6. A Procura da verdade (1973)
O grupo de amigos que arranjei aos 18 anos foi especial.
Aos 18 anos tudo é especial, não é?
Alguns deles (poucos) continuaram pela vida fora, mas a
partilha de ideias nunca foi tão intensa como naqueles
anos. Claro que a relação mais forte foi (e
continua a ser) com a Mila. Mas a Mila é um caso
à parte e a minha ligação com ela,
como já disse, continua hoje a ser tão especial
como era aos 18 anos. Exceptuando a Mila, o meu melhor amigo
foi o Zé Tó. Com ele partilhei tudo, menos
a Mila… A certa altura, quando vivíamos os
sete na mesma casa (eu, a Mila, o Zé, a Mizé
e os nossos filhos), costumava dizer ao Zé: só
falta trocarmos de mulheres.
Chamávamos àquele grupo de amigos, a Comuna.
Dizíamos que andávamos em busca da Verdade.
Da Comuna, faziam parte, fundamentalmente, eu, a Mila e
o Zé. Os outros elementos iam entrando e saindo,
conforme os nossos humores, ou consoante o Zé mudava
de namorada. No início, em 1971/72, o Zé namorava
com a Ana Paula, uma colega que também frequentava
Matemática na Faculdade de Ciências. Algarvia
de gema, vivia em casa de uns tios em S. Domingos de Benfica,
que faziam o favor de se ausentar de vez em quando, o que
nos permitia passar umas excelentes tardes orgíacas.
Temo, no entanto, que fôssemos demasiado exigentes
com a moça. No nosso radicalismo anti-burguês,
criticávamos tudo o que nos cheirasse a pose convencional:
detestávamos o fato e gravata, o baton e o rimel,
o sapato engraxado, a televisão, a música
popular, os políticos, os artistas emproados, os
pais, os nossos colegas em geral, a civilização
como um todo, a hipocrisia instalada, os snobismos, os falsos
intelectuais, os pais outra vez. Enfim, quase tudo. Era,
de facto, difícil, ser nosso amigo. Ana Paula fartou-se
e fez muito bem. Nós próprios nos fartámos,
mas só descobrimos isso anos depois…
O Zé Carlos e a Teresa também fizeram parte
da Comuna durante algum tempo, mas não aguentaram
a nossa pedalada. Sempre a falarmos de escritores e poetas,
de Beethoven e Mahler e Wagner, a conspirarmos permanentemente
para derrubar o poder - enfim, uns chatos! O Zé Carlos
era um pouco mais velho que nós e, como já
disse, trabalhava nas oficinas de aeronáutica da
Ota, acho eu. Tinha, portanto, um ordenado razoável
ao fim do mês e gostava, logicamente, de comprar umas
calças mais bonitas ou uma camisola mais à
moda. E nós a bater-lhe, a chamar-lhe burguês
de merda. Ainda nos tolerou durante algum tempo, até
porque gostava de jogar king e esfolar patos mas, um dia
foi para a tropa e aproveitou para se afastar definitivamente,
levando a Teresa consigo, ou talvez não, já
não me lembro.
A Fernanda, a tal colega que me apresentou a Mila, frequentava
também a Faculdade de Medicina; ela e o seu namorado
Tó também andaram connosco durante uns tempos.
Eu já conhecia a Fernanda; ambos estudávamos
na Colmeia. O que eu não sabia é que ela e
a Mila tinham andado juntas no Liceu Maria Amália,
razão pela qual acabaram por ir estudar, também
juntas, para a Colmeia. Só por isso, obrigado Fernanda!…
Ao Tó, chamávamos-lhe "Tó Bocas"
porque tendia a ser um pouco exagerado nas suas histórias.
