5. A Mila (1971/72)
Os registos continuam a ser uma das minhas obsessões,
embora esteja muito melhor.
Com 18 anos, registava quase tudo o que podia ser registado
em grandes livros que o meu pai trazia do escritório.
Eram uma espécie de sebentas, com folhas pautadas,
que alternavam com folhas lisas, de papel pardo. Era aí
que eu colava os bilhetes do cinema, os recortes dos jornais
e outras coisas que eu achava importantes, foi também
aí que escrevi alguns comentários ao meu dia-a-dia.
Chamava a esses livros "Momentos de Ócio",
e só tenho em meu poder o volume referente a 1971/72
- daí que a minha memória pareça mais
avivada quando falo dessa época. No entanto, posso
garantir que me estou a socorrer desse volume apenas para
precisar um ou outro pormenor, já que a memória
desses tempos continua bem viva.
Outra obsessão, de que já me curei: gravar
música, primeiro em fita magnética, depois
em cassete. O primeiro gravador que tive foi um Telefunken,
oferecido pelo meu pai em Dezembro de 1971, e que lhe custou
7 contos. Passei tardes inteiras a gravar discos que os
meus amigos me emprestavam; anos depois, passei tardes inteiras
a gravar cassetes, que gravei e desgravei dezenas de vezes,
com novas selecções; e ainda há dois
ou três anos, passei algumas tardes, já não
inteiras, a gravar mini-disc. Mas, como disse, estou muito
melhor. Já sou capaz de me desfazer das coisas. De
todo esse material gravado ao longo dos anos, apenas mantenho
os mini-disc. Por enquanto… As grandes bobinas de
fita magnética gravada, primeiro pelo Telefunken,
depois por um Teac, semi-profissional, desapareceram há
muito. As dezenas de cassetes que fui gravando, estão
em casa do meu filho Pedro, e suspeito que apenas existam
como depósitos de poeira e pelos de gata...
No dia 27 de Dezembro de 1971, logo de manhã, peguei
num dos volumes do Rouviére e fui para a Colmeia
estudar Anatomia. Lá estava uma colega minha, a Fernanda,
acompanhada da Mila. Não percebi logo, mas era evidente
que não ia ficar mais do que três meses sem
namorada. O que eu não sabia na altura, nem poderia
nunca imaginar, é que a Mila iria ser a minha companheira
de sempre, que iríamos crescer juntos, conhecer a
vida e vencer as suas etapas juntos e que, 30 anos depois,
ainda mantemos, um pelo outro, aquele entusiasmo que sentimos
naquela manhã de Dezembro de 1971, quando nos vimos
pela primeira vez. Nessa mesma tarde, ou na seguinte, quando
a Mila me perguntou o que iria eu fazer no dia seguinte,
respondi-lhe que iria estudar com a Ana. Soube depois que
a Mila ficou cheia de ciúmes dessa tal Ana, que não
era mais do que o diminutivo carinhoso da terrível
Ana-tomia... Coisas de adolescentes em fim de carreira...
Logo no dia a seguir, encontrámo-nos todos na cantina
da Cidade Universitária. Afinal, a Mila também
era minha colega mas, no meio de quase mil novos alunos
que tinham entrado naquele ano na Faculdade de Medicina,
nunca nos tínhamos encontrado antes. A Mila exerceu
sobre mim um efeito imediato, por três ordens de razões,
acho eu: vestia como uma intelectual de esquerda (se me
apetecer ainda explico esta), tinha uns olhos azuis deslumbrantes
e - acertaram! - fumava. Claro que este último pormenor
foi irrelevante para o início da nossa relação,
mas dá jeito para a narrativa.
A minha relação com a Mila desenvolveu-se
com a urgência própria da juventude. Lembram-se
quando eu disse atrás que a aprendizagem lenta e
progressiva é para os miúdos da instrução
primária, enquanto os adolescentes querem aprender
tudo de uma vez só? Também é assim
na aprendizagem do amor. No dia 4 de Janeiro de 1972 começámos
oficialmente a namorar e, no dia 11 de Junho do ano seguinte,
nasceu o Pedro - estão a perceber onde quero chegar?
Mila e Artur em 1972
Bom, namorar não é o termo correcto. Naqueles
tempos, estávamos empenhados em mudar o mundo a todos
os níveis, quebrar tabus, vencer barreiras sociais,
tentar ser o menos convencional possível, por isso,
a palavra namoro tinha uma conotação demasiado
burguesa. Andávamos um com o outro. O Zé Tó
andava com a Ana Paula e o Zé Carlos andava com a
Teresa. De repente, o grupo de rapazolas que jogava à
bola, ia às sessões da meia-noite e depenava
patos ao king, passou a ser um grupo de casais. E andávamos
todos sedentos de experiências sexuais. As cenas de
marmelada eram mais que muitas e qualquer local servia:
o relvado do estádio da Cidade Universitária,
a Sala de Alunos, o banco de trás do piso superior
do autocarro, carreira 34, Benfica-Hospital de Santa Maria
e, claro, as matas da Costa da Caparica, nos tempos em que
a Costa da Caparica ainda tinha matas de acácias
tão densas que era preciso andar de gatas, o que
tornava fácil encontrar sítios propícios
à satisfação dos nossos desígnios…
Tínhamos, nessas matas, um sítio especial,
por onde acedíamos por Santo António da Caparica,
mesmo junto ao café Ninho; embrenhávamo-nos
um pouco, até onde as acácias quase rasavam
o chão e por aí ficávamos longas tardes
de Agosto. Chamávamos a esse local, o nosso apartamento
- uma toalha de praia e as densas camadas sobrepostas de
folhas caídas das acácias faziam uma cama
excelente; depois da função terminada, abríamos
um buraquinho no chão, para servir de cinzeiro, e
saboreávamos o tal cigarro post-queca, que sabe sempre
bem. Cada vez que me lembro ao que nos afoitávamos
naquelas tardes quentes do verão de 1972!…
Às vezes, a urgência era tanta que nem chegávamos
ao apartamento, e era logo ali, mesmo ao lado do café
Ninho, sujeitos a sermos apanhados com a boca na botija.
