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O Coiso
Memórias de um fumador
50 anos de história


4. O Passos com três esses (1970/71)

Esta história do Passos com três esses é uma das minhas obsessões (com quatro esses); não propriamente o Passos, mas o que ele significa como brincadeira de palavras. "Como é que se escreve Passos Manuel?… com "cê" de cedilha ou com dois esses?", pergunta alguém. A resposta correcta é: nem de uma maneira nem de outra - Passos Manuel é com três esses. Percebem?
Tenho alguma dificuldade em transmitir o prazer que me dá brincar com as palavras mas, felizmente, tenho tido sorte ao longo da vida porque, não só tive oportunidade de ganhar algum dinheiro a brincar com as palavras, sobretudo no "Pão Comanteiga", como tanto a Mila como os meus filhos gostam destas brincadeiras e, sobretudo o meu filho mais velho, também alinha sempre que surge a oportunidade.
Não posso precisar quando comecei a fazer trocadilhos e a gozar com os vários sentidos das palavras mas, no Liceu Passos Manuel, foi a primeira vez que publiquei algumas dessas frases de que eu tanto gosto.
Como bons alunos do 7º ano, finalistas do liceu, alguns elementos da turma E decidiram editar um pequeno jornal. Chamava-se "Conflito" e dele saíram apenas dois números. Angariámos publicidade para ajudar a pagar o stencil e tudo. Alguns comerciantes tiveram a gentileza de patrocinar um jornal de estudantes, o que é de louvar. Tínhamos anúncios da Livraria Portugal, situada na Rua do Carmo, 70-74, da Rosicler - que "veste hoje o homem de amanhã" - situada na Rua da Assunção, 71 e na Rua Augusta, 189, e ainda da Confeitaria Bijou do Calhariz. Rezava o anúncio da confeitaria que ela possuía "esmerado fabrico em todos os artigos de confeitaria, completo sortimento em licores e vinhos finos; fornecemos os melhores serviços para casamentos, baptizados e soirées"; e eu acrescentei uns versinhos para alindar a coisa: "indo a subir a calçada/ um cheiro me chegou ao nariz/ eram os ricos bolinhos/ do Bijou do Calhariz". Lindo!… E o Bijou bem merecia isto e muito mais, já que nós passávamos mais tempo sentados na confeitaria a beber bicas e a fumar cigarros do que nas aulas.
Desfolhando o "Conflito", uma coisa salta logo à vista: tirando as ilustrações que eram da autoria de um tal Alfarroba (que não faço a mínima ideia de quem tenha sido), quase todos os textos são meus - poemas, pequenos contos, textos pseudo-científicos e, claro, frases curtas. Como esta: "Escuteiro é aquele que anda sempre à escuta?" É fraquinha, eu sei, mas eu tinha apenas 17 anos… Ou esta: "quando um Governo se dissolve é em água, em amónia ou em ácido sulfúrico?" Esta, então, não tem graça nenhuma, mas falar em dissolver um governo, em 1970, num jornal de Liceu poderia ser considerado subversivo…
Subversivo talvez seja excessivo, mas que eu já tinha a mania que era revolucionário, disso não há dúvida. Ora leiam lá este trecho de um pequeno poema intitulado "Uma família burguesa" e que saiu no nº 2 do "Conflito":

"cinco filhos já crescidos/ tem este rico casal/ todos bem empregados/ todos com ar bem formal/
"um é médico, outro ministro/ outro engenheiro de estrada/ um é um grande advogado/ o outro também não faz nada/
"todos os cinco formaram/ outros tantos casais/ estacionados no passado/ tal e qual como os papais/
"e esta é a história/ de uma família burguesa/ fina, digna e bem vista/ na sociedade portuguesa"

Repararam no pormenor dos cinco filhos, um médico, outro ministro, outro engenheiro, outro advogado e outro também não faz nada?… Isto era o revolucionário que crescia dentro de mim, mas um revolucionário morigerado, que nunca teve coragem para morder, apenas ladrava aqui e ali, e de mansinho, para não dar muito nas vistas - enfim, coisas de um adolescente da pequena burguesia portuguesa, nos anos setenta… Cabe aqui explicar por que razão eu fui parar ao Passos Manuel. O 6º ano fora mesmo uma desgraça e eu apenas passara a Filosofia e Organização Política. Por essa razão, os meus pais acharam melhor inscrever-me noutro liceu, onde eu pudesse frequentar o 7º ano como voluntário, matriculando-me, apenas, naquelas duas disciplinas. E o Passos Manuel, liceu liberal por excelência, permitia esse tipo de truque, digamos assim.