Não lhe podíamos perdoar o facto de andar
de moto, com um daqueles fatos todos acolchoados. Isso era
tipicamente burguês. Um dos nossos ódios de
estimação era, exactamente, os putos-pop,
moto-pop, que se passeavam pelos lados do Arabesco, com
calças apertadinhas e pull-overs justos ao tronco,
trazendo, na mão direita, o maço de tabaco,
o isqueiro, a carteira e as chaves da moto ou do carro,
como se estivessem a exibir todos os seus pertences. E ainda
não havia telemóveis, que seria, certamente,
outro objecto a exibir pelos putos-pop, moto-pop. A Fernanda
e o Tó ainda nos aturaram durante algum tempo, mas
acabaram por se afastar.
E outros entraram e saíram da Comuna porque - sejamos
sinceros - ninguém nos aturava, com a mania da coerência
e da busca da Verdade.
Da esquerda para a direita: a Paula,
eu, a Fernanda, o Tó e a Mila, na Praceta Conde Otolini,
em S. Domingos de Benfica, 1972; o Zé fotografou.
Em 1973, o Zé começou a andar com a Gata
e o que ela deve ter sofrido!… Era uma miúda
doce e meiga, mas não tinha sequer acabado o liceu
devido a problemas familiares, nunca ouvira falar daqueles
nomes esquisitos que nós pronunciávamos a
cada momento e, embora nós gostássemos muito
dela e tentássemos, de várias formas, ser
mais tolerantes para com ela, muitas coisas desagradáveis
devemos ter dito e ela acabou por se afastar também.
Quer dizer que, ao fim e ao cabo, a Comuna éramos
só nós três.
E, afinal, o que era isso da procura da Verdade?
A procura da Verdade implicava pormos tudo em causa e discutirmos
tudo até à exaustão. Depois, púnhamos
as ideias no papel e publicávamos os textos em livros
de exemplar único.
Pela minha parte, publiquei quatro volumes sob o título
"Textos a Propósito", onde escrevi sobre
quase tudo. Quanto ao Zé, publicou não sei
quantos volumes, um dos quais me ficou na memória
pelo título: "Dois paus para a bica e uma sinfonia"
- digam lá se não parece o título de
um filme europeu, mesmo dos nossos dias… E até
a Mila, que sempre soube manter os pés bem assentes
na terra, que nos aturava sem nunca perder o sentido da
realidade, também publicou alguns livros, sobretudo
com desenhos, por sinal bem engraçados. Espero, aliás,
que recomece a desenhar e a pintar, mal acabe os tapetes
de Arraiolos que faz obsessivamente, e depois de acabar
também os puzzles que ainda tem para fazer…
O primeiro volume dos "Textos a Propósito"
foi, também, o primeiro livro de exemplar único
encadernado por nós. Os textos eram passados à
máquina em folhas A4 dobradas ao meio e organizadas
em cadernos, depois cozidos pela Mila; a capa era de cartolina,
com desenhos também da Mila, colada aos cadernos
com Pattex e metida numa prensa que o pai do Zé tinha.
Esse primeiro volume saiu em Julho e tinha 70 páginas
de textos escritos durante três meses, a propósito
de quase tudo. São textos muito datados e, na sua
maioria, eu já não os subscreveria. Vale a
pena, no entanto, transcrever algumas passagens, para que
fiquemos com uma ideia mais concreta do que considerávamos
a chamada "procura da Verdade".
O primeiro texto era a propósito do Cine Clube Católico,
do qual fomos sócios durante algum tempo, o que nos
permitia ver bons filmes (quase todos europeus), a baixo
preço, no cinema Alvalade, e dizia a certa altura:
"Estamos no Alvalade, assistindo a mais uma sessão
do círculo, quando os nossos ouvidos retiveram algumas
palavras que se soltaram das vizinhas de trás, espalhando-se
pela semi-obscuridade da sala. Comentavam o comentário.
Que era sobre o Lopes Graça. "Tenho a impressão
que ele faz umas músicas…" - dizia uma
das cultas associadas do dito círculo. Bichanaram
durante todo o documentário, soltaram suspiros de
enfado, remexeram-se na cadeira e descansaram finalmente,
quando as luzes se reacenderam e o écran impeliu
o pessoal todo a ir intervalar um bocado, fumando o cigarrinho
da ordem.