Tanto eu como a Mila temos quase a certeza que o Pedro foi
feito numa dessas matas, mais precisamente para os lados
da Fonte da Telha…
A convivência com o Zé Tó, a paixão
pela Mila e a frequência da Faculdade tinham, definitivamente,
assassinado o Fernando. Eu já era o Artur. E começava
a descoberta de muitas coisas que, até aí,
estavam ocultas para mim, ou melhor, coisas de cuja existência
eu sabia, mas que nunca tinha tentado conhecer. Ao mesmo
tempo, tínhamos todos a mesma idade, as mesmas raízes
sociais e a mesma cultura. Começámos a acreditar
numa certa imagem de nós próprios: estudantes
universitários, que se queriam cultos e eruditos,
amantes da liberdade de costumes, denunciantes da hipocrisia
reinante, críticos da ditadura, mas mantendo, sempre
- ou quase sempre, vá lá… - um refinado
sentido de humor, por vezes demasiado cáustico, muitas
vezes demasiado intolerante mas, enfim, tudo isso se modifica
com o crescer…
Um das primeiras descobertas de 1972 foi a música
dita clássica. Eu e a Mila fomos assistir a um concerto
no S. Luiz, em que a orquestra da Emissora Nacional interpretou
o 4º Concerto para piano do Beethoven e a 4ª Sinfonia
do Tchaikovsky e, a pouco e pouco, o rock começou
a recuar. Mas ainda se aguentou bem durante mais alguns
meses. Naquela altura, havia muitas bandas de rock dito
progressivo; parecia que até os rockeiros estavam
um pouco fartos da simplicidade do rock-and-roll e se tinham
virado para a música erudita. São dessa época
bandas como os Genesis, os Yes, os King Crimson, Emerson,
Lake and Palmer e os Jethro Tull, entre outras. Esta última
banda, abalou tudo com o famoso "Thick as a brick",
álbum que comprei em Novembro desse ano e ouvi vezes
sem conta, uma das quais, em casa do Zé, que tinha
uma aparelhagem melhor que a minha. Essa noite ficou bem
gravada na memória: o Ian Anderson cantava "I
hope you don't mind…" e eu fumava um cigarrinho
e bebia cerveja preta numa caneca de barro. Coisas da tal
memória selectiva, não é?… O
sabor daquela cerveja ainda hoje está bem vivo.
Outra das descobertas do Artur, esse jovem universitário,
foi que o futebol era reaccionário. Em Portugal,
o futebol é qu'induca e o fado é qu'instrói,
dizia-se. Quanto ao fado, estávamos conversados -
detestava-o. Já no que respeita ao futebol, foi uma
decisão difícil e tive que recorrer à
razão porque, se me deixasse mover pela paixão,
tinha continuado a vibrar com o futebol, como vibrei desde
puto e continuo a vibrar agora. Mas pronto - o futebol era
reaccionário, por isso, deixei de ir ao futebol e
atirei com o meu cartão de sócio do glorioso
para um sítio qualquer, bem escondido, tão
bem escondido que, durante anos, acreditei que o tinha destruído,
na minha fúria anti-futebol. Muitos anos depois,
no entanto, reencontrei esse cartão, com o número
de sócio 23 984 e uma fotografia do Fernandinho.
Ainda me lembro do último jogo a que fui assistir
ao Estádio da Luz, em que o Benfica derrotou o Leixões
por 5 a zero, se não estou em erro. Só tornei
a entrar num estádio de futebol há poucos
anos para assistir ao concerto do Sting. Quanto a futebol,
já há muitos anos que não perco um
jogo na televisão e, ao vivo, no ano passado voltei
ao Estádio da Luz, desta vez com o Pedro, para ver
o Benfica derrotar o Beira-Mar por 4 a 1. Hoje mesmo, no
dia em que estou a escrever estas linhas, fui à Catedral
da Luz, como lhe chamam, e inscrevi-me a mim e ao Pedro
como sócios do Benfica! Fiquei com o número
116 884 - quase cem mil benfiquistas depois!...
O futebol e o Benfica eram, talvez, os únicos gostos
em comum com o meu pai, que me fez sócio do glorioso
ainda eu andava de gatas. Mais tarde, a sua fixação
no Benfica cresceu desmesuradamente e, no dia em que foi
registar o meu irmão Paulo, dias depois do seu nascimento,
foi também inscrevê-lo como sócio. Com
a minha irmã já não fez a mesma coisa
porque, nessas coisas (e nas outras…), o meu pai era
muito conservador: as mulheres não deviam ir ao futebol.
