4. O Passos com três esses (1970/71)
Esta história do Passos com três esses é
uma das minhas obsessões (com quatro esses); não
propriamente o Passos, mas o que ele significa como brincadeira
de palavras. "Como é que se escreve Passos Manuel?…
com "cê" de cedilha ou com dois esses?",
pergunta alguém. A resposta correcta é: nem
de uma maneira nem de outra - Passos Manuel é com
três esses. Percebem?
Tenho alguma dificuldade em transmitir o prazer que me dá
brincar com as palavras mas, felizmente, tenho tido sorte
ao longo da vida porque, não só tive oportunidade
de ganhar algum dinheiro a brincar com as palavras, sobretudo
no "Pão Comanteiga", como tanto a Mila
como os meus filhos gostam destas brincadeiras e, sobretudo
o meu filho mais velho, também alinha sempre que
surge a oportunidade.
Não posso precisar quando comecei a fazer trocadilhos
e a gozar com os vários sentidos das palavras mas,
no Liceu Passos Manuel, foi a primeira vez que publiquei
algumas dessas frases de que eu tanto gosto.
Como bons alunos do 7º ano, finalistas do liceu, alguns
elementos da turma E decidiram editar um pequeno jornal.
Chamava-se "Conflito" e dele saíram apenas
dois números. Angariámos publicidade para
ajudar a pagar o stencil e tudo. Alguns comerciantes tiveram
a gentileza de patrocinar um jornal de estudantes, o que
é de louvar. Tínhamos anúncios da Livraria
Portugal, situada na Rua do Carmo, 70-74, da Rosicler -
que "veste hoje o homem de amanhã" - situada
na Rua da Assunção, 71 e na Rua Augusta, 189,
e ainda da Confeitaria Bijou do Calhariz. Rezava o anúncio
da confeitaria que ela possuía "esmerado fabrico
em todos os artigos de confeitaria, completo sortimento
em licores e vinhos finos; fornecemos os melhores serviços
para casamentos, baptizados e soirées"; e eu
acrescentei uns versinhos para alindar a coisa: "indo
a subir a calçada/ um cheiro me chegou ao nariz/
eram os ricos bolinhos/ do Bijou do Calhariz". Lindo!…
E o Bijou bem merecia isto e muito mais, já que nós
passávamos mais tempo sentados na confeitaria a beber
bicas e a fumar cigarros do que nas aulas.
Desfolhando o "Conflito", uma coisa salta logo
à vista: tirando as ilustrações que
eram da autoria de um tal Alfarroba (que não faço
a mínima ideia de quem tenha sido), quase todos os
textos são meus - poemas, pequenos contos, textos
pseudo-científicos e, claro, frases curtas. Como
esta: "Escuteiro é aquele que anda sempre à
escuta?" É fraquinha, eu sei, mas eu tinha apenas
17 anos… Ou esta: "quando um Governo se dissolve
é em água, em amónia ou em ácido
sulfúrico?" Esta, então, não tem
graça nenhuma, mas falar em dissolver um governo,
em 1970, num jornal de Liceu poderia ser considerado subversivo…
Subversivo talvez seja excessivo, mas que eu já tinha
a mania que era revolucionário, disso não
há dúvida. Ora leiam lá este trecho
de um pequeno poema intitulado "Uma família
burguesa" e que saiu no nº 2 do "Conflito":
"cinco filhos já crescidos/ tem este rico
casal/ todos bem empregados/ todos com ar bem formal/
"um é médico, outro ministro/ outro engenheiro
de estrada/ um é um grande advogado/ o outro também
não faz nada/
"todos os cinco formaram/ outros tantos casais/ estacionados
no passado/ tal e qual como os papais/
"e esta é a história/ de uma família
burguesa/ fina, digna e bem vista/ na sociedade portuguesa"
Repararam no pormenor dos cinco filhos, um médico,
outro ministro, outro engenheiro, outro advogado e outro
também não faz nada?… Isto era o revolucionário
que crescia dentro de mim, mas um revolucionário
morigerado, que nunca teve coragem para morder, apenas ladrava
aqui e ali, e de mansinho, para não dar muito nas
vistas - enfim, coisas de um adolescente da pequena burguesia
portuguesa, nos anos setenta… Cabe aqui explicar por
que razão eu fui parar ao Passos Manuel. O 6º
ano fora mesmo uma desgraça e eu apenas passara a
Filosofia e Organização Política. Por
essa razão, os meus pais acharam melhor inscrever-me
noutro liceu, onde eu pudesse frequentar o 7º ano como
voluntário, matriculando-me, apenas, naquelas duas
disciplinas. E o Passos Manuel, liceu liberal por excelência,
permitia esse tipo de truque, digamos assim.
