< Voltar à homepage do Coiso
O Coiso
Memórias de um fumador
50 anos de história


5. A Mila (1971/72)

Os registos continuam a ser uma das minhas obsessões, embora esteja muito melhor.
Com 18 anos, registava quase tudo o que podia ser registado em grandes livros que o meu pai trazia do escritório. Eram uma espécie de sebentas, com folhas pautadas, que alternavam com folhas lisas, de papel pardo. Era aí que eu colava os bilhetes do cinema, os recortes dos jornais e outras coisas que eu achava importantes, foi também aí que escrevi alguns comentários ao meu dia-a-dia. Chamava a esses livros "Momentos de Ócio", e só tenho em meu poder o volume referente a 1971/72 - daí que a minha memória pareça mais avivada quando falo dessa época. No entanto, posso garantir que me estou a socorrer desse volume apenas para precisar um ou outro pormenor, já que a memória desses tempos continua bem viva.
Outra obsessão, de que já me curei: gravar música, primeiro em fita magnética, depois em cassete. O primeiro gravador que tive foi um Telefunken, oferecido pelo meu pai em Dezembro de 1971, e que lhe custou 7 contos. Passei tardes inteiras a gravar discos que os meus amigos me emprestavam; anos depois, passei tardes inteiras a gravar cassetes, que gravei e desgravei dezenas de vezes, com novas selecções; e ainda há dois ou três anos, passei algumas tardes, já não inteiras, a gravar mini-disc. Mas, como disse, estou muito melhor. Já sou capaz de me desfazer das coisas. De todo esse material gravado ao longo dos anos, apenas mantenho os mini-disc. Por enquanto… As grandes bobinas de fita magnética gravada, primeiro pelo Telefunken, depois por um Teac, semi-profissional, desapareceram há muito. As dezenas de cassetes que fui gravando, estão em casa do meu filho Pedro, e suspeito que apenas existam como depósitos de poeira e pelos de gata...
No dia 27 de Dezembro de 1971, logo de manhã, peguei num dos volumes do Rouviére e fui para a Colmeia estudar Anatomia. Lá estava uma colega minha, a Fernanda, acompanhada da Mila. Não percebi logo, mas era evidente que não ia ficar mais do que três meses sem namorada. O que eu não sabia na altura, nem poderia nunca imaginar, é que a Mila iria ser a minha companheira de sempre, que iríamos crescer juntos, conhecer a vida e vencer as suas etapas juntos e que, 30 anos depois, ainda mantemos, um pelo outro, aquele entusiasmo que sentimos naquela manhã de Dezembro de 1971, quando nos vimos pela primeira vez. Nessa mesma tarde, ou na seguinte, quando a Mila me perguntou o que iria eu fazer no dia seguinte, respondi-lhe que iria estudar com a Ana. Soube depois que a Mila ficou cheia de ciúmes dessa tal Ana, que não era mais do que o diminutivo carinhoso da terrível Ana-tomia... Coisas de adolescentes em fim de carreira...
Logo no dia a seguir, encontrámo-nos todos na cantina da Cidade Universitária. Afinal, a Mila também era minha colega mas, no meio de quase mil novos alunos que tinham entrado naquele ano na Faculdade de Medicina, nunca nos tínhamos encontrado antes. A Mila exerceu sobre mim um efeito imediato, por três ordens de razões, acho eu: vestia como uma intelectual de esquerda (se me apetecer ainda explico esta), tinha uns olhos azuis deslumbrantes e - acertaram! - fumava. Claro que este último pormenor foi irrelevante para o início da nossa relação, mas dá jeito para a narrativa.
A minha relação com a Mila desenvolveu-se com a urgência própria da juventude. Lembram-se quando eu disse atrás que a aprendizagem lenta e progressiva é para os miúdos da instrução primária, enquanto os adolescentes querem aprender tudo de uma vez só? Também é assim na aprendizagem do amor. No dia 4 de Janeiro de 1972 começámos oficialmente a namorar e, no dia 11 de Junho do ano seguinte, nasceu o Pedro - estão a perceber onde quero chegar?