Desde pequeno que acompanhei o meu pai a tudo o que era
prova desportiva em que entrasse o Benfica, quer em futebol,
quer em hóquei em patins. Quando morávamos
na Avenida Gomes Pereira, onde também ficava uma
sede do Benfica com o ringue principal de hóquei,
era frequente irmos os dois assistir aos jogos em que o
Livramento e outros de que já não me lembro
se destacavam com os dribles fabulosos e as corridas desenfreadas
sobre patins, atrás de uma bola que ninguém
via; só quando a rede da pequena baliza balançava
e o árbitro assistente agitava a bandeirinha é
que a malta se levantava num grito uníssono: "Golo!"
Nessa sede do Benfica, também o Fernandinho aprendeu
a andar de patins e até deu alguns toques na bola.
Além disso, frequentava a ginástica do Benfica
e, no final do ano, apresentava-me, garboso, no sarau do
clube, trazendo para casa, orgulhosamente ao peito, uma
medalha comemorativa. A maluqueira pelo futebol continuava
no quintal da nossa casa. Num dos topos do pequeno quintal,
que deveria ter uns sete metros de comprimento por três
de largura, construiu o meu pai uma baliza, onde me treinava
para guarda-redes. Muitas tardes foram ali passadas com
os amigos da rua, disputando jogos de pontapé e sarrafada.
O Fernandinho, perfilado, com mais
uma medalha ao peito e um penso rápido no joelho,
fruto de alguma lesão ocorrida durante mais um sarau
de ginástica do Benfica.
Tinha eu 13 anos quando nos mudámos para a Rua do
Montepio Geral, em S. Domingos de Benfica e, a partir dessa
altura acabou-se o hóquei e ficou só o futebol.
Mas chegava muito bem. Havia fins de semana em que íamos,
ao sábado à tarde, ver o jogo das reservas
(agora seria a equipa B), no domingo de manhã íamos
ver os juniores e, à tarde, a equipa principal. Lembro-me
dos jogadores quase todos, o Coluna, o José Águas,
o Cávem, o Germano, o Costa Pereira, o José
Augusto, o Torres, o Ângelo, o Nené, o Chalana,
o Humberto Coelho e, claro, o grande Eusébio.
Sempre que o Benfica jogava em casa, juntava-se um pequeno
grupo de fãs, do qual eu era o único miúdo:
além do meu pai, ia também o gordo e bronquítico
Gonzaga (cuja rotunda mulher, a Natália, com mais
de cem quilos, ficava em minha casa a alambazar-se com bolos
e mousses de chocolate), o primo Vítor e o Calinhos.
Todos passavam o jogo a fumar, excepto o meu pai e eu, claro.
Todos passavam o jogo a chamar nomes bárbaros ao
árbitro, excepto eu, claro. E sempre que o Benfica
marcava um golo - o que, nos anos sessenta, era muito frequente
- saltávamos em conjunto e havia gritos de alegria
e abraços. Eram talvez os únicos momentos
em que eu e o meu nos abraçávamos...
O Calinhos era um personagem interessante. Amigalhaço
do meu pai, também nascido no Bairro Alto, mas na
Rua da Barroca, tinha um andar esquisito, parecendo estar
sempre a pôr os pés em cima de vidros. A sola
dos seus pés era um calo pegado e aquilo devia provocar-lhe
uma dor lancinante ao andar. Dizia o meu pai que, de vez
em quando, a mulher lhe aliviava o sofrimento, rapando-lhe
as sola dos pés com uma lâmina de barbear…
O Gonzaga era estivador e colega do meu pai na Companhia
Colonial de Navegação e era o bombo da festa.
Apesar de ser bem mais velho que o meu pai, era gozado indecentemente.
O Zé Couto chamava-lhe tudo e usava-o como moço
de recados e o pobre do Gonzaga, apesar de já ter
cabelos brancos, calava-se e tudo aguentava. Ele e a Natália
formavam um par curioso, que recordo sempre que revejo um
daqueles filmes portugueses dos anos 30 e 40, com o Vasco
Santana e o António Silva. Ainda por cima, a Natália
e o Gonzaga viviam ali para os lados do Castelo de S. Jorge,
se não estou em erro, num pátio em tudo semelhante
ao pátio em que vivia o Vasquinho da Anatomia, no
filme "A Canção de Lisboa". Muitas
vezes, o Gonzaga fazia recados ao meu pai. Mas raramente
se saía bem da tarefa. Lembro-me que, certo dia,
o pobre homem terá ido comprar vinho ao meu pai,
que lhe emprestou o carro para o efeito. De regresso a Benfica,
um dos garrafões tombou e o Gonzaga não foi
de modas, baixou-se para endireitar o garrafão, a
fim de que não se perdesse o precioso líquido
e, nesse movimento, tirou as mãos do volante, estampando-se
com o carro do meu pai. Digam lá se esta cena não
seria digna de um daqueles filmes do Perdigão Queiroga!...
O Gonzaga comigo ao colo, algures em
1954
Passei belas tardes de domingo a ver aqueles golos fantásticos
do Eusébio, ou as grandes defesas do Costa Pereira
e do Zé Gato. E as noites europeias! Lembro-me de
um jogo contra o Feijnoord, em que o Estádio estava
à cunha e vi o jogo empoleirado num muro, com o meu
pai em cima de uma grade de cervejas, que ele também
era baixinho, a apoiar-me as costas de cada vez que eu saltava
para festejar mais um golo do Benfica.