Do 7º ano no Passos Manuel lembro-me apenas de dois
professores. O de Matemática era o professor Vinhas
Novais, um tipo alto e magro, com um cabelo e um bigode
que faziam lembrar aquele poster muito conhecido do Einstein.
Fumava que nem uma chaminé e dava as aulas sempre
com o cigarro aceso ao canto da boca, razão pela
qual metade do bigode era preto e a outra metade estava
tingida de castanho pelo fumo do cigarro. O professor Vinhas
Novais (Vinhas ou Vais, como lhe chamávamos) tinha,
pelo menos, dois atributos, além de ser fumador:
colaborou connosco no jornaleco, fazendo caricaturas de
si próprio e dava aulas muito interessantes, de tal
maneira que eu quase não faltava a nenhuma, embora
esse facto não tivesse evitado que conseguisse a
famélica nota de 3 valores no exame final de Matemática!
O outro professor de quem me lembro foi o de Religião
e Moral e isto merece uma pequena explicação,
para evitar confusões. No 7º ano, éramos
obrigados a assistir a aulas de Religião e Moral,
a menos que o encarregado de educação assinasse
uma declaração em como autorizava o seu filho
a prescindir de tais aulas. O meu pai, que tinha a mania
que era anti-clerical, assinou a dita declaração,
de bom grado mas eu, ao saber que o padre que dava as aulas
de Religião, não andava vestido à padre
e tinha uma retórica toda virada para os pobres e
os oprimidos, decidi começar a assistir às
aulas. Contradições de adolescente. As aulas,
muitas vezes, nem eram no Passos Manuel, mas num sítio
qualquer, ali para os lados do Saldanha, onde nos juntávamos
todos, cantávamos canções mais ou menos
revolucionárias e discutíamos assuntos sociais.
A experiência destas aulas de Religião e Moral
foi, de facto, muito entusiasmante e, sobre isso escrevi
um pequeno artigo que o meu tio publicou num jornal qualquer
em que ele colaborava na altura. Assinei o artigo como Artur
Fernando.
O meu tio Xico era jornalista no "Mundo Desportivo",
um semanário publicado pelo Diário de Notícias
e muita gente conhecia bem o Couto e Santos, figura destacada
da noite lisboeta da altura. Para além de fazer reportagens
dos jogos do Benfica que, no final dos anos 60, o levaram
a todo o mundo, numa altura em que aquele clube ganhou por
duas vezes o Taça dos Clubes Campeões Europeus,
o meu tio tinha fama de ter uma namorada em cada cidade
da Europa, e outra em cada rua do Bairro Alto. Não
media mais que metro e meio. Penso que tinha uma escoliose
muito acentuada, embora a minha avó sempre tenha
dito que foi uma criada que o atirou ao ar quando ele era
pequenino e, depois, o deixou cair ao chão. O meu
pai, talvez invejoso pelo sucesso do tio Xico junto das
mulheres, chamava-lhe "o marreco". O tio Xico
só fumava Gitannes e gostava de cantar como o Charles
Trenez. Também gravou um disco no Rádio Graça.
Morreu tragicamente num acidente de automóvel, num
cruzamento na Avenida Infante Santo. Ia no lugar do morto,
já que não conduzia porque os pés não
chegavam aos pedais; o carro onde seguia foi abalroado por
outro e ele foi atingido, em cheio, na cabeça.