Mila e Artur em 1972

Bom, namorar não é o termo correcto. Naqueles tempos, estávamos empenhados em mudar o mundo a todos os níveis, quebrar tabus, vencer barreiras sociais, tentar ser o menos convencional possível, por isso, a palavra namoro tinha uma conotação demasiado burguesa. Andávamos um com o outro. O Zé Tó andava com a Ana Paula e o Zé Carlos andava com a Teresa. De repente, o grupo de rapazolas que jogava à bola, ia às sessões da meia-noite e depenava patos ao king, passou a ser um grupo de casais. E andávamos todos sedentos de experiências sexuais. As cenas de marmelada eram mais que muitas e qualquer local servia: o relvado do estádio da Cidade Universitária, a Sala de Alunos, o banco de trás do piso superior do autocarro, carreira 34, Benfica-Hospital de Santa Maria e, claro, as matas da Costa da Caparica, nos tempos em que a Costa da Caparica ainda tinha matas de acácias tão densas que era preciso andar de gatas, o que tornava fácil encontrar sítios propícios à satisfação dos nossos desígnios… Tínhamos, nessas matas, um sítio especial, por onde acedíamos por Santo António da Caparica, mesmo junto ao café Ninho; embrenhávamo-nos um pouco, até onde as acácias quase rasavam o chão e por aí ficávamos longas tardes de Agosto. Chamávamos a esse local, o nosso apartamento - uma toalha de praia e as densas camadas sobrepostas de folhas caídas das acácias faziam uma cama excelente; depois da função terminada, abríamos um buraquinho no chão, para servir de cinzeiro, e saboreávamos o tal cigarro post-queca, que sabe sempre bem. Cada vez que me lembro ao que nos afoitávamos naquelas tardes quentes do verão de 1972!… Às vezes, a urgência era tanta que nem chegávamos ao apartamento, e era logo ali, mesmo ao lado do café Ninho, sujeitos a sermos apanhados com a boca na botija. Tanto eu como a Mila temos quase a certeza que o Pedro foi feito numa dessas matas, mais precisamente para os lados da Fonte da Telha…
A convivência com o Zé Tó, a paixão pela Mila e a frequência da Faculdade tinham, definitivamente, assassinado o Fernando. Eu já era o Artur. E começava a descoberta de muitas coisas que, até aí, estavam ocultas para mim, ou melhor, coisas de cuja existência eu sabia, mas que nunca tinha tentado conhecer. Ao mesmo tempo, tínhamos todos a mesma idade, as mesmas raízes sociais e a mesma cultura. Começámos a acreditar numa certa imagem de nós próprios: estudantes universitários, que se queriam cultos e eruditos, amantes da liberdade de costumes, denunciantes da hipocrisia reinante, críticos da ditadura, mas mantendo, sempre - ou quase sempre, vá lá… - um refinado sentido de humor, por vezes demasiado cáustico, muitas vezes demasiado intolerante mas, enfim, tudo isso se modifica com o crescer…
Um das primeiras descobertas de 1972 foi a música dita clássica. Eu e a Mila fomos assistir a um concerto no S. Luiz, em que a orquestra da Emissora Nacional interpretou o 4º Concerto para piano do Beethoven e a 4ª Sinfonia do Tchaikovsky e, a pouco e pouco, o rock começou a recuar. Mas ainda se aguentou bem durante mais alguns meses. Naquela altura, havia muitas bandas de rock dito progressivo; parecia que até os rockeiros estavam um pouco fartos da simplicidade do rock-and-roll e se tinham virado para a música erudita. São dessa época bandas como os Genesis, os Yes, os King Crimson, Emerson, Lake and Palmer e os Jethro Tull, entre outras. Esta última banda, abalou tudo com o famoso "Thick as a brick", álbum que comprei em Novembro desse ano e ouvi vezes sem conta, uma das quais, em casa do Zé, que tinha uma aparelhagem melhor que a minha. Essa noite ficou bem gravada na memória: o Ian Anderson cantava "I hope you don't mind…" e eu fumava um cigarrinho e bebia cerveja preta numa caneca de barro. Coisas da tal memória selectiva, não é?… O sabor daquela cerveja ainda hoje está bem vivo.
Outra das descobertas do Artur, esse jovem universitário, foi que o futebol era reaccionário. Em Portugal, o futebol é qu'induca e o fado é qu'instrói, dizia-se. Quanto ao fado, estávamos conversados - detestava-o. Já no que respeita ao futebol, foi uma decisão difícil e tive que recorrer à razão porque, se me deixasse mover pela paixão, tinha continuado a vibrar com o futebol, como vibrei desde puto e continuo a vibrar agora. Mas pronto - o futebol era reaccionário, por isso, deixei de ir ao futebol e atirei com o meu cartão de sócio do glorioso para um sítio qualquer, bem escondido, tão bem escondido que, durante anos, acreditei que o tinha destruído, na minha fúria anti-futebol. Muitos anos depois, no entanto, reencontrei esse cartão, com o número de sócio 23 984 e uma fotografia do Fernandinho.
Ainda me lembro do último jogo a que fui assistir ao Estádio da Luz, em que o Benfica derrotou o Leixões por 5 a zero, se não estou em erro. Só tornei a entrar num estádio de futebol há poucos anos para assistir ao concerto do Sting. Quanto a futebol, já há muitos anos que não perco um jogo na televisão e, ao vivo, no ano passado voltei ao Estádio da Luz, desta vez com o Pedro, para ver o Benfica derrotar o Beira-Mar por 4 a 1. Hoje mesmo, no dia em que estou a escrever estas linhas, fui à Catedral da Luz, como lhe chamam, e inscrevi-me a mim e ao Pedro como sócios do Benfica! Fiquei com o número 116 884 - quase cem mil benfiquistas depois!...
O futebol e o Benfica eram, talvez, os únicos gostos em comum com o meu pai, que me fez sócio do glorioso ainda eu andava de gatas. Mais tarde, a sua fixação no Benfica cresceu desmesuradamente e, no dia em que foi registar o meu irmão Paulo, dias depois do seu nascimento, foi também inscrevê-lo como sócio. Com a minha irmã já não fez a mesma coisa porque, nessas coisas (e nas outras…), o meu pai era muito conservador: as mulheres não deviam ir ao futebol.
Desde pequeno que acompanhei o meu pai a tudo o que era prova desportiva em que entrasse o Benfica, quer em futebol, quer em hóquei em patins. Quando morávamos na Avenida Gomes Pereira, onde também ficava uma sede do Benfica com o ringue principal de hóquei, era frequente irmos os dois assistir aos jogos em que o Livramento e outros de que já não me lembro se destacavam com os dribles fabulosos e as corridas desenfreadas sobre patins, atrás de uma bola que ninguém via; só quando a rede da pequena baliza balançava e o árbitro assistente agitava a bandeirinha é que a malta se levantava num grito uníssono: "Golo!"
Nessa sede do Benfica, também o Fernandinho aprendeu a andar de patins e até deu alguns toques na bola. Além disso, frequentava a ginástica do Benfica e, no final do ano, apresentava-me, garboso, no sarau do clube, trazendo para casa, orgulhosamente ao peito, uma medalha comemorativa. A maluqueira pelo futebol continuava no quintal da nossa casa. Num dos topos do pequeno quintal, que deveria ter uns sete metros de comprimento por três de largura, construiu o meu pai uma baliza, onde me treinava para guarda-redes. Muitas tardes foram ali passadas com os amigos da rua, disputando jogos de pontapé e sarrafada.