Mas pronto - o futebol era reaccionário, a Mila não
ligava nenhuma ao pontapé na bola (embora o pai dela
fosse tão ou mais fanático pelo Benfica que
o meu pai), o Zé Tó também não
achava muita graça à coisa e eu deixei de
ir ao futebol em 1972. Portanto, o rock, só progressivo
e por pouco mais tempo; a música clássica
a ocupar cada vez mais espaço; o futebol a desaparecer
completamente. Quanto à aparência, também
tudo tinha mudado. Acabara-se o tempo das camisas cintadas
e com colarinhos redondos. Acabara-se a preocupação
quanto à aparência. Os cabelos cresceram um
pouco mais, que o Zé Couto já tinha dificuldade
em criticar um estudante de Medicina, a barba mal semeada
era feita semestralmente, as camisas eram todas aos quadrados,
as calças, de bombazina ou de ganga. Era este o "look"
dos intelectuais de esquerda. Faltava a política.
Mas não há melhor escola da política
do que a Universidade. Foi também em Janeiro daquele
ano que assistimos todos a um espectáculo na Sala
de Alunos de Medicina que nos marcou profundamente: o Fausto
cantou canções de cunho marcadamente revolucionário
e o Ary dos Santos disse alguns dos seus poemas, daquela
maneira que só ele sabia dizer - "SARL…
SARL… a pança do patrão não lhe
cabe na pele/ a mulher do gerente não lhe cabe na
cama". O Artur poeta exultou.
Mal cheguei a casa, comecei logo a reler as dezenas de poemas
que escrevera desde, pelo menos, os 16 anos. Escolhi os
que achei melhores e passei-os à máquina,
em folhas A4 de papel almaço. Depois, mandei-os encadernar.
Chamei a esse primeiro livro de exemplar único "As
Colchas" e penso que vale a pena transcrever o poema
que dava nome ao livro e que foi escrito em Maio de 1971:
"duas colchas amarelas/ pendendo das janelas/
da travessa de S. José
mas que me interessa a mim/ duas colchas amarelas/ pendendo
das janelas/ da travessa de S. José
duas colchas amarelas/ pendendo das janelas/ da travessa
de S. José
são iguais a duas colchas amarelas/ pendendo das
janelas/ de outra travessa qualquer"
Enfim, tem alguma graça… Mas o que me interessava
mais era a crítica social. Tomem lá este naco:
"grupos, corporativas, associações/
sindicatos, grémios, congregações
não são mais que colectividades/ formadas
por individualidades
que não trabalham para um fim comum altruísta
mas sim para um fim individual/ que cada indivíduo
individualmente tem em vista!"
Até me falta o fôlego, só de ler…
Depois de "As Colchas", ainda fiz mais dois volumes
encadernados com poemas: "O Menino Mundo" e "Pedradas
no Charco", todos com textos escritos durante 1972.
Escrevia que me desunhava!
Esta mania dos exemplares únicos já vinha
de trás. Aos 9 anos, mais precisamente em Junho de
1962, publicava o nº 1 do jornal "O Alvo",
publicação que se manteve durante dois anos,
embora só fosse editada nos períodos de férias
escolares. Saía aos sábados e consistia em
duas folhas arrancadas de um caderno diário e que
eu preenchia com concursos, adivinhas, histórias
de xerifes e "grandes chefes selvagens", cromos
das várias colecções que estavam na
moda, notícias de desporto e desenhos. Como não
tinha, nem nunca tive, qualquer tipo de habilidade para
desenhar, copiava os desenhos das capas do Mundo de Aventuras
e das publicações do Walt Disney em papel
vegetal e depois passava-os para o meu jornal, colorindo-os
em seguida. A isto se chama engenho. Um puto de 9 anos,
naquela altura, não tinha os lindos álbuns
para colorir que hoje se vendem em qualquer hiper-mercado;
então, inventava ele próprio, uma maneira
de se entreter com aquilo que todos os putos gostam: brincar
com os lápis de cor. No entanto, o facto de não
saber desenhar não me impediu de, a partir do nº
14 do jornal "O Alvo", começar a publicar
uma banda desenhada da minha autoria (desenhos e argumento);
chamava-se "Kansas Kid em Aventura Fantástica"
e os desenhos fazem lembrar Miró, nos dias em que
este pintor espanhol estava especialmente mal disposto.
Quanto ao Kansas Kid - que, mais tarde, se haveria de personificar
no corpo do tal professor de Física-Química
- era um cow-boy como deve ser que, logo no quinto quadradinho
da história, exclama: "Os bandidos!" e
começa a disparar porque, como diz o narrador, "não
se consegue conter", gritando logo a seguir: "Ah!
São mexicanos!…" Assim nasciam, indelevelmente,
os racismos num puto de 9 anos...
O jornal "O Alvo" também publicava, em
exclusivo, as classificações das corridas
de caricas. Nas férias grandes, todos os anos se
realizava, a Volta à Casa em Carica, constituída
por várias etapas, ao longo das várias divisões
da nossa casa na Avenida Gomes Pereira. Concorriam diversas
equipas: as caricas da cerveja Sagres, as da água
do Vimeiro, as da Canada Dry, do Sumol, da Laranjina C e
outras que já não recordo. Era eu próprio
que lançava as caricas, uma a uma, entre o médio
e o polegar e, no final de cada etapa, anotava a classificação
que, depois, "O Alvo" publicava em exclusivo.
