30. O meu pai (1985)
Na madrugada do dia 6 de Julho de 1985, alguém telefonou..
O meu pai tinha morrido. Um enfarto do miocárdio
aos 58 anos. Estava em Mangualde, com a mulher, sentiu-se
mal, foi ao hospital, deram-lhe uma injecção,
voltou para casa e, passado pouco tempo, morreu.
É-me difícil recordar o que senti na altura.
A relação com o meu pai sempre foi difícil.
Ele tinha uma grande dificuldade em demonstrar afecto. Era
do tempo em que os homens não devem dar beijinhos
e fazer festinhas – do tempo em que os homens não
choravam. Mas ele chorou quando a minha mãe morreu.
Agarrado a mim, à porta do Hospital de Santa Maria,
chorou como nenhuma mulher consegue chorar; chorou como
choram os homens que não sabem chorar – como
choram os homens que não devem chorar. Um choro seco,
convulsivo, sem lágrimas.
As guerras com o meu pai, durante a minha adolescência,
foram as do costume e, embora desnecessárias, não
me fizeram grande mal. Mas um pouco mais de ternura talvez
tivesse ajudado.
Lembro-me de ouvir dizer que o meu pai nunca tinha férias
o que, para mim, parecia quase heróico. Não
tenho bem a certeza, mas acho que trabalhou durante 19 anos,
sem férias; saía de manhã cedo e voltava
ao fim do dia; muitas vezes, só voltava no dia seguinte,
quando havia um daqueles grandes paquetes para descarregar.
Teria gostado de ir visitar um desses grandes paquetes.
O meu pai poderia ter-me levado, mas nunca o fez. Mas eu
também nunca lhe pedi. Era assim que a coisa (não)
funcionava: ele não fazia, eu não pedia e
ele não fazia porque eu não pedia e eu não
pedia porque receava que ele não fizesse.
O casamento dos meus pais, 1952.
Afectos exteriorizados, só no futebol; aí,
gritava, vociferava, chamava nomes ao árbitro, saltava
sobre as bancadas, tremia de indignação, chegava
a meter-me medo. Colérico. Em casa, às vezes,
também. Nunca me bateu mas, por uma coisa de nada,
berrava até ficar rouco. “Cá em casa
só de ferro!” – era a sua frase preferida,
quando algo se quebrava. Mas ele era assim mesmo. Percebo
isso agora. Mas, naqueles tempos, ficava indignado. Como
é que um adulto não era capaz de ver que as
coisas, às vezes, se partem?
O meu pai gostava da pinga. Não era um alcoólico
mas, de vez em quando, exagerava. Lembro-me de o ver chegar
a casa, certa noite, com um grãozinho na asa. Nesse
dia, muito bem disposto e, perante os protestos da minha
mãe (“Ó Zé, não tens vergonha?…”),
foi buscar um balde da praia, que colocou na cabeça,
pôs uma toalha pelas costas e postou-se de joelhos,
frente à minha mãe, pedindo perdão
e dizendo que era um dos reis magos!
No fundo, o meu pai era um lisboeta típico do velho
Bairro Alto – um fadista que se entregou à
vida familiar, deixando a vadiagem. O seu assobio era inconfundível.
Quando íamos a casa da minha avó paterna,
na Travessa da Espera, o meu pai raramente subia ao 3º
andar para cumprimentar a mãe. Ficava lá em
baixo, na rua, a conversar com os velhos amigalhaços,
os companheiros das noites de solteiro. Quando achava que
eram horas de regressarmos a casa, postava-se na esquina
da Travessa da Espera com a Rua da Barroca e assobiava.
A minha mãe sabia que era o sinal para nos metermos
no Simca Around preto (que carro bonito!) e voltarmos para
Benfica.
O Simca Around foi desfeito por um comboio, com o meu pai
lá dentro. Lembro-me de o ver chegar a casa, nessa
noite, muito combalido e lívido; eu ainda não
devia ter 8 anos porque sei que o Paulo ainda não
existia nesta cena. O meu pai estava atrasado e a minha
mãe andava de um lado para o outro, aflita. Tenho
presente na minha memória a imagem do meu pai, no
átrio do prédio, com ar de desenterrado vivo
e a minha mãe perguntando-lhe o que tinha acontecido.
Na Rocha do Conde de Óbidos havia comboios que faziam
o transporte de mercadorias para os navios; os carris atravessavam
a estrada, sem qualquer protecção. Foi um
desses comboios que colheu o Simca; o meu pai terá
guinado o carro e o comboio levou a parte direita do veículo.
O Zé Couto safou-se da morte por pouco. Assim, devido
a mais um acaso da vida, o Paulo e a Bela puderam existir…
Acho curioso não me recordar que carro o meu pai
comprou depois da destruição do Simca. Lembro-me
do Ford Escort castanho metalizado, com que ele me levava
ao Liceu D. João de Castro, mas nessa altura já
eu tinha 16 anos. Do Simca lembro-me perfeitamente –
até da matrícula: LD-21-10.
Fadista, o meu pai? Não me parece. Tanto quanto me
lembro, não ouvia música e não tinha
nenhuma predilecção especial pelo fado –
rock, odiava e não se cansava de me referir que era
música de tachos e panelas, feita por maricas. Fadista
não seria, mas era malandreco. No mesmo móvel
em que tinha os maços de tabaco estrangeiro, onde
eu fui sacar o Dunhill com que me iniciei como fumador,
também tinha um compartimento, devidamente fechado
à chave. Descobri o esconderijo da chave e fui encontrar,
nesse compartimento, inúmeras revistas eróticas
e pornográficas. Que pena ter-lhes perdido o rasto!
Inspiraram-me bons momentos no início da adolescência,
se percebem o que quero dizer. E agora, seria interessante
rever aquelas páginas em que moças roliças
mostravam as generosas mamas e as amplas coxas, por entre
cetins e rendinhas. Erotismo do final dos anos 50. Recordo-me
bem do cheiro daquelas páginas. Eram francesas, as
revistas; as moças, não sei…
Afinal, não faço ideia de como era o meu pai.
Chego à conclusão de que nunca tive intimidade
suficiente com o meu pai para o perceber melhor. Quando
poderíamos, talvez, estreitar mais as nossas relações,
como adultos, afastámo-nos ainda mais, com o seu
segundo casamento.
E depois, morreu.
O Zé Couto, se ainda fosse vivo, teria agora 74 anos.
Gostaria de voltar a ir à bola com ele.
O meu pai havia de gostar de ver o Mantorras jogar…
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