O Fernandinho, perfilado, com mais uma medalha ao peito e um penso rápido no joelho, fruto de alguma lesão ocorrida durante mais um sarau de ginástica do Benfica.

Tinha eu 13 anos quando nos mudámos para a Rua do Montepio Geral, em S. Domingos de Benfica e, a partir dessa altura acabou-se o hóquei e ficou só o futebol. Mas chegava muito bem. Havia fins de semana em que íamos, ao sábado à tarde, ver o jogo das reservas (agora seria a equipa B), no domingo de manhã íamos ver os juniores e, à tarde, a equipa principal. Lembro-me dos jogadores quase todos, o Coluna, o José Águas, o Cávem, o Germano, o Costa Pereira, o José Augusto, o Torres, o Ângelo, o Nené, o Chalana, o Humberto Coelho e, claro, o grande Eusébio.
Sempre que o Benfica jogava em casa, juntava-se um pequeno grupo de fãs, do qual eu era o único miúdo: além do meu pai, ia também o gordo e bronquítico Gonzaga (cuja rotunda mulher, a Natália, com mais de cem quilos, ficava em minha casa a alambazar-se com bolos e mousses de chocolate), o primo Vítor e o Calinhos. Todos passavam o jogo a fumar, excepto o meu pai e eu, claro. Todos passavam o jogo a chamar nomes bárbaros ao árbitro, excepto eu, claro. E sempre que o Benfica marcava um golo - o que, nos anos sessenta, era muito frequente - saltávamos em conjunto e havia gritos de alegria e abraços. Eram talvez os únicos momentos em que eu e o meu nos abraçávamos...
O Calinhos era um personagem interessante. Amigalhaço do meu pai, também nascido no Bairro Alto, mas na Rua da Barroca, tinha um andar esquisito, parecendo estar sempre a pôr os pés em cima de vidros. A sola dos seus pés era um calo pegado e aquilo devia provocar-lhe uma dor lancinante ao andar. Dizia o meu pai que, de vez em quando, a mulher lhe aliviava o sofrimento, rapando-lhe as sola dos pés com uma lâmina de barbear…
O Gonzaga era estivador e colega do meu pai na Companhia Colonial de Navegação e era o bombo da festa. Apesar de ser bem mais velho que o meu pai, era gozado indecentemente. O Zé Couto chamava-lhe tudo e usava-o como moço de recados e o pobre do Gonzaga, apesar de já ter cabelos brancos, calava-se e tudo aguentava. Ele e a Natália formavam um par curioso, que recordo sempre que revejo um daqueles filmes portugueses dos anos 30 e 40, com o Vasco Santana e o António Silva. Ainda por cima, a Natália e o Gonzaga viviam ali para os lados do Castelo de S. Jorge, se não estou em erro, num pátio em tudo semelhante ao pátio em que vivia o Vasquinho da Anatomia, no filme "A Canção de Lisboa". Muitas vezes, o Gonzaga fazia recados ao meu pai. Mas raramente se saía bem da tarefa. Lembro-me que, certo dia, o pobre homem terá ido comprar vinho ao meu pai, que lhe emprestou o carro para o efeito. De regresso a Benfica, um dos garrafões tombou e o Gonzaga não foi de modas, baixou-se para endireitar o garrafão, a fim de que não se perdesse o precioso líquido e, nesse movimento, tirou as mãos do volante, estampando-se com o carro do meu pai. Digam lá se esta cena não seria digna de um daqueles filmes do Perdigão Queiroga!...