Acrescento que o jornal "O Alvo" custava cinco
tostões e que eu o vendia à minha mãe
e à minha avó, que pagavam essa quantia (e
um pouco mais, para ajudar o editor…) só para
lerem, já que tinham que devolver o jornal ao seu
autor, uma vez que se tratava de um exemplar único.
Além da minha mãe e da minha avó, os
leitores de "O Alvo" eram constituídos
pelos meus colegas do Colégio D. João da Câmara,
que frequentei durante os quatro anos da instrução
primária. Dois deles acabaram por se render àquele
jogo um pouco absurdo de editar um jornal de exemplar único:
o Rui Oliveira e o Almeida Cruz que, a partir de certa altura,
começaram a colaborar comigo na feitura do jornal.
Aqui está uma sugestão para os miúdos
se entreterem durante as férias escolares: experimentem
brincar aos editores de jornais…
E já que voltei a falar do Almeida Cruz que, anos
depois, voltei a ver como colega de Medicina e, simultaneamente,
delegado de informação médica, acho
que vale a penar referir que fui colega do Nuno Lobo Antunes,
nesse Colégio D. João da Câmara que,
alguns anos antes, fora frequentado pelo seu irmão
mais velho, o António, o psiquiatra, o escritor que,
em muitas das suas crónicas fala do colégio
e do mestre André...
Depois de "O Alvo", continuei com o jornal "Beatles",
entre os anos de 1964 e 1968, sempre no período das
férias escolares. Passei das duas folhas arrancadas
ao caderno diário para as folhas de papel almaço
quadriculado. O jornal "Beatles" chegou a ter
três ou quatro folhas de papel almaço quadriculado,
com uma capa de papel almaço liso, onde eu desenhava
(copiado por cima, claro) um boneco do Walt Disney, devidamente
colorido; o jornal passava, assim, a revista. Pelo meio,
ainda fiz alguns exemplares do "Jornal Juvenil",
de parceria com os dois putos que foram, de facto, os meus
dois amigos de infância. Assim rezava a ficha técnica
do jornal: director - Victor Camarate Pereira, autor - Artur
Fernando Couto e Santos, realizador - Carlos Santos Vargas.
Aqui ficam os nomes para a posteridade. Onde estarão
agora o Vitinho e o Vargas, que eu achincalhava nas nossas
brincadeiras infantis?… Recordo um dia em que brincávamos
aos comboios no corredor da minha casa da Avenida Gomes
Pereira, que não devia ter mais de quatro metros
de comprimento, mas que dava para jogar à bola e
andar de patins. Brincar aos comboios era ir buscar as cadeiras
da mobília Queen Anne dos meus pais, deitá-las
no chão, costas com costas, pés com pés,
e formar assim carruagens de um imaginário comboio
de mercadorias, do qual eu era o único e inquestionável
maquinista. Claro que o Vitinho e o Vargas também
queriam ser maquinistas, mas estavam com azar; o comboio
era meu, o corredor era meu, as cadeiras eram minhas, portanto,
eu tinha que ser o maquinista e, quem não quiser
brincar assim, vai para a rua. E eles foram, a chorar, incapazes
de por em causa a liderança. Coisas do ainda filho
único … Também brincávamos aos
naufrágios junto dos grossos troncos das enormes
árvores da Avenida Gomes Pereira. Eram árvores
frondosas e, penso eu, com vários anos de vida. No
Verão, os funcionários da Câmara, vinham
regá-las com regularidade; abriam covas fundas em
redor do seu tronco e enchiam-nas com água. Era nesses
lagos que nós púnhamos a flutuar os nossos
barcos de papel, imitando as caravelas do Vasco da Gama,
que acabáramos de conhecer.
E os exemplares únicos continuaram pela vida fora.
Em 1969 foi a vez da colecção "Riso Sarcástico"
aparecer. O primeiro volume tinha como título "História
Luso-Portuguesa" e a editora denominava-se "Papel
d'Embrulho". Tratava-se de uma História de Portugal
em verso, tentando glosar "Os Lusíadas",
cujo estudo constituía a maior estopada do 5º
ano do liceu, ainda por cima porque todas as estrofes da
obra de Camões eram analisadas à lupa, excepto
as da Ilha dos Amores, por razões óbvias.
Resumi a História de Portugal em 54 estrofes, já
devidamente dactilografadas, terminando com esta:
"(Caetano) Merece estar no trono português/
por aquilo tudo o que já fez
No entanto, não deixem de pensar,/ no velho presidente
Salazar/
Desterrado numa casa de saúde/ esperando que tudo
mude
Rezemos por Salazar, rezemos/ Louvemos, Caetano, louvemos!"
O segundo volume da dita colecção, chamava-se
"O Ano de 1969" e fazia uma revisão dos
acontecimentos desse ano em 68 estrofes, terminando com
estas duas:
"Até se encomendam agora/ golpes de estado
que, numa hora
rebentam onde quer que seja/ ou onde o cliente deseja
É só saber contratar/ tipos que saibam disparar
Até desses negociantes já há/ mas não
há disso por cá…
E nós todos ansiamos por emoção/
por uma pequenina revolução
Uma coisa sem importância/ feita com nenhuma ganância
Só para podermos mostrar/ que nos sabemos revolucionar
E então alguém gritará:/ "Golpes
também já temos cá! Mmmmf!…"
Estão a ver a ousadia?… Nos princípio
dos anos 70, um puto a querer fazer carreira como preso
político? O que vale é que este exemplar único
nunca saiu do meu círculo de amigos do liceu e, por
sorte, nenhum devia ser filho de algum agente da Pide…
Finalmente, a Colecção Riso Sarcástico
ainda publicou um terceiro volume, que se intitulava "Frei
Suís de Lousa", e que era uma adaptação
muito livre da tragédia do Almeida Garrett, que éramos
obrigados a estudar no 5º ano do liceu.