Do 7º ano no Passos Manuel lembro-me apenas de dois professores. O de Matemática era o professor Vinhas Novais, um tipo alto e magro, com um cabelo e um bigode que faziam lembrar aquele poster muito conhecido do Einstein. Fumava que nem uma chaminé e dava as aulas sempre com o cigarro aceso ao canto da boca, razão pela qual metade do bigode era preto e a outra metade estava tingida de castanho pelo fumo do cigarro. O professor Vinhas Novais (Vinhas ou Vais, como lhe chamávamos) tinha, pelo menos, dois atributos, além de ser fumador: colaborou connosco no jornaleco, fazendo caricaturas de si próprio e dava aulas muito interessantes, de tal maneira que eu quase não faltava a nenhuma, embora esse facto não tivesse evitado que conseguisse a famélica nota de 3 valores no exame final de Matemática!
O outro professor de quem me lembro foi o de Religião e Moral e isto merece uma pequena explicação, para evitar confusões. No 7º ano, éramos obrigados a assistir a aulas de Religião e Moral, a menos que o encarregado de educação assinasse uma declaração em como autorizava o seu filho a prescindir de tais aulas. O meu pai, que tinha a mania que era anti-clerical, assinou a dita declaração, de bom grado mas eu, ao saber que o padre que dava as aulas de Religião, não andava vestido à padre e tinha uma retórica toda virada para os pobres e os oprimidos, decidi começar a assistir às aulas. Contradições de adolescente. As aulas, muitas vezes, nem eram no Passos Manuel, mas num sítio qualquer, ali para os lados do Saldanha, onde nos juntávamos todos, cantávamos canções mais ou menos revolucionárias e discutíamos assuntos sociais. A experiência destas aulas de Religião e Moral foi, de facto, muito entusiasmante e, sobre isso escrevi um pequeno artigo que o meu tio publicou num jornal qualquer em que ele colaborava na altura. Assinei o artigo como Artur Fernando.
O meu tio Xico era jornalista no "Mundo Desportivo", um semanário publicado pelo Diário de Notícias e muita gente conhecia bem o Couto e Santos, figura destacada da noite lisboeta da altura. Para além de fazer reportagens dos jogos do Benfica que, no final dos anos 60, o levaram a todo o mundo, numa altura em que aquele clube ganhou por duas vezes o Taça dos Clubes Campeões Europeus, o meu tio tinha fama de ter uma namorada em cada cidade da Europa, e outra em cada rua do Bairro Alto. Não media mais que metro e meio. Penso que tinha uma escoliose muito acentuada, embora a minha avó sempre tenha dito que foi uma criada que o atirou ao ar quando ele era pequenino e, depois, o deixou cair ao chão. O meu pai, talvez invejoso pelo sucesso do tio Xico junto das mulheres, chamava-lhe "o marreco". O tio Xico só fumava Gitannes e gostava de cantar como o Charles Trenez. Também gravou um disco no Rádio Graça. Morreu tragicamente num acidente de automóvel, num cruzamento na Avenida Infante Santo. Ia no lugar do morto, já que não conduzia porque os pés não chegavam aos pedais; o carro onde seguia foi abalroado por outro e ele foi atingido, em cheio, na cabeça.
Além de escrever reportagens de jogos de futebol, o meu tio também fazia, por vezes, crítica de filmes. E foi graças a ele que vi muito western-spaguetti no Politeama, filmes de amor no Ódeon, e tudo o que aparecia no Tivoli, Éden, S. Jorge, Monumental e S. Luiz. O meu tio telefonava-me e perguntava: "Fernando, queres ir ver o novo filme com o Guiliano Gemma, ao Politeama?" Claro que queria! Então, passava pela portaria do Diário de Notícias, levantava dois bilhetes de imprensa que lá estavam guardados para mim, e ia ao cinema com o Hermínio. No final do filme, telefonava ao meu tio e contava-lhe o enredo. No dia seguinte, lá vinha a crítica ao novo filme do cowboy italiano no Diário de Notícias, assinada pelo Couto e Santos que, entretanto, devia ter aproveitado a "folga" para alguma aventura amorosa.