O Gonzaga comigo ao colo, algures em 1954

Passei belas tardes de domingo a ver aqueles golos fantásticos do Eusébio, ou as grandes defesas do Costa Pereira e do Zé Gato. E as noites europeias! Lembro-me de um jogo contra o Feijnoord, em que o Estádio estava à cunha e vi o jogo empoleirado num muro, com o meu pai em cima de uma grade de cervejas, que ele também era baixinho, a apoiar-me as costas de cada vez que eu saltava para festejar mais um golo do Benfica.
Mas pronto - o futebol era reaccionário, a Mila não ligava nenhuma ao pontapé na bola (embora o pai dela fosse tão ou mais fanático pelo Benfica que o meu pai), o Zé Tó também não achava muita graça à coisa e eu deixei de ir ao futebol em 1972. Portanto, o rock, só progressivo e por pouco mais tempo; a música clássica a ocupar cada vez mais espaço; o futebol a desaparecer completamente. Quanto à aparência, também tudo tinha mudado. Acabara-se o tempo das camisas cintadas e com colarinhos redondos. Acabara-se a preocupação quanto à aparência. Os cabelos cresceram um pouco mais, que o Zé Couto já tinha dificuldade em criticar um estudante de Medicina, a barba mal semeada era feita semestralmente, as camisas eram todas aos quadrados, as calças, de bombazina ou de ganga. Era este o "look" dos intelectuais de esquerda. Faltava a política. Mas não há melhor escola da política do que a Universidade. Foi também em Janeiro daquele ano que assistimos todos a um espectáculo na Sala de Alunos de Medicina que nos marcou profundamente: o Fausto cantou canções de cunho marcadamente revolucionário e o Ary dos Santos disse alguns dos seus poemas, daquela maneira que só ele sabia dizer - "SARL… SARL… a pança do patrão não lhe cabe na pele/ a mulher do gerente não lhe cabe na cama". O Artur poeta exultou.
Mal cheguei a casa, comecei logo a reler as dezenas de poemas que escrevera desde, pelo menos, os 16 anos. Escolhi os que achei melhores e passei-os à máquina, em folhas A4 de papel almaço. Depois, mandei-os encadernar. Chamei a esse primeiro livro de exemplar único "As Colchas" e penso que vale a pena transcrever o poema que dava nome ao livro e que foi escrito em Maio de 1971:

"duas colchas amarelas/ pendendo das janelas/ da travessa de S. José
mas que me interessa a mim/ duas colchas amarelas/ pendendo das janelas/ da travessa de S. José
duas colchas amarelas/ pendendo das janelas/ da travessa de S. José
são iguais a duas colchas amarelas/ pendendo das janelas/ de outra travessa qualquer"

Enfim, tem alguma graça… Mas o que me interessava mais era a crítica social. Tomem lá este naco:

"grupos, corporativas, associações/ sindicatos, grémios, congregações
não são mais que colectividades/ formadas por individualidades
que não trabalham para um fim comum altruísta
mas sim para um fim individual/ que cada indivíduo
individualmente tem em vista!"

