo, de alto valor nutritivo-filosófico: o que
faço na vida? Por que estou aqui? Quem sou eu?
Saberia responder a estas perguntas se me preocupasse com
elas. A pergunta é bem mais comezinha e, por isso
mesmo, confrangedora: de que sofro eu? Porque estou sempre
cheio de extrassístoles? Porque me sinto tão
mal?
Estas tardes de inactividade têm-me permitido reflectir
sobre tudo isto, mas sempre superficialmente e com resultados
nulos. Dou uma volta com os miúdos e o cão
e já não me apetece fazer mais nada, a libido
anda por baixo, o corpo parece pesar toneladas e o medo
assusta-me.
Depois de um período livre de mais ou menos quatro
meses, eis que regressam os mesmos sintomas de sempre, a
mesma sensação de que não estou bem
em lado nenhum. A consulta corre-me bem, almoço bem
mas o bichinho lá está, sempre a roer. Para
a tarde, as coisas pioram. Que hei-de fazer? Escrever mais
episódios de uma série que ninguém
vai ler? Tocar viola? Ler? Estudar? Lanchar?
A inacção chega ao ponto de não ir
buscar o carro para o pé da porta, para não
ter que o lavar.
Quando assim estou, não sou capaz de comunicar livremente
com os meus próprios filhos. Se não tivesse
tanta “educação” e conhecimentos
médicos, era capaz de estar constantemente a mandá-los
calar.
O sono também. As toneladas que se abatem sobre as
minhas pálpebras, o bocejo permanente e os olhos
que piscam, se fecham quase a cada palavra que escrevo.
Olhos húmidos, rogando que os feche e deixe que o
sono reparador me infiltre. Será a adaptação
a mais um estilo de vida? A depressão de me sentir
“inútil” à tarde?
Penso que, no fundo, são sempre as ideias hipocondríacas.
E por que não uma TP? Sim, por que não? A
astenia física, psíquica e até sexual,
os suores… Mas o aumento de peso, como bem e sou uma
grande besta!
Segue-se o lanche, com café para tentar arrebitar
e a procura de algo para fazer.
São 17 horas. A avó faz as palavras cruzadas
do Diário Popular. O Pedro, a Marta e um amigo brincam
a algo de extraordinário e fascinante, fechados no
quarto. Eu como pão com manteiga, bebo um café
e esfolo o tempo num trabalho de Penélope.
Desfaço, em pouco tempo, aquilo que me demorou horas,
ou mesmo dias, a conseguir.
Caio na fossa, obrigo-me a sair dela, muitas vezes com a
ajuda da Mila, aguento-me em cima durante algum tempo e
depois, novo trambolhão. Porquê esta incapacidade
de ficar inactivo? Por que não aproveitar para ler
livros atrasados, que já devia ter lido (“Moravagine”
ou “O Nome da Rosa”, por exemplo)? Ao fim e
ao cabo, queimo o tempo com este diário benzodazepínico…
Descubro que, afinal, não sei viver sozinho. Amadureci
e conquistei a minha independência, sempre numa simbiose
com a Mila e, sem ela, não sei mesmo como ocupar
o tempo. Daí eu ter saudado, em Abril passado, o
Arroz Doce, o Pau de Canela, Pé de Vento e Intocáveis.
Não havia tarde que não passasse a escrever
ou que ocupasse com reuniões. Mas é claro
que estou a rodear o problema. A ansiedade lá estava,
as extrassístoles e a dúvida permanente. As
coisas devem passar por mim e deixar traços indeléveis.
No fundo, nunca penso muito nelas, nunca medito profundamente
nas pequenas coisas que me acontecem todos os dias. Não
tiro lições da vida, não aprendo a
compreendê-las. Faço como o político,
que promete mundos e fundos na campanha eleitoral, mas que
rapidamente se esquece do que prometeu, quando chega a altura
de cumprir. É raro o dia que não dou lições
de vida às pessoas que me procuram como médico.
Sei que são eficazes. Elas vêm agradecer-me.