O meu pai não gostava nada destas amizades entre mim e o meu tio Xico mas também não se atrevia a contrariar a coisa até porque, apesar de gozar com o "marreco", no fundo, o meu pai tinha orgulho no irmão. Filhos dos mesmos pais (o meu avô também fora conferente marítimo), ambos com uma infância vivida no Bairro Alto, Travessa da Espera, o Zé Couto não conseguira passar da cepa torta, seguindo as pisadas do pai, mas o Xico, apesar da notável deformidade física, tinha uma carreira socialmente respeitada e admirada, sucesso entre as mulheres, falava correctamente francês e inglês, escrevia bem. E fumava, mas só Gitannes…
Quem não gostava nada do sucesso do meu tio junto das mulheres era, obviamente, a minha tia Zezinha. Lembro-me que, um dia que fui lá a casa - um terceiro andar na Travessa da Espera - a minha tia me chamou de parte e me mostrou uma embalagem que tinha chegado no correio, dirigida ao meu tio, e que ela tinha aberto; trazia uma túlipa e uma carta em francês e fora expedida da Holanda. A minha tia queria que eu traduzisse a carta, claro. Recordo-me da minha atrapalhação, ao ler a carta e ao perceber que era uma carta de amor. Então, comecei a inventar e arranjei uma versão qualquer mais suave, de modo a que não pusesse o meu tio em xeque. Solidariedade entre críticos de cinema…
Foi assim, em 1971 que, de facto, comecei a minha carreira de autor de textos, com o tal artigo sobre as aulas de Religião e Moral e um outro pequeno texto que o meu tio também publicou no tal jornal em que também colaborava, e cujo título já se evaporou da minha memória. Entretanto - e depois de vários namoricos de pouco meses - tinha começado a namorar com a Maria João (não a da Costa da Caparica, claro... Marias há muitas...).
A Maria João era uma gorducha de 17 anos, que andava a tirar o curso de secretariado no então Instituto das Novas Profissões e que conheci no Instituto Britânico, que frequentei durante três anos, de 1968 a 1971, a fim de melhorar o meu inglês. E como já tinha a mania que era poeta, até escrevi dois poemas em inglês que foram publicados em "The Institutional", uma brochura de periodicidade anual, onde apareciam trabalhos da autoria dos alunos do Instituto. Um dos poemas chamava-se "That's me" e terminava assim:

"I don't love, I don't feel/ In nothing I believe
I'll never die because I don't live
Oh my friend, can't you see?
That's me!"

Dava bem para um refrão de qualquer canção pop, não dava?
Mas voltemos à Maria João, que também fumava, mas fumava à frente dos pais, um casal muito simpático, que me acolheu como se me conhecessem há décadas. Aprovaram e incentivaram o nosso namoro desde o princípio e fizeram com que eu me sentisse melhor em casa deles do que na minha própria casa. Ambos eram fumadores e, em casa da Maria João, eu sentia-me à vontade, razão pela qual passava lá muito mais tempo do que na minha casa.
O namoro foi-se desenvolvendo e, a certa altura, até já se falava em casamento. Em Maio de 1971, até houve lugar a um teste de gravidez, que foi negativo! Tive mesmo que apresentar a Maria João à minha mãe e à minha avó. Foram muito simpáticas, sobretudo a minha mãe, que sempre foi uma pessoa muito terna e boa mas percebi que não era bem aquilo que estavam a sonhar para o seu Fernandinho. Só que o tal Fernandinho já estava cada vez mais Artur e sentia-se bem com a família da Maria João, tão liberal, tão avançada. Viviam na Avenida da Igreja e eram uns snobs, embora eu não o tivesse percebido na altura. Durante quase um ano de namoro, tive a mania que era pipi, mandei cintar as camisas, que usava com colarinhos grandes e redondos, usava as camisolas muito justas e as calças estrelicadinhas, com a inevitável boca de sino e até gostava das pinderiquices do Elton John e do Cat Stevens!… Vejam bem a contradição entre esta pose e os poemas "sociais" publicados no jornal do liceu!…
O Carlos Neff - o tal que também é médico e que fora meu colega no D. João de Castro - também se juntou a este grupo de pipis e começou a namorar uma prima da Maria João. Nós os quatro e outros meninos da Avenida da Igreja, passávamos tardes inteiras na marmelada, em casa da Maria João e frequentávamos as "boites" (era assim que se chamavam as discotecas daquele tempo). Quem também não gostou deste namoro foi o Hermínio, que se manteve fiel às suas raízes pequeno-burguesas e desprezava os snobs. Haveria de me perdoar, alguns meses depois, quando me consegui libertar daquela gente e fomos, os dois, comemorar com uma ida ao cinema, ao Satélite. Do filme que vimos então, já não me lembro, mas recordo bem a sensação de liberdade depois de cerca de nove meses em que tinha vivido em exclusividade para uma pessoa que, afinal, não tinha nada a ver comigo e que, ainda por cima, me vigiava, era ciumenta e desprezava as minhas preocupações sociais e políticas.