Até me falta o fôlego, só de ler…
Depois de "As Colchas", ainda fiz mais dois volumes encadernados com poemas: "O Menino Mundo" e "Pedradas no Charco", todos com textos escritos durante 1972. Escrevia que me desunhava!
Esta mania dos exemplares únicos já vinha de trás. Aos 9 anos, mais precisamente em Junho de 1962, publicava o nº 1 do jornal "O Alvo", publicação que se manteve durante dois anos, embora só fosse editada nos períodos de férias escolares. Saía aos sábados e consistia em duas folhas arrancadas de um caderno diário e que eu preenchia com concursos, adivinhas, histórias de xerifes e "grandes chefes selvagens", cromos das várias colecções que estavam na moda, notícias de desporto e desenhos. Como não tinha, nem nunca tive, qualquer tipo de habilidade para desenhar, copiava os desenhos das capas do Mundo de Aventuras e das publicações do Walt Disney em papel vegetal e depois passava-os para o meu jornal, colorindo-os em seguida. A isto se chama engenho. Um puto de 9 anos, naquela altura, não tinha os lindos álbuns para colorir que hoje se vendem em qualquer hiper-mercado; então, inventava ele próprio, uma maneira de se entreter com aquilo que todos os putos gostam: brincar com os lápis de cor. No entanto, o facto de não saber desenhar não me impediu de, a partir do nº 14 do jornal "O Alvo", começar a publicar uma banda desenhada da minha autoria (desenhos e argumento); chamava-se "Kansas Kid em Aventura Fantástica" e os desenhos fazem lembrar Miró, nos dias em que este pintor espanhol estava especialmente mal disposto. Quanto ao Kansas Kid - que, mais tarde, se haveria de personificar no corpo do tal professor de Física-Química - era um cow-boy como deve ser que, logo no quinto quadradinho da história, exclama: "Os bandidos!" e começa a disparar porque, como diz o narrador, "não se consegue conter", gritando logo a seguir: "Ah! São mexicanos!…" Assim nasciam, indelevelmente, os racismos num puto de 9 anos...
O jornal "O Alvo" também publicava, em exclusivo, as classificações das corridas de caricas. Nas férias grandes, todos os anos se realizava, a Volta à Casa em Carica, constituída por várias etapas, ao longo das várias divisões da nossa casa na Avenida Gomes Pereira. Concorriam diversas equipas: as caricas da cerveja Sagres, as da água do Vimeiro, as da Canada Dry, do Sumol, da Laranjina C e outras que já não recordo. Era eu próprio que lançava as caricas, uma a uma, entre o médio e o polegar e, no final de cada etapa, anotava a classificação que, depois, "O Alvo" publicava em exclusivo. Acrescento que o jornal "O Alvo" custava cinco tostões e que eu o vendia à minha mãe e à minha avó, que pagavam essa quantia (e um pouco mais, para ajudar o editor…) só para lerem, já que tinham que devolver o jornal ao seu autor, uma vez que se tratava de um exemplar único. Além da minha mãe e da minha avó, os leitores de "O Alvo" eram constituídos pelos meus colegas do Colégio D. João da Câmara, que frequentei durante os quatro anos da instrução primária. Dois deles acabaram por se render àquele jogo um pouco absurdo de editar um jornal de exemplar único: o Rui Oliveira e o Almeida Cruz que, a partir de certa altura, começaram a colaborar comigo na feitura do jornal. Aqui está uma sugestão para os miúdos se entreterem durante as férias escolares: experimentem brincar aos editores de jornais…
E já que voltei a falar do Almeida Cruz que, anos depois, voltei a ver como colega de Medicina e, simultaneamente, delegado de informação médica, acho que vale a penar referir que fui colega do Nuno Lobo Antunes, nesse Colégio D. João da Câmara que, alguns anos antes, fora frequentado pelo seu irmão mais velho, o António, o psiquiatra, o escritor que, em muitas das suas crónicas fala do colégio e do mestre André...
Depois de "O Alvo", continuei com o jornal "Beatles", entre os anos de 1964 e 1968, sempre no período das férias escolares. Passei das duas folhas arrancadas ao caderno diário para as folhas de papel almaço quadriculado. O jornal "Beatles" chegou a ter três ou quatro folhas de papel almaço quadriculado, com uma capa de papel almaço liso, onde eu desenhava (copiado por cima, claro) um boneco do Walt Disney, devidamente colorido; o jornal passava, assim, a revista. Pelo meio, ainda fiz alguns exemplares do "Jornal Juvenil", de parceria com os dois putos que foram, de facto, os meus dois amigos de infância. Assim rezava a ficha técnica do jornal: director - Victor Camarate Pereira, autor - Artur Fernando Couto e Santos, realizador - Carlos Santos Vargas. Aqui ficam os nomes para a posteridade. Onde estarão agora o Vitinho e o Vargas, que eu achincalhava nas nossas brincadeiras infantis?… Recordo um dia em que brincávamos aos comboios no corredor da minha casa da Avenida Gomes Pereira, que não devia ter mais de quatro metros de comprimento, mas que dava para jogar à bola e andar de patins. Brincar aos comboios era ir buscar as cadeiras da mobília Queen Anne dos meus pais, deitá-las no chão, costas com costas, pés com pés, e formar assim carruagens de um imaginário comboio de mercadorias, do qual eu era o único e inquestionável maquinista. Claro que o Vitinho e o Vargas também queriam ser maquinistas, mas estavam com azar; o comboio era meu, o corredor era meu, as cadeiras eram minhas, portanto, eu tinha que ser o maquinista e, quem não quiser brincar assim, vai para a rua. E eles foram, a chorar, incapazes de por em causa a liderança. Coisas do ainda filho único … Também brincávamos aos naufrágios junto dos grossos troncos das enormes árvores da Avenida Gomes Pereira. Eram árvores frondosas e, penso eu, com vários anos de vida. No Verão, os funcionários da Câmara, vinham regá-las com regularidade; abriam covas fundas em redor do seu tronco e enchiam-nas com água. Era nesses lagos que nós púnhamos a flutuar os nossos barcos de papel, imitando as caravelas do Vasco da Gama, que acabáramos de conhecer.
E os exemplares únicos continuaram pela vida fora. Em 1969 foi a vez da colecção "Riso Sarcástico" aparecer. O primeiro volume tinha como título "História Luso-Portuguesa" e a editora denominava-se "Papel d'Embrulho". Tratava-se de uma História de Portugal em verso, tentando glosar "Os Lusíadas", cujo estudo constituía a maior estopada do 5º ano do liceu, ainda por cima porque todas as estrofes da obra de Camões eram analisadas à lupa, excepto as da Ilha dos Amores, por razões óbvias. Resumi a História de Portugal em 54 estrofes, já devidamente dactilografadas, terminando com esta:

"(Caetano) Merece estar no trono português/ por aquilo tudo o que já fez
No entanto, não deixem de pensar,/ no velho presidente Salazar/
Desterrado numa casa de saúde/ esperando que tudo mude
Rezemos por Salazar, rezemos/ Louvemos, Caetano, louvemos!"

O segundo volume da dita colecção, chamava-se "O Ano de 1969" e fazia uma revisão dos acontecimentos desse ano em 68 estrofes, terminando com estas duas:

"Até se encomendam agora/ golpes de estado que, numa hora
rebentam onde quer que seja/ ou onde o cliente deseja
É só saber contratar/ tipos que saibam disparar
Até desses negociantes já há/ mas não há disso por cá…

E nós todos ansiamos por emoção/ por uma pequenina revolução
Uma coisa sem importância/ feita com nenhuma ganância
Só para podermos mostrar/ que nos sabemos revolucionar
E então alguém gritará:/ "Golpes também já temos cá! Mmmmf!…"