Além de escrever reportagens de jogos de futebol,
o meu tio também fazia, por vezes, crítica
de filmes. E foi graças a ele que vi muito western-spaguetti
no Politeama, filmes de amor no Ódeon, e tudo o que
aparecia no Tivoli, Éden, S. Jorge, Monumental e
S. Luiz. O meu tio telefonava-me e perguntava: "Fernando,
queres ir ver o novo filme com o Guiliano Gemma, ao Politeama?"
Claro que queria! Então, passava pela portaria do
Diário de Notícias, levantava dois bilhetes
de imprensa que lá estavam guardados para mim, e
ia ao cinema com o Hermínio. No final do filme, telefonava
ao meu tio e contava-lhe o enredo. No dia seguinte, lá
vinha a crítica ao novo filme do cowboy italiano
no Diário de Notícias, assinada pelo Couto
e Santos que, entretanto, devia ter aproveitado a "folga"
para alguma aventura amorosa.
O meu pai não gostava nada destas amizades entre
mim e o meu tio Xico mas também não se atrevia
a contrariar a coisa até porque, apesar de gozar
com o "marreco", no fundo, o meu pai tinha orgulho
no irmão. Filhos dos mesmos pais (o meu avô
também fora conferente marítimo), ambos com
uma infância vivida no Bairro Alto, Travessa da Espera,
o Zé Couto não conseguira passar da cepa torta,
seguindo as pisadas do pai, mas o Xico, apesar da notável
deformidade física, tinha uma carreira socialmente
respeitada e admirada, sucesso entre as mulheres, falava
correctamente francês e inglês, escrevia bem.
E fumava, mas só Gitannes…
Quem não gostava nada do sucesso do meu tio junto
das mulheres era, obviamente, a minha tia Zezinha. Lembro-me
que, um dia que fui lá a casa - um terceiro andar
na Travessa da Espera - a minha tia me chamou de parte e
me mostrou uma embalagem que tinha chegado no correio, dirigida
ao meu tio, e que ela tinha aberto; trazia uma túlipa
e uma carta em francês e fora expedida da Holanda.
A minha tia queria que eu traduzisse a carta, claro. Recordo-me
da minha atrapalhação, ao ler a carta e ao
perceber que era uma carta de amor. Então, comecei
a inventar e arranjei uma versão qualquer mais suave,
de modo a que não pusesse o meu tio em xeque. Solidariedade
entre críticos de cinema…
Foi assim, em 1971 que, de facto, comecei a minha carreira
de autor de textos, com o tal artigo sobre as aulas de Religião
e Moral e um outro pequeno texto que o meu tio também
publicou no tal jornal em que também colaborava,
e cujo título já se evaporou da minha memória.
Entretanto - e depois de vários namoricos de pouco
meses - tinha começado a namorar com a Maria João
(não a da Costa da Caparica, claro... Marias há
muitas...).
A Maria João era uma gorducha de 17 anos, que andava
a tirar o curso de secretariado no então Instituto
das Novas Profissões e que conheci no Instituto Britânico,
que frequentei durante três anos, de 1968 a 1971,
a fim de melhorar o meu inglês. E como já tinha
a mania que era poeta, até escrevi dois poemas em
inglês que foram publicados em "The Institutional",
uma brochura de periodicidade anual, onde apareciam trabalhos
da autoria dos alunos do Instituto. Um dos poemas chamava-se
"That's me" e terminava assim:
"I don't love, I don't feel/ In nothing I believe
I'll never die because I don't live
Oh my friend, can't you see?
That's me!"
Dava bem para um refrão de qualquer canção
pop, não dava?
Mas voltemos à Maria João, que também
fumava, mas fumava à frente dos pais, um casal muito
simpático, que me acolheu como se me conhecessem
há décadas. Aprovaram e incentivaram o nosso
namoro desde o princípio e fizeram com que eu me
sentisse melhor em casa deles do que na minha própria
casa. Ambos eram fumadores e, em casa da Maria João,
eu sentia-me à vontade, razão pela qual passava
lá muito mais tempo do que na minha casa.