Toda esta produção literária tinha
que ter uma de duas consequências, segundo a lógica
banal das coisas: ou me tornava num escritor ou acabava
por esquecer a escrita. Só que a lógica das
coisas nunca é banal, acho eu. Assim, nem me tornei
escritor nem abandonei a escrita. Como diria o António
Maria Lisboa, numa frase que nos foi perseguindo ao longo
da nossa vida: "tudo é e não é,
alternadamente"…
Mas em 1972, a Mila é que era! Um mês depois
de termos começado o nosso romance, já eu
andava preocupado em tentar arranjar um meio de subsistência,
que não fosse a magra semanada que o meu pai me dava
e que, na altura, perfazia os 340 escudos mensais. Recordo-me
bem dos tempos em que ele me dava 20 escudos por semana.
Andava eu na instrução primária e estava
doido com uns modelos de plástico de índios
e cowboys que se vendiam numa papelaria lá da avenida.
Admirava sobretudo os índios, com os seus longos
toucados de penas e os peitorais à mostra. Um dia,
depois do Zé Couto me ter dado os 20 paus da semana,
fui à papelaria e estoirei o dinheiro todo num modelo
de um índio a cavalo, brandindo um machado de guerra,
pronto para atacar os caras-pálidas. Quando cheguei
a casa, muito orgulhoso da minha nova aquisição,
o meu pai ficou histérico porque eu não sabia
administrar o dinheiro, porque tinha gasto tudo num estúpido
boneco e obrigou-me a ir à papelaria devolver o boneco
e reaver o dinheiro, o que fiz, constrangido, envergonhado,
e com a ajuda da minha mãe, sempre pronta a deitar
água na fervura.
E o que eram 340 escudos por mês para um rapaz de
18 anos que tinha encontrado o amor da sua vida e que, um
mês depois, já não conseguia pensar
a vida sem esse grande amor? Com as idas ao cinema (bilhetes
a 20 escudos), com os lanches de cerveja e cadelinhas, o
maço de tabaco a 5 escudos (na altura fumava CT e
um maço dava quase para uma semana), os concertos
no S. Luiz a 10 escudos e cada volume dos cadernos D. Quixote
a 7 escudos e 50 centavos, pouco sobrava para constituir
família e viver independentemente!…
Foi então que comecei a dar explicações.
Para isso contribuiu o facto do meu irmão Paulo frequentar
o 3º ano e ter alguns colegas em dificuldades. Comecei
por dar explicações de Francês, Inglês,
Matemática (espanto!) e Física ao Olegário
que, no primeiro período escolar, só tinha
tido positiva a Desenho. Ganhava 30 escudos à hora,
o que perfazia 480 escudos por mês. Já era
mais do que o Zé Couto me dava!
Graças a esse ordenadão, comecei eu próprio
a comprar os meus jornais, deixando a pinderiquice de ter
que me sujeitar a ler o jornal que o meu pai comprava e
que era o Diário Popular.. Foi assim que comecei
a comprar o Diário de Lisboa, primeiro, e depois
os mais revolucionários República, Notícias
da Amadora e Correio do Funchal. Eu e a Mila passámos
tardes a ler as entrelinhas destes jornais, a recortarmos
os artigos que nos impressionavam e a colá-los em
álbuns que ainda guardo. Destacavam-se, para além
das redacções da Guidinha, do Staut Monteiro
e do suplemento "A Mosca", no Diário de
Lisboa, os artigos do Álvaro Guerra e do Raul Rego,
no República.
Sinais dos tempos foram os presentes que recebi nos meus
18 anos: o Zé e a Paula deram-me as "Peregrinações
Interiores", do Alçada Baptista, o Zé
Carlos deu-me uma antologia de poemas do Pablo Neruda, os
meus manos deram-me "O Pavilhão dos Cancerosos",
do Soljenitsine, o meu velho amigo Hermínio apareceu
do nada para me oferecer "O Movimento Estudantil",
do Rui Namorado, a minha mãe deu-me uma toalha de
feltro verde, com apliques de cartas de jogar, que ela fez,
para as grandes kingalhadas, a Mila (o meu grande amor,
como escrevi no caderninho) ofereceu-me "Apocalipsis"
dos Acqua Viva, um grupo castelhano de quem gostávamos
muito e o Zé Couto deu-me - pasme-se! - um isqueiro!