Estão a ver a ousadia?… Nos princípio dos anos 70, um puto a querer fazer carreira como preso político? O que vale é que este exemplar único nunca saiu do meu círculo de amigos do liceu e, por sorte, nenhum devia ser filho de algum agente da Pide…
Finalmente, a Colecção Riso Sarcástico ainda publicou um terceiro volume, que se intitulava "Frei Suís de Lousa", e que era uma adaptação muito livre da tragédia do Almeida Garrett, que éramos obrigados a estudar no 5º ano do liceu.
Toda esta produção literária tinha que ter uma de duas consequências, segundo a lógica banal das coisas: ou me tornava num escritor ou acabava por esquecer a escrita. Só que a lógica das coisas nunca é banal, acho eu. Assim, nem me tornei escritor nem abandonei a escrita. Como diria o António Maria Lisboa, numa frase que nos foi perseguindo ao longo da nossa vida: "tudo é e não é, alternadamente"…
Mas em 1972, a Mila é que era! Um mês depois de termos começado o nosso romance, já eu andava preocupado em tentar arranjar um meio de subsistência, que não fosse a magra semanada que o meu pai me dava e que, na altura, perfazia os 340 escudos mensais. Recordo-me bem dos tempos em que ele me dava 20 escudos por semana. Andava eu na instrução primária e estava doido com uns modelos de plástico de índios e cowboys que se vendiam numa papelaria lá da avenida. Admirava sobretudo os índios, com os seus longos toucados de penas e os peitorais à mostra. Um dia, depois do Zé Couto me ter dado os 20 paus da semana, fui à papelaria e estoirei o dinheiro todo num modelo de um índio a cavalo, brandindo um machado de guerra, pronto para atacar os caras-pálidas. Quando cheguei a casa, muito orgulhoso da minha nova aquisição, o meu pai ficou histérico porque eu não sabia administrar o dinheiro, porque tinha gasto tudo num estúpido boneco e obrigou-me a ir à papelaria devolver o boneco e reaver o dinheiro, o que fiz, constrangido, envergonhado, e com a ajuda da minha mãe, sempre pronta a deitar água na fervura.
E o que eram 340 escudos por mês para um rapaz de 18 anos que tinha encontrado o amor da sua vida e que, um mês depois, já não conseguia pensar a vida sem esse grande amor? Com as idas ao cinema (bilhetes a 20 escudos), com os lanches de cerveja e cadelinhas, o maço de tabaco a 5 escudos (na altura fumava CT e um maço dava quase para uma semana), os concertos no S. Luiz a 10 escudos e cada volume dos cadernos D. Quixote a 7 escudos e 50 centavos, pouco sobrava para constituir família e viver independentemente!…
Foi então que comecei a dar explicações. Para isso contribuiu o facto do meu irmão Paulo frequentar o 3º ano e ter alguns colegas em dificuldades. Comecei por dar explicações de Francês, Inglês, Matemática (espanto!) e Física ao Olegário que, no primeiro período escolar, só tinha tido positiva a Desenho. Ganhava 30 escudos à hora, o que perfazia 480 escudos por mês. Já era mais do que o Zé Couto me dava!
Graças a esse ordenadão, comecei eu próprio a comprar os meus jornais, deixando a pinderiquice de ter que me sujeitar a ler o jornal que o meu pai comprava e que era o Diário Popular.. Foi assim que comecei a comprar o Diário de Lisboa, primeiro, e depois os mais revolucionários República, Notícias da Amadora e Correio do Funchal. Eu e a Mila passámos tardes a ler as entrelinhas destes jornais, a recortarmos os artigos que nos impressionavam e a colá-los em álbuns que ainda guardo. Destacavam-se, para além das redacções da Guidinha, do Staut Monteiro e do suplemento "A Mosca", no Diário de Lisboa, os artigos do Álvaro Guerra e do Raul Rego, no República.
Sinais dos tempos foram os presentes que recebi nos meus 18 anos: o Zé e a Paula deram-me as "Peregrinações Interiores", do Alçada Baptista, o Zé Carlos deu-me uma antologia de poemas do Pablo Neruda, os meus manos deram-me "O Pavilhão dos Cancerosos", do Soljenitsine, o meu velho amigo Hermínio apareceu do nada para me oferecer "O Movimento Estudantil", do Rui Namorado, a minha mãe deu-me uma toalha de feltro verde, com apliques de cartas de jogar, que ela fez, para as grandes kingalhadas, a Mila (o meu grande amor, como escrevi no caderninho) ofereceu-me "Apocalipsis" dos Acqua Viva, um grupo castelhano de quem gostávamos muito e o Zé Couto deu-me - pasme-se! - um isqueiro!
O Artur fumador, intelectual de esquerda, estava em crescimento!…
Escrevia poemas revolucionários a torto e a direito, exultava com tudo o que pudesse cheirar a esquerda nos jornais e queria colaborar, de algum modo, na mudança das coisas. No entanto, a clarividência era pouca e a coragem ainda menos. Mesmo assim, tentava. O jornal "A Capital" organizou um concurso de frases, chamado "O Humor do Leitor". A melhor frase da semana era premiada com 500 escudos. Não ganhei, mas uma das minhas frases foi escolhida como uma das melhores da semana, em Maio de 1972, e rezava assim: "Na geometria, o cone de revolução é uma figura subversiva." Eu andava armado em malandreco, como o ardina que, diz-se, anunciava no Rossio os jornais da tarde, apregoando os seus títulos, sem pausas: "Lisboa, Capital, República, Popular"