O namoro foi-se desenvolvendo e, a certa altura, até
já se falava em casamento. Em Maio de 1971, até
houve lugar a um teste de gravidez, que foi negativo! Tive
mesmo que apresentar a Maria João à minha
mãe e à minha avó. Foram muito simpáticas,
sobretudo a minha mãe, que sempre foi uma pessoa
muito terna e boa mas percebi que não era bem aquilo
que estavam a sonhar para o seu Fernandinho. Só que
o tal Fernandinho já estava cada vez mais Artur e
sentia-se bem com a família da Maria João,
tão liberal, tão avançada. Viviam na
Avenida da Igreja e eram uns snobs, embora eu não
o tivesse percebido na altura. Durante quase um ano de namoro,
tive a mania que era pipi, mandei cintar as camisas, que
usava com colarinhos grandes e redondos, usava as camisolas
muito justas e as calças estrelicadinhas, com a inevitável
boca de sino e até gostava das pinderiquices do Elton
John e do Cat Stevens!… Vejam bem a contradição
entre esta pose e os poemas "sociais" publicados
no jornal do liceu!…
O Carlos Neff - o tal que também é médico
e que fora meu colega no D. João de Castro - também
se juntou a este grupo de pipis e começou a namorar
uma prima da Maria João. Nós os quatro e outros
meninos da Avenida da Igreja, passávamos tardes inteiras
na marmelada, em casa da Maria João e frequentávamos
as "boites" (era assim que se chamavam as discotecas
daquele tempo). Quem também não gostou deste
namoro foi o Hermínio, que se manteve fiel às
suas raízes pequeno-burguesas e desprezava os snobs.
Haveria de me perdoar, alguns meses depois, quando me consegui
libertar daquela gente e fomos, os dois, comemorar com uma
ida ao cinema, ao Satélite. Do filme que vimos então,
já não me lembro, mas recordo bem a sensação
de liberdade depois de cerca de nove meses em que tinha
vivido em exclusividade para uma pessoa que, afinal, não
tinha nada a ver comigo e que, ainda por cima, me vigiava,
era ciumenta e desprezava as minhas preocupações
sociais e políticas.
Mas estou a adiantar-me no tempo, embora este texto seja
escrito de memória (com as falhas que fazem parte
da definição de memória) e não
seja, de facto, um diário…
Voltemos um pouco atrás para recordar os exames do
7º ano que, globalmente, me correram bem, para quem,
durante o ano lectivo, tinha feito quase tudo menos assistir
às aulas e estudar. As provas escritas deram, pelo
menos, para ir à oral a todas as disciplinas - mesmo
a Geometria Descritiva, em que eu era uma desgraça!
- menos a Matemática, claro, na qual tive apenas
3 valores, como já disse. Mas, desta vez, havia a
2ª chamada, em Setembro e eu tinha que acabar o 7º
ano. Estava farto do liceu!
A preparação dos exames do 7º ano começou
por ser feita na Avenida da Igreja, em casa da Maria João.
Depressa descobri que, assim, não conseguiria estudar
coisa nenhuma… A Maria João assenhorava-se
de mim, ocupava-me todo, física e psicologicamente.
Foi então que comecei a estudar na Colmeia, um cafezinho
simpático numa esquina da Estrada de Benfica, e que
tinha, na cave, cinco ou seis mesas, sempre ocupadas por
estudantes. Naquele tempo, estudar nos cafés era
prática corrente. Lá, podia estar descansado,
horas seguidas, com uma bica à frente e com um maço
de SG filtro, a estudar as diversas matérias. Foi
na Colmeia que conheci um tipo que acabara de entrar no
Instituto Superior Técnico e que era um barra em
Matemática. Assim que tive conhecimento da mísera
nota que obtivera no exame de Matemática, pedi-lhe
que me preparasse para o exame da 2ª época.