O Artur fumador, intelectual de esquerda, estava em crescimento!…
Escrevia poemas revolucionários a torto e a direito,
exultava com tudo o que pudesse cheirar a esquerda nos jornais
e queria colaborar, de algum modo, na mudança das
coisas. No entanto, a clarividência era pouca e a
coragem ainda menos. Mesmo assim, tentava. O jornal "A
Capital" organizou um concurso de frases, chamado "O
Humor do Leitor". A melhor frase da semana era premiada
com 500 escudos. Não ganhei, mas uma das minhas frases
foi escolhida como uma das melhores da semana, em Maio de
1972, e rezava assim: "Na geometria, o cone de revolução
é uma figura subversiva." Eu andava armado em
malandreco, como o ardina que, diz-se, anunciava no Rossio
os jornais da tarde, apregoando os seus títulos,
sem pausas: "Lisboa, Capital, República, Popular"
Para comprovar as nossas tendências de esquerda, andámos
durante uns tempos envolvidos num projecto de dinamização
no Bairro das Furnas, organizado por um tipo que escrevia
no Notícias da Amadora, de nome José João
Louro, e que consistia, fundamentalmente, em dar à
malta das barracas coisas que eles nunca tinham querido
(isto é que é ser intelectual de esquerda,
para quem ainda não percebeu: boa música,
de preferência chata, bom cinema, de preferência
muito chato e outras coisas igualmente aborrecidas). A experiência
cedo abortou, pelo menos para nós. Também
colaborámos, eu o Zé, no jornal "Elo",
publicado pelos estudantes do Ensino Técnico e Liceal
de Lisboa e cujo director, Mário Marques era conhecido
como o Marx de S. Domingos de Benfica. Eram só artigos
de cariz oposicionista, sobre a guerra do Vietnam por exemplo,
letras das cantigas do Zeca Afonso e do Manuel Freire e
coisas no género. A esta distância, cheira-me
que estivemos a dois passos de ser contactados para entrar
na Juventude Comunista, ou para qualquer outra juventude
mais à esquerda, mas os nossos recrutadores devem
ter percebido que não éramos suficientemente
disciplinados para aguentar os ditames partidários.
Ainda bem!…
Entretanto, a minha relação com a Mila tornava-se
cada vez mais rica e era muito difícil estarmos separados.
A pouco e pouco, as pessoas começaram a identificar
a Mila com o Artur e vice-versa. Todas as tardes, quando
ia deixar a Mila no apeadeiro da Cruz da Pedra, para que
ela apanhasse o comboio para Queluz, onde vivia, voltava
para casa triste e até um pouco revoltado por não
saber como dar a volta à situação.
Como é que dois putos de 19 anos, estudantes universitários,
sem vintém, podiam tornar-se independentes sem, ao
mesmo tempo, deixarem a bela vida que levavam?
Enfim, a vida podia ser bela, mas nós estudávamos
que nem uns doidos, sobretudo para o exame de Anatomia que,
afinal, nunca se chegou a realizar porque, a páginas
tantas, o Ribeiro Santos foi assassinado e a Universidade
de Lisboa entrou em greve. Foi a estudar Anatomia que inventámos
a mania de cronometrar o nosso estudo. Em Junho de 1972
tínhamos acabado a nossa revisão dos calhamaços
do Rouviére, com um total de 160 horas e 50 minutos
de estudo. Depois, durante o Verão, fizemos uma segunda
revisão da matéria, com grandes intervalos
para visitar o tal nosso apartamento. Por isso costumo dizer
que o Pedro foi feito enquanto estudávamos Anatomia
comparada, pelo método de Braille, estão a
ver?... E não se pode dizer que não tivéssemos
sido avisados… Já tínhamos ouvido falar
da pílula e sabíamos da existência do
preservativo. No entanto, como obtê-los?… Certa
tarde, em minha casa, a minha mãe, sempre com aquele
seu ar doce, teve uma conversa connosco que era um alerta:
disse-nos que já tinha falado à minha irmã
Bela da menstruação (a miúda tinha,
então, 11 anos) e que ela própria, que fora
obrigada a fazer quatro abortos, já tinha pedido
ao Dr. Mayone que lhe receitasse uma pílula. Ora,
a minha mãe tinha 42 anos naquela altura e, muito
provavelmente, a pílula que ela tinha pedido ao médico
não deveria ser para ela, mas sim para a Mila. No
entanto, nem a minha mãe teve coragem para ir mais
além na conversa, nem nós percebemos, naquele
momento, onde é que ela queria chegar com aquilo.
Por isso, continuámos alegremente a fazer contas
à Ogino-Knaus e o resultado chama-se Pedro e está,
agora, com 29 anos.
Mas estou, mais uma vez, a adiantar-me e ainda não
contei como deve ser o início do meu namoro definitivo.
Portanto, eu estava decidido a não voltar a namorar
tão cedo. Estava transtornado com o meu namoro anterior
e queria ser livre! No entanto, isto era tudo treta. Eu
e o Zé Tó passávamos tardes inteiras
a falar de miúdas. Tínhamos até criado
os prémios laranja e limão, conforme conseguíamos
algo de bom ou de mau, no nosso dia a dia de conquistadores
de pacotilha. No dia em que conheci a Mila, disse ao Zé
que não tinha tido um prémio laranja, ao conhecê-la
- tinha tido um cabaz de laranjas!
No dia seguinte, na cantina da Faculdade, almocei com a
Fernanda e a Mila. Depois do bitoque ranhoso com ovo de
plástico a cavalo fomos beber a bica e fumar o cigarro,
que já eram tradicionais. Sentámo-nos os três
num grande sofá que existia em frente ao balcão
do café e a Mila encostou a sua cabeça no
meu ombro. Que sensação! Que frémito
pela espinha acima! Por que não dizê-lo? -
que tesão! Mas eu estava traumatizado com o meu namoro
anterior. Portanto, não me mexi, não fiz nada,
deixei-me estar, sossegadinho, aguardando os acontecimentos.
Só que a Mila não estava traumatizada por
nenhum namoro anterior e avançou: começou
a dar-me beijinhos pequenos e deliciosos no meu pescoço.
Pronto: engatou-me!