Para comprovar as nossas tendências de esquerda, andámos durante uns tempos envolvidos num projecto de dinamização no Bairro das Furnas, organizado por um tipo que escrevia no Notícias da Amadora, de nome José João Louro, e que consistia, fundamentalmente, em dar à malta das barracas coisas que eles nunca tinham querido (isto é que é ser intelectual de esquerda, para quem ainda não percebeu: boa música, de preferência chata, bom cinema, de preferência muito chato e outras coisas igualmente aborrecidas). A experiência cedo abortou, pelo menos para nós. Também colaborámos, eu o Zé, no jornal "Elo", publicado pelos estudantes do Ensino Técnico e Liceal de Lisboa e cujo director, Mário Marques era conhecido como o Marx de S. Domingos de Benfica. Eram só artigos de cariz oposicionista, sobre a guerra do Vietnam por exemplo, letras das cantigas do Zeca Afonso e do Manuel Freire e coisas no género. A esta distância, cheira-me que estivemos a dois passos de ser contactados para entrar na Juventude Comunista, ou para qualquer outra juventude mais à esquerda, mas os nossos recrutadores devem ter percebido que não éramos suficientemente disciplinados para aguentar os ditames partidários. Ainda bem!…
Entretanto, a minha relação com a Mila tornava-se cada vez mais rica e era muito difícil estarmos separados. A pouco e pouco, as pessoas começaram a identificar a Mila com o Artur e vice-versa. Todas as tardes, quando ia deixar a Mila no apeadeiro da Cruz da Pedra, para que ela apanhasse o comboio para Queluz, onde vivia, voltava para casa triste e até um pouco revoltado por não saber como dar a volta à situação. Como é que dois putos de 19 anos, estudantes universitários, sem vintém, podiam tornar-se independentes sem, ao mesmo tempo, deixarem a bela vida que levavam?
Enfim, a vida podia ser bela, mas nós estudávamos que nem uns doidos, sobretudo para o exame de Anatomia que, afinal, nunca se chegou a realizar porque, a páginas tantas, o Ribeiro Santos foi assassinado e a Universidade de Lisboa entrou em greve. Foi a estudar Anatomia que inventámos a mania de cronometrar o nosso estudo. Em Junho de 1972 tínhamos acabado a nossa revisão dos calhamaços do Rouviére, com um total de 160 horas e 50 minutos de estudo. Depois, durante o Verão, fizemos uma segunda revisão da matéria, com grandes intervalos para visitar o tal nosso apartamento. Por isso costumo dizer que o Pedro foi feito enquanto estudávamos Anatomia comparada, pelo método de Braille, estão a ver?... E não se pode dizer que não tivéssemos sido avisados… Já tínhamos ouvido falar da pílula e sabíamos da existência do preservativo. No entanto, como obtê-los?… Certa tarde, em minha casa, a minha mãe, sempre com aquele seu ar doce, teve uma conversa connosco que era um alerta: disse-nos que já tinha falado à minha irmã Bela da menstruação (a miúda tinha, então, 11 anos) e que ela própria, que fora obrigada a fazer quatro abortos, já tinha pedido ao Dr. Mayone que lhe receitasse uma pílula. Ora, a minha mãe tinha 42 anos naquela altura e, muito provavelmente, a pílula que ela tinha pedido ao médico não deveria ser para ela, mas sim para a Mila. No entanto, nem a minha mãe teve coragem para ir mais além na conversa, nem nós percebemos, naquele momento, onde é que ela queria chegar com aquilo. Por isso, continuámos alegremente a fazer contas à Ogino-Knaus e o resultado chama-se Pedro e está, agora, com 29 anos.
Mas estou, mais uma vez, a adiantar-me e ainda não contei como deve ser o início do meu namoro definitivo.
Portanto, eu estava decidido a não voltar a namorar tão cedo. Estava transtornado com o meu namoro anterior e queria ser livre! No entanto, isto era tudo treta. Eu e o Zé Tó passávamos tardes inteiras a falar de miúdas. Tínhamos até criado os prémios laranja e limão, conforme conseguíamos algo de bom ou de mau, no nosso dia a dia de conquistadores de pacotilha. No dia em que conheci a Mila, disse ao Zé que não tinha tido um prémio laranja, ao conhecê-la - tinha tido um cabaz de laranjas!
No dia seguinte, na cantina da Faculdade, almocei com a Fernanda e a Mila. Depois do bitoque ranhoso com ovo de plástico a cavalo fomos beber a bica e fumar o cigarro, que já eram tradicionais. Sentámo-nos os três num grande sofá que existia em frente ao balcão do café e a Mila encostou a sua cabeça no meu ombro. Que sensação! Que frémito pela espinha acima! Por que não dizê-lo? - que tesão! Mas eu estava traumatizado com o meu namoro anterior. Portanto, não me mexi, não fiz nada, deixei-me estar, sossegadinho, aguardando os acontecimentos. Só que a Mila não estava traumatizada por nenhum namoro anterior e avançou: começou a dar-me beijinhos pequenos e deliciosos no meu pescoço. Pronto: engatou-me!
No outro dia, na Faculdade de Ciências, depois da aula de Física Médica, já explorávamos avidamente a boca um do outro...
Foi tudo muito rápido, muito urgente - muito bom!
Resumindo: conhecemo-nos a 27 de Dezembro de 1971, demos os primeiros beijos a sério uma semana depois e, em Setembro, estávamos à rasca...