Passámos o verão de 1971 enfiados na cave
da Colmeia a fazer exercícios mas o esforço
valeu a pena. Na 2ª época, tive 12 valores na
prova escrita e, na oral, consegui subir para 15 valores!
Ainda mal refeito deste esforço, agarrei-me outra
vez aos livros para os exames de admissão à
Faculdade. O que eu marrei!… E, desta vez, fui premiado.
Consegui os 15 valores na prova escrita, suficientes para
dispensar das provas orais e, em Outubro de 1971, era aluno
da Faculdade de Medicina de Lisboa, a funcionar no Hospital
de Santa Maria. Para festejar, acabei o namoro com a Maria
João, telefonei ao Hermínio e fomos então
ao Satélite ver "A morte em Veneza". E,
apesar do tema trágico do filme (que, na altura,
não entendi muito bem), senti-me estranhamente bem.
Foi também em 1971 que comecei uma espécie
de Diário, onde escrevia comentários sobre
o meu dia-a-dia e colava recortes de jornais com notícias
que eu achava importantes, cartoons do José de Lemos,
publicados no Diário de Notícias, bilhetes
de cinema dos filmes que ia ver, com comentários
diversos (exemplo: "Os Abutres também têm
fome", título original: "Two mules for
sister Sara", com Clint Eastwood e Shirley McLaine;
género - western, música - óptima,
fotografia - óptima, argumento - medíocre,
interpretação - suficiente mais, classificação
- sofrível), registo dos livros que ia lendo (sobretudo
os famosos Cadernos D. Quixote, com temas como "A pílula
é um perigo?" ou "O futuro é dos
jovens") e até alguns registos dos jogos de
futebol a que ia assistir, prática que mantinha desde
a mais tenra infância e que iria terminar em breve,
quando o Artur assassinasse definitivamente o Fernando,
o que estava quase a acontecer…
A frequência da Colmeia trouxe-me outros conhecimentos,
para além da Matemática. Em primeiro lugar,
foi lá que conheci a Mila, a minha namorada definitiva,
mas deixo isso para o próximo capítulo. Travei
também conhecimento com o prazer inimitável
da bica e do cigarro, com a sinergia desses dois sabores
que se complementam, a cafeína que confere à
língua um toque de veludo quente e o fumo que se
enrola na boca e desce pela garganta com um paladar único.
Já tinha bebido bicas antes, claro. Lembro-me que
a primeira bica que bebi, teria talvez uns 13 anos, foi
no Pic-nic, um snack bar do Rossio, a convite do meu tio
Xico. Na altura soube-me mal, quase tão mal como
o primeiro cigarro mas, como dizia o Fernando Pessoa a propósito
da Coca Cola, primeiro estranha-se, depois entranha-se.
Mas foi aos 18 anos, com o estudo sistemático na
Colmeia, que aprendi a gostar de beber a bica enquanto degusto
um cigarro. E afirmo que é um prazer único.
O problema é que há muitos prazeres únicos
(e não é problema nenhum, antes pelo contrário…)
Qual é o cigarro que sabe melhor? O mítico
cigarro depois da queca? Não me parece. Julgo que
o cigarro depois de uma boa queca (e postulo que todas as
quecas têm sempre qualquer coisa de bom) é
como a Serra da Estrela ao pé dos Himalaias. Trata-se
de mais uma daquelas imagens que o cinema introduziu e divulgou
massivamente, de tal modo que mesmo alguns não fumadores
não dispensam um cigarro depois de fazer amor. O
primeiro cigarro da manhã é bom; o cigarro
a meio da manhã, quando faço uma curta pausa
na consulta também é óptimo; o cigarro
antes de almoçar e o que se fuma depois, com a bica
e o whisky também sabe bem; e vários outros
cigarros são tão bons como os melhores. É
este o problema dos fumadores: é raro o cigarro que
sabe mal, caramba! Se, no nosso dia a dia, um ou outro cigarro
começasse a saber mal e esse número fosse
aumentando à medida que os dias fossem passando,
talvez nós acabássemos por só fumar
depois da queca…
Foi também na Colmeia que conheci o Zé Tó
que acabou por se tornar o meu grande amigo durante anos.