Mas estou a adiantar-me no tempo, embora este texto seja escrito de memória (com as falhas que fazem parte da definição de memória) e não seja, de facto, um diário…
Voltemos um pouco atrás para recordar os exames do 7º ano que, globalmente, me correram bem, para quem, durante o ano lectivo, tinha feito quase tudo menos assistir às aulas e estudar. As provas escritas deram, pelo menos, para ir à oral a todas as disciplinas - mesmo a Geometria Descritiva, em que eu era uma desgraça! - menos a Matemática, claro, na qual tive apenas 3 valores, como já disse. Mas, desta vez, havia a 2ª chamada, em Setembro e eu tinha que acabar o 7º ano. Estava farto do liceu!
A preparação dos exames do 7º ano começou por ser feita na Avenida da Igreja, em casa da Maria João. Depressa descobri que, assim, não conseguiria estudar coisa nenhuma… A Maria João assenhorava-se de mim, ocupava-me todo, física e psicologicamente. Foi então que comecei a estudar na Colmeia, um cafezinho simpático numa esquina da Estrada de Benfica, e que tinha, na cave, cinco ou seis mesas, sempre ocupadas por estudantes. Naquele tempo, estudar nos cafés era prática corrente. Lá, podia estar descansado, horas seguidas, com uma bica à frente e com um maço de SG filtro, a estudar as diversas matérias. Foi na Colmeia que conheci um tipo que acabara de entrar no Instituto Superior Técnico e que era um barra em Matemática. Assim que tive conhecimento da mísera nota que obtivera no exame de Matemática, pedi-lhe que me preparasse para o exame da 2ª época. Passámos o verão de 1971 enfiados na cave da Colmeia a fazer exercícios mas o esforço valeu a pena. Na 2ª época, tive 12 valores na prova escrita e, na oral, consegui subir para 15 valores!
Ainda mal refeito deste esforço, agarrei-me outra vez aos livros para os exames de admissão à Faculdade. O que eu marrei!… E, desta vez, fui premiado. Consegui os 15 valores na prova escrita, suficientes para dispensar das provas orais e, em Outubro de 1971, era aluno da Faculdade de Medicina de Lisboa, a funcionar no Hospital de Santa Maria. Para festejar, acabei o namoro com a Maria João, telefonei ao Hermínio e fomos então ao Satélite ver "A morte em Veneza". E, apesar do tema trágico do filme (que, na altura, não entendi muito bem), senti-me estranhamente bem.
Foi também em 1971 que comecei uma espécie de Diário, onde escrevia comentários sobre o meu dia-a-dia e colava recortes de jornais com notícias que eu achava importantes, cartoons do José de Lemos, publicados no Diário de Notícias, bilhetes de cinema dos filmes que ia ver, com comentários diversos (exemplo: "Os Abutres também têm fome", título original: "Two mules for sister Sara", com Clint Eastwood e Shirley McLaine; género - western, música - óptima, fotografia - óptima, argumento - medíocre, interpretação - suficiente mais, classificação - sofrível), registo dos livros que ia lendo (sobretudo os famosos Cadernos D. Quixote, com temas como "A pílula é um perigo?" ou "O futuro é dos jovens") e até alguns registos dos jogos de futebol a que ia assistir, prática que mantinha desde a mais tenra infância e que iria terminar em breve, quando o Artur assassinasse definitivamente o Fernando, o que estava quase a acontecer…
A frequência da Colmeia trouxe-me outros conhecimentos, para além da Matemática. Em primeiro lugar, foi lá que conheci a Mila, a minha namorada definitiva, mas deixo isso para o próximo capítulo. Travei também conhecimento com o prazer inimitável da bica e do cigarro, com a sinergia desses dois sabores que se complementam, a cafeína que confere à língua um toque de veludo quente e o fumo que se enrola na boca e desce pela garganta com um paladar único.