A nossa dúvida perante a possível gravidez da Mila começou de facto, em Setembro de 1972, completávamos nós nove meses de namoro e a Mila, como presente, ofereceu-me um maço de Gitannes, o que mostra bem o que o cigarro significava para mim e quão especial era um maço daquele tabaco francês, cujo preço devia equivaler a uma das nossas semanadas… A irregularidade dos períodos menstruais da Mila era notável e, como o pior cego é o que não quer ver, fomos esperando que os santos óleos aparecessem e fizemos um voto de abstinência até que isso acontecesse. Entretanto, no dia 24 de Novembro, saía o meu primeiro poema na Página J do República. Intitulava-se "Crónica muito resumida de um domingo de praia" e exultei. No entanto, não consegui fruir essa alegria completamente porque a menstruação não havia meio de aparecer e nós começávamos a ficar deveras preocupados. A Mila fez uma primeira análise de gravidez numa farmácia na Rua Alexandre Herculano e o resultado foi negativo.. Em consequência, fomos todos festejar para o Solar dos Canadianos, como de costume, com imperiais e cadelinhas, nós os dois, o Zé e a Maria João, mais conhecida por Gatinha, porque tinha olhos verdes, e que era a nova namorada do nosso grande amigo. Mas deitámos foguetes antes da festa. Como a menstruação teimasse em não aparecer, a Mila foi a uma médica que alguém lhe indicou, conhecida por saber ser discreta e que lhe pediu nova análise, um Gailli Manini (o "meu" segundo teste de gravidez!), que consistia em injectar a urina da candidata a grávida num sapo, ou qualquer coisa igualmente primitiva, própria dos anos 70.
O resultado foi positivo. A Mila estava mesmo grávida! E, se já existissem ecografias, ficaríamos a saber que a gravidez já ia bem avançada.
No dia 16 de Dezembro, de manhã, a Mila saiu para ir às compras com a mãe, sentiu-se mal e vomitou. Não precisou de grandes explicações, a Arminda logo compreendeu que a filha estava grávida. E lá me meti eu no comboio até Queluz, para enfrentar os meus futuros sogros. O Sousa reagiu bem, embora viesse à baila toda aquela conversa de que o nosso futuro estava estragado, o que é que agora vão fazer, e o curso, como vai ser?… De regresso a casa, contámos tudo à minha mãe, que chorou, como seria de esperar. À noite, contei ao meu pai, que berrou e vociferou, como também era de esperar e que até sugeriu que a Mila abortasse. Toda a nossa conversa de sermos contra as convenções se tinha desmoronado num ápice. De repente, o Artur e a Mila, que andavam juntos desde o princípio do ano, que não falavam sequer na palavra namoro, porque era demasiado burguesa, tinham caído na história habitual e iam-se casar e, como naquela altura, aos 19 anos, ainda se era menor (menor que quê?), até precisaram do consentimento dos pais para poderem oficializar a coisa!
Quase trinta anos depois deste episódio, vejo-o apenas como uma anedota. Todo aquele sofrimento, todos aqueles dias de dúvidas e incertezas, as noites mal dormidas a pensar no futuro, as lágrimas vertidas pela Arminda e pela minha mãe, a apreensão do Sousa e a ira do meu pai, tudo isso foi em vão. Eu e a Mila cá continuamos, os dois e, como no princípio, ninguém vê o Artur sem a Mila e vice-versa.
A Mila tem sido a companheira, a amiga, a colega, a amante, a mãe dos meus filhos, a confidente, o remédio das minhas angústias, o fiel da minha balança. A sua ternura envolve-me. O seu corpo excita-me como me excitava aos 18 anos (ainda mais, posso dizê-lo sem exageros). O seu rosto serena-me. A sua voz enleva-me. O seu bom senso traz-me de volta à terra. O seu sentido prático orienta-me. Mas, muitas vezes, quando eu digo mata, ela acrescenta logo esfola. Gosta do que eu gosto e aprendeu a gostar ao mesmo tempo que eu. Crescemos juntos. Desenvolvemo-nos simultaneamente. Descobrimos coisas juntos: os livros, a música, a política, a medicina, o cinema, as angústias da vida, as dúvidas, os medos, as doenças dos filhos, as alegrias dos filhos, os êxitos dos filhos. Não houve nada que não tivéssemos feito juntos e não houve nada que eu gostasse de fazer e não tivesse feito por causa dela. Não desisti de nada por causa dela. Não fui por ali por ela ter ido por acolá; acabei eu por ir por acolá, ou então, foi ela por ali também. Não posso dizer que, sem a Mila, eu não teria vivido, mas certamente teria vivido outra vida, teria sido outro Artur e posso garantir que só muito dificilmente seria tão bom como tem sido. Obrigado, Mila!
E depois de toda esta conversa, Mila, não achas que mereço mesmo uma grande cigarrada?…




Próximo capítulo: "A Procura da verdade" (1973)

 

Actualizado em: 5 de Agosto
O MELHOR DO PÃO COMANTEIGA
Textos seleccionados do Pão
CROMOS DO COISO
Cromos antigos para a troca e sites recomendados

O MELHOR DO PAU DE CANELA
Textos selecionados deste jornaleco de 1985

HISTÓRIAS POUCO CLÍNICAS
...mas muito cínicas
O MELHOR DO UMA VEZ POR SEMANA
Textos seleccionados deste programa sexual de 1986

COISAS DO COISO
textos e bonecos seleccionados que sairam no Coiso em papel

CAUSAS DO COISO
Como tudo começou

DICIONÁRIO PORRINHA
COMENTÁRIOS AO COISO
E-MAIL
Vá... enviem-me um e-mail!
Zona Privada
Este é o Coiso do Artur Couto e Santos.
Se tiver algum comentário a fazer ao meu Coiso, carregue aqui:

arturcs@netcabo.pt