Mas para mim não há nada. Duas dezenas de
cadernos, centenas de crises de ansiedade, algumas delas
terríveis, centenas de conversas com a Mila, nada
disso serviu ainda para me ajudar a ultrapassar estes momentos
de desânimo, diria mesmo, de terror. Sempre lá
no fundo, o mesmo desejo de dependência total: estou
doente – que alguém me ajude, tenham pena de
mim, tratem-me, acariciem-me, extraiam-me os meus conhecimentos
médicos e digam-me mentiras piedosas, ou uma injecção
para eu não ficar assim…”
Patético, é o que me apetece dizer…
As extrassístoles incomodavam-me e agravavam a minha
ansiedade mas, acima de tudo, faziam-me temer uma qualquer
doença cardíaca, que eu me recusava a diagnosticar,
na medida em que fugia a fazer exames complementares. Não
sei como reagiria se sofresse de urticária como a
Mila… Tenho a impressão de que não aguentaria
se, de repente, acordasse com a cara toda inchada, com as
feições irreconhecíveis, com o corpo
todo marcado por enormes babas vermelhas e com uma comichão
de fazer perder a razão ao mais equilibrado. A Mila
tem uma urticária crónica desde a adolescência
e que surge inopinadamente, sem nenhum factor desencadeante
que possa ser acusado. Aguenta aquilo firmemente, coça-se
que nem uma perdida, enfia, de vez em quando, uma dose de
Solu-dacortina para a veia e toma anti-histamínicos
quase todos os dias. Grande Mila!
Mas enfim, era assim que eu me sentia, por vezes, naquele
tempo. A tal astenia que eu sentia tinha a ver com o beta
bloqueante que andava a tomar, um tal Trasicor que, além
de não me eliminar as extrassístoles, diminuía-me
de tal modo o ritmo cardíaco que só me apetecia
dormir. Uma noite, em que estava de serviço no Serviço
de Atendimento Permanente (SAP), em Almada, o ritmo cardíaco
baixou para cerca de 40 por minuto e apanhei mesmo um grande
susto, acabando por desistir do medicamento.
O SAP era o serviço de urgência, que funcionava
todos os dias, 24 horas por dia; todas as semanas, tínhamos
que fazer um turno de 12 horas, eu à segunda feira,
a Mila, à quinta feira, embora nos calhasse um fim
de semana de vez em quando. Era uma grande seca, sobretudo
porque, da meia noite às 8 horas da manhã,
raramente surgia uma situação verdadeiramente
urgente; típico era o sacana que aparecia às
4 da manhã por causa de uma dor de dentes! Só
depois de ter sido inaugurado o Hospital Garcia de Orta
é que terminou o SAP nocturno; e foi preciso esperar
pela experiência da nossa Unidade de Saúde
e da Unidade da Cova da Piedade, criando serviços
de atendimento diários, até às 22 horas,
para que a Administração acedesse a só
abrir o SAP aos fins de semana e feriados.
As noites no SAP eram uma chatice das antigas. Deitava-me,
tentava dormir um pouco mas, às tantas, lá
aparecia um doente. Transcrevo um pequeno texto escrito
em Outubro, numa dessas noites de serviço:
“Chegou um doente!
Afinal foram quatro.
Aqui estou e, para dar uma imagem para a posteridade, como
bolachas, bebo leite e escrevo; lá dentro, o enfermeiro
Monteiro escarra, arrota e peida-se à fartazana!”
Concordemos que o ambiente sonoro do SAP era divertido,
sempre que o enfermeiro Monteiro estava de serviço…
Nesse mesmo mês, a Marta começava as aulas
da 4ª classe e o Pedro as do 7º ano; e o miúdo
andava preocupado, pelo menos segundo este pequeno texto:
“O Pedro anda visivelmente perturbado com o início
das aulas. Diz que gosta de assistir às aulas e,
quando os professores faltam, gosta de conversar com os
colegas, mas que se chateia de andar com a mala às
costas, à procura das salas. Sábado à
noite, foi para a cama às dez e picos ler o livro
de História! E tem manifestado o seu interesse (súbito!)
por esta disciplina. Chegou mesmo ao ponto de dizer que
gostava de ser professor de História Universal!”
Coisas que os miúdos dizem, não é
verdade?… Quem diria que um miúdo que se interessava
assim tanto por História, que era um perito em Inglês
(sempre com testes próximos da nota máxima)
e cuja única negativa que teve, em todo o ensino
liceal, foi a Desenho, se tornaria, mais tarde, num designer?…
Enfim, talvez o Pedro explique isso nas suas memórias…
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