Já tinha bebido bicas antes, claro. Lembro-me que a primeira bica que bebi, teria talvez uns 13 anos, foi no Pic-nic, um snack bar do Rossio, a convite do meu tio Xico. Na altura soube-me mal, quase tão mal como o primeiro cigarro mas, como dizia o Fernando Pessoa a propósito da Coca Cola, primeiro estranha-se, depois entranha-se. Mas foi aos 18 anos, com o estudo sistemático na Colmeia, que aprendi a gostar de beber a bica enquanto degusto um cigarro. E afirmo que é um prazer único. O problema é que há muitos prazeres únicos (e não é problema nenhum, antes pelo contrário…)
Qual é o cigarro que sabe melhor? O mítico cigarro depois da queca? Não me parece. Julgo que o cigarro depois de uma boa queca (e postulo que todas as quecas têm sempre qualquer coisa de bom) é como a Serra da Estrela ao pé dos Himalaias. Trata-se de mais uma daquelas imagens que o cinema introduziu e divulgou massivamente, de tal modo que mesmo alguns não fumadores não dispensam um cigarro depois de fazer amor. O primeiro cigarro da manhã é bom; o cigarro a meio da manhã, quando faço uma curta pausa na consulta também é óptimo; o cigarro antes de almoçar e o que se fuma depois, com a bica e o whisky também sabe bem; e vários outros cigarros são tão bons como os melhores. É este o problema dos fumadores: é raro o cigarro que sabe mal, caramba! Se, no nosso dia a dia, um ou outro cigarro começasse a saber mal e esse número fosse aumentando à medida que os dias fossem passando, talvez nós acabássemos por só fumar depois da queca…

Foi também na Colmeia que conheci o Zé Tó que acabou por se tornar o meu grande amigo durante anos. O Zé é mais velho um ano e frequentava o 2º ano de Matemática na Faculdade de Ciências. Não fumava. Nos últimos três meses de 1971, eu, o Zé Tó, os seus dois irmãos mais velhos, o Fernando e o Luís, e o Zé Carlos (que trabalhava nas oficinas aeronáuticas de Alverca e que introduziu, no grupo, a célebre frase "É o fim pá!") formámos uma pandilha que se reunia diariamente na Colmeia, no Arabesco ou no Califa (tudo cafés da Estrada de Benfica) e daí partia para os programas mais variados. E o que é que se entendia por programas, no início dos anos 70, para jovens de 18-20 anos da pequena burguesia, em Lisboa? Ir ao cinema, por exemplo.
Alguns filmes que eu registei ter visto em 1971, além do tal com o Clint Eastwood e da "Morte em Veneza": "Borsalino", "A Filha de Ryan", "Os Caminhos de Katmandu", "Easy Rider", "Dr. Divago", "Destinos Opostos" (com o Jaca Nicholson), "Lawrence d'Arábia", "Os Insaciáveis", "Inimigo Público" (com o Woody Allen), "As Sandálias do Pescador", "Romeu e Julieta", "A Festa" (com o Peter Sellers), "Um homem e uma mulher", "Love Story".
Outro programa: ir ao cinema, à meia-noite, ao Politeama, ver "A Maldição de Frankenstein" e, depois, emborcar imperiais no Sol-Mar, ali na Rua Jardim do Regedor e regressar a casa a pé, chegando perto das cinco da matina, para grande desespero do Zé Couto, que via o filho a fugir-lhe por entre os dedos da sua autoridade cada vez mais posta em causa. O que vale é que a Mariazinha estava sempre presente, para pôr água na fervura...
Outro programa: jogar à bola. Os pais do Zé Tó eram professores numa instituição para jovens mais ou menos delinquentes, tipo casa de correcção em versão soft. Por esse motivo, tinham direito a habitarem na instituição e usarem as suas instalações, que incluíam um campo de futebol em terra batida. Assim, aproveitávamos quando os putos insurrectos estavam nas aulas, e íamos dar uns toques na bola. Depois, suados e cansados, íamos até ao Solar dos Canadianos beber umas cervejolas e comer pregos. Estrago de um desses dias: um prego, dois pasteis de bacalhau, uma caneca e uma imperial - 30 escudos…
Outro programa ainda: jogar king. Neste particular, eu, o Zé Carlos e um tal Carlitos, que já esqueci, juntávamo-nos, geralmente em minha casa, para depenar um pato. Convidávamos um anjinho para jogar king a dinheiro e, como tínhamos uma série de sinais combinados, fazíamos o pobre rapaz perder grandes somas. Dois patos depenados: o Zé Alfredo, que perdeu 12 escudos e cinquenta centavos e o Fernando Pêra, que largou 34 escudos. Pode parecer pouco mas, como se viu no programa anterior, com 34 escudos já se comia um lanche jeitoso…
No final de cada kingalhada, tinha que abrir a janela do meu quarto bem aberta, porque o fumo dos cigarros era tanto que parecia ter caído um denso nevoeiro. Quanto aos meus pais, já se tinham habituado à ideia de que tinham um filho fumador mas eu, sempre muito respeitador, não fumava ostensivamente à frente deles. Aliás, visto à distância, este grupinho de rapazes não passavam de meninos do coro ao pé de certos outros grupos que conheço, mas a verdade é que comungávamos as mesmas ideias e, sobretudo eu e o Zé Tó acabámos por nos tornar inseparáveis.