Foi então que reparámos nas damas. Pelo traje
dir-se-ia pertencerem à nossa melhor sociedade pop:
devidamente apetrechadas com as vestimentas ordenadas pelos
senhores da moda - camisinhas-imitação-de-grávidas;
botas-submarino-imitação-holandesa - e outros
aparelhómetros afins, absolutamente indispensáveis
a quem pertence à dita sociedade-pop. Com certeza
que todos os sábados têm uma festa onde roçam
o pentelho com o puto mais bem vestido da sala e que, por
acaso, tem uma mota toda artilhada que faz um barulho bestial."
E o texto continua neste tom de raiva contra estas meninas,
que hoje corresponderiam, talvez, às chamadas betinhas
e que nós odiávamos.
Logo no segundo texto do mesmo volume, escrevi:
"o génio não se mede pelos litros
de gasolina que enche os depósitos da estupidez destes
garotos-máquinas. Nascem com cilindros, êmbolos,
rodas e engrenagens no cérebro, carburando ideias
mal formadas.
Conversam parafusos e pregos, sabem a metal, soam a roncos
medonhos de motas, cheiram a automóveis sofisticados..
Pobres crianças que dormem á sombra de super-sónicos
pássaros rolantes, metal-ferro…"
Que tal?… É quase um poema épico anti-burguesia!…
No entanto, no que respeita a poemas, tinha evoluído
muito desde "As Colchas". Acho que vale a pena
transcrever um poema que escrevi em Abril de 1973, a propósito
das senhoras que fazem tricot no comboio Sintra-Lisboa:
"agulhas e linhas/ alternadamente…
mãos dançando/ no ritmo das malhas;
corpo dobrado/ olhos longínquos
na certeza/ do hábito adquirido/ eternamente…
Fábricas ambulantes/ de camisolas e casacos
de tramas retorcidas;
de napperons e toalhas/ de rosetas complicadas;
e as mãos dançando/ no ritmo das malhas/ eternamente…
As rugas avançando/ a pele encarquilhada/ os olhos
baços
as vértebras arqueadas/ já habituadas/ ao
corpo dobrado;
e as agulhas lutando/ e as linhas tomando forma
e as mãos construindo - uma mortalha?"
Não há dúvida que houve alguma evolução
e, a páginas tantas, até pensei que era um
poeta a sério, até porque o jornal República
continuou a publicar textos meus, nomeadamente poemas no
seu Suplemento Literário - e já não
na Página J, que era a página dedicada aos
jovens talentos. E pergunto: por que razão não
me tornei mesmo num poeta profissional? Talvez porque, no
fundo, nunca acreditei muito naquilo que escrevia; porque,
no fundo, eu sabia que, se pensasse um pouco, se me concentrasse
o suficiente, era capaz de escrever um poema.
E depois, tínhamos descoberto o José Gomes
Ferreira que, ainda hoje, é o poeta que eu mais admiro.
É quase impossível, para quem gosta de escrever,
não tentar escrever como o José Gomes Ferreira.
Ler os poemas dele é ficar com ganas de escrever
da mesma maneira. E eu tentei. Durante os primeiros meses
de vida do Pedro, aproveitando o choro nocturno que o meu
filho me proporcionou, dediquei-me a escrever poemas. Enquanto
a Mila tentava acalmar a criança, habitualmente enfiando-lhe
a monumental mama na boca, eu punha-me à janela,
às tantas da madrugada, de papel e caneta na mão
e escrevia à José Gomes Ferreira. Resultado:
mais um livro de exemplar único, só com poemas,
que intitulei "Insónias Propositadas".
Exemplo:
"a propósito da mulherzinha de lágrimas
habituadas que me pediu vez na cabina telefónica
do hospital de santa maria
o rosto-da-desgraça-eterna
pediu-me para telefonar
- era só para dar uma notícia
E eu com a curiosidade mórbida de ouvir falar a morte
(dos outros, claro)"
Mas em 1973 também descobrimos outro dos nossos
heróis - este mais palpável, já que
veio a tornar-se um grande amigo - o Mário-Henrique
Leiria.