O Zé é mais velho um ano e frequentava o 2º
ano de Matemática na Faculdade de Ciências.
Não fumava. Nos últimos três meses de
1971, eu, o Zé Tó, os seus dois irmãos
mais velhos, o Fernando e o Luís, e o Zé Carlos
(que trabalhava nas oficinas aeronáuticas de Alverca
e que introduziu, no grupo, a célebre frase "É
o fim pá!") formámos uma pandilha que
se reunia diariamente na Colmeia, no Arabesco ou no Califa
(tudo cafés da Estrada de Benfica) e daí partia
para os programas mais variados. E o que é que se
entendia por programas, no início dos anos 70, para
jovens de 18-20 anos da pequena burguesia, em Lisboa? Ir
ao cinema, por exemplo.
Alguns filmes que eu registei ter visto em 1971, além
do tal com o Clint Eastwood e da "Morte em Veneza":
"Borsalino", "A Filha de Ryan", "Os
Caminhos de Katmandu", "Easy Rider", "Dr.
Divago", "Destinos Opostos" (com o Jaca Nicholson),
"Lawrence d'Arábia", "Os Insaciáveis",
"Inimigo Público" (com o Woody Allen),
"As Sandálias do Pescador", "Romeu
e Julieta", "A Festa" (com o Peter Sellers),
"Um homem e uma mulher", "Love Story".
Outro programa: ir ao cinema, à meia-noite, ao Politeama,
ver "A Maldição de Frankenstein"
e, depois, emborcar imperiais no Sol-Mar, ali na Rua Jardim
do Regedor e regressar a casa a pé, chegando perto
das cinco da matina, para grande desespero do Zé
Couto, que via o filho a fugir-lhe por entre os dedos da
sua autoridade cada vez mais posta em causa. O que vale
é que a Mariazinha estava sempre presente, para pôr
água na fervura...
Outro programa: jogar à bola. Os pais do Zé
Tó eram professores numa instituição
para jovens mais ou menos delinquentes, tipo casa de correcção
em versão soft. Por esse motivo, tinham direito a
habitarem na instituição e usarem as suas
instalações, que incluíam um campo
de futebol em terra batida. Assim, aproveitávamos
quando os putos insurrectos estavam nas aulas, e íamos
dar uns toques na bola. Depois, suados e cansados, íamos
até ao Solar dos Canadianos beber umas cervejolas
e comer pregos. Estrago de um desses dias: um prego, dois
pasteis de bacalhau, uma caneca e uma imperial - 30 escudos…
Outro programa ainda: jogar king. Neste particular, eu,
o Zé Carlos e um tal Carlitos, que já esqueci,
juntávamo-nos, geralmente em minha casa, para depenar
um pato. Convidávamos um anjinho para jogar king
a dinheiro e, como tínhamos uma série de sinais
combinados, fazíamos o pobre rapaz perder grandes
somas. Dois patos depenados: o Zé Alfredo, que perdeu
12 escudos e cinquenta centavos e o Fernando Pêra,
que largou 34 escudos. Pode parecer pouco mas, como se viu
no programa anterior, com 34 escudos já se comia
um lanche jeitoso…
No final de cada kingalhada, tinha que abrir a janela do
meu quarto bem aberta, porque o fumo dos cigarros era tanto
que parecia ter caído um denso nevoeiro. Quanto aos
meus pais, já se tinham habituado à ideia
de que tinham um filho fumador mas eu, sempre muito respeitador,
não fumava ostensivamente à frente deles.
Aliás, visto à distância, este grupinho
de rapazes não passavam de meninos do coro ao pé
de certos outros grupos que conheço, mas a verdade
é que comungávamos as mesmas ideias e, sobretudo
eu e o Zé Tó acabámos por nos tornar
inseparáveis.
Quem não gostou destas amizades foi o Hermínio
que, a pouco e pouco se foi afastando e acabou por desaparecer.