Quem não gostou destas amizades foi o Hermínio que, a pouco e pouco se foi afastando e acabou por desaparecer. Tornei a vê-lo 30 anos depois, com o mesmo ar um pouco louco, trazendo uma criancinha pela mão, descendo apressadamente a rua onde vivo. Não tive coragem para lhe falar…
Mas vale a pena falar um pouco mais do meu namoro com a Maria João, já que foi, de facto, o meu primeiro namoro a sério, com conhecimento de todos os pais envolvidos e com muito mais do que beijinhos às escondidas e mão na mão no escuro do cinema.
Já não me recordo bem como conheci a Maria João, mas tenho quase a certeza de que foi numa festa qualquer, onde eu fui com o Hermínio, talvez uma festa de aniversário de uma amiga de um amigo de um colega que um de nós conhecêssemos vagamente. E depois, foi a história do costume. Alguém punha um slow no gira-discos e os putos começavam a dançar agarradinhos, naquilo a que chamávamos "roça pentelhos". Calhou dançar com essa tal Maria João e o namoro começou, como começaram todos os anteriores. Só que a Maria João era muito possessiva e, a pouco e pouco, a coisa foi-se tornando mais séria. As tardes eram todas passadas em casa dela, com os pais ausentes, com o rádio sintonizado no "Em Órbita" e, espalhados pela sala, dois ou três parzinhos emersos em escaldante marmelada, assim uma espécie de sexo em grupo, mas sem troca de casais - e sem sexo propriamente dito. Recordo-me de uma miúda que participava nessas tardes e que, a páginas tantas (quando atingia o orgasmo?), se punha aos gritos, como se estivesse possuída por algum espírito maligno. A ignorância daquela malta, em termos de sexo, era aflitiva, eu incluído, claro. No entanto, como já tinha a mania que era intelectual e até comprava os Cadernos D. Quixote, para eles, eu era um especialista, pelo que me consultavam sobre os mais variados assuntos, pedindo-me que lhes desfizesse as dúvidas, e eu respondia sempre, com a convicção dos charlatães. Um dos rapazes, por exemplo, certo dia, veio ter comigo, muito ufano, dizendo que tinha enfiado o dedo no púbis da namorada, querendo obviamente dizer vagina, e não púbis. Que ignorância!... Mas se, ainda hoje, se fala da necessidade urgente de iniciar a educação sexual nas escolas, que dizer daqueles tempos? E só não existiam mais gravidezes na adolescência porque, na realidade, as meninas e os meninos tinham medo de iniciar as suas vidas sexuais e raramente passavam da marmelada, digam o que disserem...
A Maria João também não destoava do conjunto daqueles meninos da Avenida da Igreja. Por exemplo, no fim de uma daquelas tardes quentes, costumava dizer: "Que grande origa!" - querendo dizer orgia, claro...
Foi por essas e por outras que comecei a perceber que aquilo não podia continuar - até porque me começava a sentir cada vez mais preso; os pais da Maria João já me tratavam como se fosse seu genro e, depois, veio a história do teste de gravidez. O período da Maria João não aparecia e era preciso confirmar ou infirmar o estado interessante. O cagaço quase se transformou em pânico, não fosse a actuação da mãe da namorada, que levou a filha a fazer o tradicional Galli-Mannini que, obviamente, foi negativo - e não podia ser de outra maneira, pois se nem tinha havido penetração! Mas enfim, a ignorância desculpa tudo... Mas o que é certo é que a interferência da mãe nesta situação, demonstrava que ela estava pronta para receber, no seio da família, um filho da Maria João e do Artur e nem parecia muito preocupada se esse filho surgisse ainda antes do casamento. Tanto liberalismo assustou-me. Começava a ser a altura de me por a milhas...
Passado pouco tempo, terminava o namoro com a Maria João, que nunca mais voltei a ver e determinei que, tão cedo, não me meteria em mais namoros!

Próximo capítulo: "A Mila (1971/72)"



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