Já tínhamos lido alguns textos dele no suplemento
Fim de Semana no República mas, em Abril, comprámos
os famosos "Contos do Gin Tónico" e - finalmente!
- tínhamos descoberto a Verdade!
Nesse mesmo mês, comecei a escrever pequenos contos
ao jeito do Mário-Henrique, como este, intitulado
"Bons Conselhos", que também foi publicado
no República:
"Juízo e cabeça fresca", dizia-me
o meu avô de anos esquecido, quando eu ia fazer algum
recado.
"Cabecinha fresca", recomendavam-me familiares
e amigos candidatos a educadores de infância.
Sempre fui obediente.
Morri ontem com a cabeça no congelador dum Frigidaire
de 200 litros."
Penso que já perceberam o que nós entendíamos
pela procura da Verdade. No fundo, era o processo normal
de crescimento de três jovens adolescentes, no mundo
fechado de Portugal em 1973; cheios de contradições,
abertos a tudo o que cheirasse a novo e subversivo, radicais,
intolerantes, talvez até um pouco arrogantes, mas
sobretudo, inexperientes e com uma grande capacidade para
amar.
Ainda voltarei a esta busca incessante que nos obcecou durante
tantos anos, mas penso que chegou o momento de recordar
o meu casamento…
O meu namoro com a Mila foi rápido, eficaz e intenso.
Não tenciono entrar em pormenores íntimos
da nossa vida que, acredito, devem ficar guardados na nossa
memória. No entanto, não posso deixar de contar
alguns episódios divertidos, que foram partilhados
com os nossos amigos e, portanto, não são
apenas "nossos". A urgência em nos conhecermos
melhor, a necessidade de consubstanciar esse conhecimento
com o sexo, era uma exigência - porque nos amávamos
e porque éramos dois jovens à descoberta da
idade adulta. Tudo aconteceu em minha casa, cerca de dois
meses depois de termos iniciado o namoro, e com a cobertura
do Zé Tó e da Paula, que ficaram do lado de
fora do meu quarto, em guarda. Cinco minutos depois, chegava
a avó Rita a casa e deparou com quatro jovens estudantes
universitários, algo comprometidos mas, sobretudo,
muito divertidos. Dias depois, repetimos a experiência,
desta vez, em casa da Fernanda, aproveitando a ausência
dos pais dela. E foi sendo assim, nas costas dos velhotes,
de fugida, clandestinamente, que se foi cimentando a nossa
experiência sexual. Até que chegou o Verão
e começámos a desenvolver as técnicas
que nos permitiam fazer as coisas mais incríveis
ao ar livre, nas matas da Costa da Caparica. Aí,
sim, não tivemos testemunhas, testas-de-ferro ou
guarda-costas. E esses momentos sublimes, inigualáveis,
guardo-os para mim e para a Mila e não tenciono partilhá-los
com mais ninguém. Lembras-te, Mila? Do teu macaco
com desenhos de Picasso, do teu fato de banho com arabescos
castanhos, dos longos passeios até praias mais distantes,
do ruído das folhas secas das acácias, das
nossas vozes ciciadas, do calor, do suor, do amor?...
O nosso namoro foi urgente e intenso e - a esta distância
- não podia ter tido outro resultado senão
o casamento. E, da maneira como as coisas se desenvolveram,
a gravidez "acidental" seria, apenas, uma questão
de sorte. E essa sorte aconteceu, algures, no fim de Setembro,
talvez num passeio que demos até às praias
da Fonte da Telha, com visita obrigatória às
matas de acácias.
Quando tivemos que informar os nossos pais de que a Mila
estava grávida, eles nem sequer se conheciam. O Zé
Couto e a Mariazinha nunca tinham visto os Sousas. A primeira
vez que se juntaram, os quatro, foi para discutir pormenores
do nosso casamento. Deve ter sido duro, também para
eles. Mas, como o futuro provou, não havia razão
para preocupações. Eu e a Mila tínhamos
muitos recursos - e a sorte fez o resto...