No outro dia, na Faculdade de Ciências, depois da
aula de Física Médica, já explorávamos
avidamente a boca um do outro...
Foi tudo muito rápido, muito urgente - muito bom!
Resumindo: conhecemo-nos a 27 de Dezembro de 1971, demos
os primeiros beijos a sério uma semana depois e,
em Setembro, estávamos à rasca...
A nossa dúvida perante a possível gravidez
da Mila começou de facto, em Setembro de 1972, completávamos
nós nove meses de namoro e a Mila, como presente,
ofereceu-me um maço de Gitannes, o que mostra bem
o que o cigarro significava para mim e quão especial
era um maço daquele tabaco francês, cujo preço
devia equivaler a uma das nossas semanadas… A irregularidade
dos períodos menstruais da Mila era notável
e, como o pior cego é o que não quer ver,
fomos esperando que os santos óleos aparecessem e
fizemos um voto de abstinência até que isso
acontecesse. Entretanto, no dia 24 de Novembro, saía
o meu primeiro poema na Página J do República.
Intitulava-se "Crónica muito resumida de um
domingo de praia" e exultei. No entanto, não
consegui fruir essa alegria completamente porque a menstruação
não havia meio de aparecer e nós começávamos
a ficar deveras preocupados. A Mila fez uma primeira análise
de gravidez numa farmácia na Rua Alexandre Herculano
e o resultado foi negativo.. Em consequência, fomos
todos festejar para o Solar dos Canadianos, como de costume,
com imperiais e cadelinhas, nós os dois, o Zé
e a Maria João, mais conhecida por Gatinha, porque
tinha olhos verdes, e que era a nova namorada do nosso grande
amigo. Mas deitámos foguetes antes da festa. Como
a menstruação teimasse em não aparecer,
a Mila foi a uma médica que alguém lhe indicou,
conhecida por saber ser discreta e que lhe pediu nova análise,
um Gailli Manini (o "meu" segundo teste de gravidez!),
que consistia em injectar a urina da candidata a grávida
num sapo, ou qualquer coisa igualmente primitiva, própria
dos anos 70.
O resultado foi positivo. A Mila estava mesmo grávida!
E, se já existissem ecografias, ficaríamos
a saber que a gravidez já ia bem avançada.
No dia 16 de Dezembro, de manhã, a Mila saiu para
ir às compras com a mãe, sentiu-se mal e vomitou.
Não precisou de grandes explicações,
a Arminda logo compreendeu que a filha estava grávida.
E lá me meti eu no comboio até Queluz, para
enfrentar os meus futuros sogros. O Sousa reagiu bem, embora
viesse à baila toda aquela conversa de que o nosso
futuro estava estragado, o que é que agora vão
fazer, e o curso, como vai ser?… De regresso a casa,
contámos tudo à minha mãe, que chorou,
como seria de esperar. À noite, contei ao meu pai,
que berrou e vociferou, como também era de esperar
e que até sugeriu que a Mila abortasse. Toda a nossa
conversa de sermos contra as convenções se
tinha desmoronado num ápice. De repente, o Artur
e a Mila, que andavam juntos desde o princípio do
ano, que não falavam sequer na palavra namoro, porque
era demasiado burguesa, tinham caído na história
habitual e iam-se casar e, como naquela altura, aos 19 anos,
ainda se era menor (menor que quê?), até precisaram
do consentimento dos pais para poderem oficializar a coisa!
Quase trinta anos depois deste episódio, vejo-o apenas
como uma anedota. Todo aquele sofrimento, todos aqueles
dias de dúvidas e incertezas, as noites mal dormidas
a pensar no futuro, as lágrimas vertidas pela Arminda
e pela minha mãe, a apreensão do Sousa e a
ira do meu pai, tudo isso foi em vão. Eu e a Mila
cá continuamos, os dois e, como no princípio,
ninguém vê o Artur sem a Mila e vice-versa.
A Mila tem sido a companheira, a amiga, a colega, a amante,
a mãe dos meus filhos, a confidente, o remédio
das minhas angústias, o fiel da minha balança.
A sua ternura envolve-me. O seu corpo excita-me como me
excitava aos 18 anos (ainda mais, posso dizê-lo sem
exageros). O seu rosto serena-me. A sua voz enleva-me. O
seu bom senso traz-me de volta à terra. O seu sentido
prático orienta-me. Mas, muitas vezes, quando eu
digo mata, ela acrescenta logo esfola. Gosta do que eu gosto
e aprendeu a gostar ao mesmo tempo que eu. Crescemos juntos.
Desenvolvemo-nos simultaneamente. Descobrimos coisas juntos:
os livros, a música, a política, a medicina,
o cinema, as angústias da vida, as dúvidas,
os medos, as doenças dos filhos, as alegrias dos
filhos, os êxitos dos filhos. Não houve nada
que não tivéssemos feito juntos e não
houve nada que eu gostasse de fazer e não tivesse
feito por causa dela. Não desisti de nada por causa
dela. Não fui por ali por ela ter ido por acolá;
acabei eu por ir por acolá, ou então, foi
ela por ali também. Não posso dizer que, sem
a Mila, eu não teria vivido, mas certamente teria
vivido outra vida, teria sido outro Artur e posso garantir
que só muito dificilmente seria tão bom como
tem sido. Obrigado, Mila!
E depois de toda esta conversa, Mila, não achas que
mereço mesmo uma grande cigarrada?…
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