Tornei a vê-lo 30 anos depois, com o mesmo ar um pouco
louco, trazendo uma criancinha pela mão, descendo
apressadamente a rua onde vivo. Não tive coragem
para lhe falar…
Mas vale a pena falar um pouco mais do meu namoro com a
Maria João, já que foi, de facto, o meu primeiro
namoro a sério, com conhecimento de todos os pais
envolvidos e com muito mais do que beijinhos às escondidas
e mão na mão no escuro do cinema.
Já não me recordo bem como conheci a Maria
João, mas tenho quase a certeza de que foi numa festa
qualquer, onde eu fui com o Hermínio, talvez uma
festa de aniversário de uma amiga de um amigo de
um colega que um de nós conhecêssemos vagamente.
E depois, foi a história do costume. Alguém
punha um slow no gira-discos e os putos começavam
a dançar agarradinhos, naquilo a que chamávamos
"roça pentelhos". Calhou dançar
com essa tal Maria João e o namoro começou,
como começaram todos os anteriores. Só que
a Maria João era muito possessiva e, a pouco e pouco,
a coisa foi-se tornando mais séria. As tardes eram
todas passadas em casa dela, com os pais ausentes, com o
rádio sintonizado no "Em Órbita"
e, espalhados pela sala, dois ou três parzinhos emersos
em escaldante marmelada, assim uma espécie de sexo
em grupo, mas sem troca de casais - e sem sexo propriamente
dito. Recordo-me de uma miúda que participava nessas
tardes e que, a páginas tantas (quando atingia o
orgasmo?), se punha aos gritos, como se estivesse possuída
por algum espírito maligno. A ignorância daquela
malta, em termos de sexo, era aflitiva, eu incluído,
claro. No entanto, como já tinha a mania que era
intelectual e até comprava os Cadernos D. Quixote,
para eles, eu era um especialista, pelo que me consultavam
sobre os mais variados assuntos, pedindo-me que lhes desfizesse
as dúvidas, e eu respondia sempre, com a convicção
dos charlatães. Um dos rapazes, por exemplo, certo
dia, veio ter comigo, muito ufano, dizendo que tinha enfiado
o dedo no púbis da namorada, querendo obviamente
dizer vagina, e não púbis. Que ignorância!...
Mas se, ainda hoje, se fala da necessidade urgente de iniciar
a educação sexual nas escolas, que dizer daqueles
tempos? E só não existiam mais gravidezes
na adolescência porque, na realidade, as meninas e
os meninos tinham medo de iniciar as suas vidas sexuais
e raramente passavam da marmelada, digam o que disserem...
A Maria João também não destoava do
conjunto daqueles meninos da Avenida da Igreja. Por exemplo,
no fim de uma daquelas tardes quentes, costumava dizer:
"Que grande origa!" - querendo dizer orgia, claro...
Foi por essas e por outras que comecei a perceber que aquilo
não podia continuar - até porque me começava
a sentir cada vez mais preso; os pais da Maria João
já me tratavam como se fosse seu genro e, depois,
veio a história do teste de gravidez. O período
da Maria João não aparecia e era preciso confirmar
ou infirmar o estado interessante. O cagaço quase
se transformou em pânico, não fosse a actuação
da mãe da namorada, que levou a filha a fazer o tradicional
Galli-Mannini que, obviamente, foi negativo - e não
podia ser de outra maneira, pois se nem tinha havido penetração!
Mas enfim, a ignorância desculpa tudo... Mas o que
é certo é que a interferência da mãe
nesta situação, demonstrava que ela estava
pronta para receber, no seio da família, um filho
da Maria João e do Artur e nem parecia muito preocupada
se esse filho surgisse ainda antes do casamento. Tanto liberalismo
assustou-me. Começava a ser a altura de me por a
milhas...
Passado pouco tempo, terminava o namoro com a Maria João,
que nunca mais voltei a ver e determinei que, tão
cedo, não me meteria em mais namoros!
Próximo capítulo: "A Mila (1971/72)"
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