Mas o meu casamento foi mesmo uma cena triste. A Arminda
e a Mariazinha, de lágrima no olho, o Zé Couto
sorumbático, o Sousa circunspecto. Bem dispostos,
só os miúdos: o Paulo, a Bela, a Luisa, irmã
da Mila, e a avó Rita. Verdadeiramente felizes, só
eu e a Mila. O Zé Tó também lá
estava e encarregou-se das fotografias, todas com as cabeças
rigorosamente cortadas.
Foi a 19 de Janeiro de 1973 e a Mila tentava esconder a
barriga já evidente com um casaco cor de laranja..
Quanto a mim, comprei o meu primeiro fato completo - que
se manteve o único durante décadas -, além
de uma camisola de gola alta (gravata nunca!) e uns sapatos
de engraxar número 38, que logo deixaram de me servir.
A ansiedade que precedeu o casamento deixou-me com 52 quilos
e até os pés emagreceram!…
O casamento da Mila e do Artur: entre os dois, ao fundo,
a avó Rita; por cima do meu outro ombro, os óculos
da Bela e, depois, a Luisa e o Paulo; ao lado do Conservador,
o Sousa, circunspecto.
Terminada a cerimónia civil, dirigimo-nos ao restaurante
"O Polícia", ali ao pé da Gulbenkian,
onde se realizou o almoço: linguado com arroz de
ervilhas e salada, febras de porco com amêijoas, queijinhos
frescos e da serra, mousse de chocolate, maçã
assada e café - tudo pela módica quantia de
974 escudos, arredondada para mil escudos e paga, a meias,
pelo Zé Couto e pelo Sousa.
Já depois da cerimónia:
eu e a Mila, o Zé Tó e a Gata. Os homens de
canadiana, sempre!
Às três da tarde, já estávamos
livres da família e juntámo-nos à Gata
e ao Fernando, irmão do Zé, para um lanche
no Paco, composto por bitoques, conquilhas, cerveja, pudim
e café. Cada um pagou o seu, está claro. Seguiu-se
um filme no Vox (bilhetes a 30 escudos), intitulado "Unman,
Widdering and Zigo" e que, se não me engano,
era com o mesmo actor do famoso "Blow Up".
E, finalmente, a noite de núpcias, passada no meu
quarto de solteiro, num sofá de abrir e fechar, com
as molas já gastas por noites e noites de cus sentados
a ver televisão. A refrear os suspiros de prazer
porque o Zé Couto, a Mariazinha, a avó Rita,
o Paulo e a Bela estavam lá dentro, nas outras duas
assoalhadas, a três metros de distância. Ninguém
se lembrou que talvez nós merecêssemos um pouco
mais de privacidade; éramos menores de idade, tínhamos
cometido o pecado de ter relações sexuais
antes do casamento, a Mila tinha engravidado, estávamos
a por em risco o nosso futuro de brilhantes senhores doutores
médicos - tínhamos que ser castigados! Não
posso dizer que tenha sido de propósito mas os pais
não podiam, ao menos, ter-nos pago uma noite numa
pensão Marianita qualquer, mesmo que fosse no Cais
do Sodré? Não - pecastes, tendes que pagar!
De qualquer modo, a primeira vez que abracei a Mila naquela
noite, não saiu ainda da minha cabeça e a
sensação de conforto, de prazer sublime, de
bem estar profundo, nunca foi igualada.
Todo o processo que levou ao nosso casamento foi deveras
doloroso e, sobretudo, humilhante. Como, em 1973, a maioridade
só se atingia aos 21 anos, os nossos pais tiveram
que dar autorização para o casamento, com
assinatura reconhecida pelo notário e com testemunhas,
que foram, o velho Gonzaga e um vizinho nosso, da S. Domingos
de Benfica, de nome Queridinho - um apelido que lhe assentava
que nem uma luva, graças ao seu metro e meio de altura
e face glabra. Só de pensar que o meu casamento só
foi possível porque um tipo chamado Queridinho se
dignou desenhar a sua assinatura num cartório notarial,
dá-me uma enorme vontade de rir...
Dois ou três dias depois do casamento, o meu pai deu
o braço a torcer e aceitou a evidência: era
impossível continuarmos todos a viver lá em
casa. Mudámo-nos para Queluz, para casa dos pais
da Mila, onde também tínhamos um quarto disponível,
mas onde o espaço era maior. Em pouco tempo, transformámos
o nosso quarto numa pequena casa especial, com prateleiras
de pinho e tijolos do J. Pimenta, empresa de obras públicas
que ficava logo ali ao lado, uma pequena mesa com camilha,
onde estudávamos e uma cama-tipo-caixote, com uns
grandes gavetões em baixo, que nos perseguiram durante
anos, e que nós pintámos de sucessivas cores.
Entretanto, eu vasculhava os jornais, em busca de um emprego
que nos ajudasse a sair daquela situação de
dependência - tão contrária à
nossa busca da Verdade. Respondi a um anúncio que
pedia tradutores para a ANI - Agência Nacional de
Informações, cujo director, Dutra Faria, era
uma figura destacada do regime salazarista. Lá se
ia a coerência pelo cano abaixo!… Lá
fui à ANI, que ficava ali na Praça da Alegria
e prestei provas. Como tinha o 5º ano do Instituto
Britânico (os telexes eram quase todos em inglês,
pelo menos os da Reuters e da Associated Press) e também
me safava bem a francês (o que era bom para os telexes
da France Press), fui admitido com tradutor e copy-righter.
O horário também não era mau porque
era das 18 horas à meia-noite, o que me permitia
assistir às aulas e quanto à remuneração,
da qual já não me recordo, qualquer coisa
que viesse era bem vinda, tudo era melhor do que viver das
semanadas dos pais. Aguentei-me dois dias. O ambiente era
de cortar à faca, os tipos que lá trabalhavam
eram exactamente aqueles que o República criticava
como correntes de transmissão da ideologia dominante,
o tal Dutra Faria era uma personagem que me pareceu tenebrosa.
Tive medo. Não sei se tive medo que eles descobrissem
que, naquela altura, quase todas as semanas saía
um texto meu no República, não sei se tive
medo de não estar à altura das minhas obrigações
profissionais ou se, pura e simplesmente, não me
via ainda como um trabalhador. O que é certo é
que desisti antes de assinar qualquer tipo de contrato de
trabalho.
Algum tempo depois, andámos os dois a fazer inquéritos
sobre refrigerantes, de porta em porta, assistindo a algumas
cenas menos dignas, como daquela vez em que, ao estarmos
a fazer as perguntas do inquérito a uma excelente
dona de casa, com sofás e alcatifa envoltos em plástico
e lombadas a metro na estante de mogno, apareceu o marido
e começou a mandar vir com ela, ameaçando
mesmo dar-lhe uma sova porque, em casa dele, quem respondia
a perguntas era o cabeça de casal! Resultado: inventámos
a maior parte dos inquéritos, entregámos aquilo
tudo e desistimos, resignando-nos a viver das mesadas dos
pais até que algo de fantástico acontecesse
na nossa vida.
O que acabou por acontecer, por obra e graça dos
textos que escrevíamos, do República e do
Álvaro Guerra e, finalmente, do 25 de Abril de 1974
que não mudou só a vida política de
Portugal. Para nós, o 25 de Abril foi, também
, a nossa libertação, como adiante se verá.
Parece que, afinal, a nossa procura da Verdade sempre deu
alguns frutos. No entanto, vista a esta distância
- e fazendo a ponte para acontecimentos actuais - nós
éramos, no fundo, como os actuais militantes anti-globalização:
anti-capitalistas, anti-burguesia, anti-convencionalismos,
anti-sociedade de consumo, anti-tudo.
Mas, no fundo, éramos um grupo de boas pessoas que
andavam à deriva e tudo o que precisávamos
era amor…
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