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O Coiso
Memórias de um fumador
50 anos de história


7. O Pedro (1973)

O Pedro não foi conscientemente planeado mas, tendo em conta a vontade que nós tínhamos de viver juntos, até apetece dizer que a gravidez da Mila foi, no fundo, um acto falhado, uma acção inconsciente que acabou por nos levar a obter o que desejávamos.
No entanto, a partir do momento que soubemos que a Mila estava mesmo grávida, o Pedro passou a ser o Desejado - e foi Pedro logo desde o início, embora as ecografias de então não conseguissem mostrar o sexo da criança. Aliás, a Mila foi uma das primeiras pessoas a fazer ecografias em Portugal, graças à Dra. Hélia Botas, que lhe seguiu a gravidez e que tinha ido lá fora estudar a técnica. Se não fosse Pedro, teria sido Rita, mas nós tínhamos a certeza de que seria um rapaz.
Os meses que decorreram até ao nascimento do Pedro foram caracterizados por uma angústia latente. No princípio, quando ainda não tínhamos a certeza se havia ou não gravidez, não soubemos ou não quisemos interpretar os sinais. A Mila queixava-se de dores lombares - toca a fazer uma radiografia da coluna; a Mila dizia que tinha dores de estômago, azia e náuseas (tudo fruto da gravidez) - toca a fazer uma radiografia do estômago e duodeno. O raio X terá afectado o desenvolvimento do bebé? Esta era a pergunta que nós não fazíamos em voz alta, mas que estava sempre presente.
Muitos dos escritos dos meus cadernos reflectem essa angústia, assim como a perplexidade de ir ser pai em breve, como este, de Maio de 1973:

"Tudo sucedeu tão depressa que a adaptação é difícil. Sempre habituado a ser filho, de repente vou ser promovido a pai. Não sei se me percebes. Não é parecido com nada que tenhamos feito antes. É uma pessoa, um ser humano, que fala, que come, que corre, que pensa. É um conjunto de células vivas, de tecidos, de órgãos, devidamente estruturados, organizados em forma de ser humano. E és tu que o transportas. És tu que o trazes acondicionado, isolado das águas sujas e do ar negro do mundo, escondido dos monstros uivantes e dos bichos tentaculares. Não podia encontrar melhor refúgio, o pimpolho…"

E depois vem a parte pior, a parte em que o futuro pai, com a mania que é detentor da Verdade, pensa já na maneira de moldar o filho à sua imagem e semelhança:

"E já pensamos nas respostas às suas perguntas curiosas, e nos divertimentos essencialmente culturais que lhe vamos proporcionar: vamos-lhe dar a conhecer os grandes compositores, os grandes pintores, os grandes escritores. E vamos tentar afastá-lo da televisão e de tudo o que aliena as crianças. Mas tudo isto sem ser à força, com palavras correctas e gestos amigos."

Desculpa lá, Pedro, mas o teu pai era um tonto, um pateta que pensava que o intelecto salvava o mundo, um chato que começava a renegar o prazer que lhe dava o rock and roll e se enfronhava, cada vez mais, na depressão do Mahler e seus sequazes. Felizmente, esta mania passou-me relativamente depressa, mas temo que, durante os primeiros anos de vida, o Pedro tenha sido influenciado por esta cartilha dos intelectuais de esquerda. Ter-lhe-á feito bem ou mal? Uma coisa é certa: tudo foi feito com muito amor - embora também aquele pai que espanca o filho regularmente, costuma dizer que o faz para o seu bem…
De qualquer modo, tenho que reconhecer que nem tudo o que está escrito nos meus caderninhos correspondia àquilo que eu, de facto, pensava. Eu tinha mesmo a mania que era um intelectual de esquerda e, assim como me esforçava por escrever poemas à José Gomes Ferreira ou pequenos contos à Mário-Henrique Leiria, também gostava de escrever textos confessionais à intelectual de esquerda. No fundo, o que se passava, de facto, é que estava à rasca. Tinha medo que os raios X tivessem interferido com o desenvolvimento do puto e ele nascesse com alguma deficiência - o que seria uma espécie de castigo para o nosso pecado. Outra vez a culpa! Não a culpa de fumar cigarros às escondidas, mas a culpa de ter tido relações sexuais antes do casamento, o que era fortemente criticado pela sociedade, que eu tanto dizia desprezar mas que, afinal, temia. Confusos? Também eu.
Uma prova do que eu receava, neste naco, escrito onze dias antes do Pedro nascer:

"O tempo acabou. O bebé está pronto a brotar do ventre da Mila. Como vai ser? Sinto que vou atravessar uma enorme vaga de água maciça e, do outro lado, tudo estará resolvido. Como será ele? Gordo? Magro? Bonito? Feio? Sou um cobarde! No fundo, tenho medo que não seja uma criança, mas um monstrozinho, vítima da nossa ignorância! Como será? Quando será? O abismo das possibilidades! Quase a angústia!"

Foi por esta altura que começou a manifestar-se um traço da minha personalidade que ainda hoje me atormenta e que não é mais do que a tentativa inconsciente de expiar os meus pecados. A cultura judaico-cristã é muito forte e por muito que um tipo diga que é agnóstico, que Deus não faz parte dos seus pensamentos, a culpa foi-nos inculcada quando a nossa personalidade se formava e ficou cá. É certo que, racionalmente, somos capazes de a sacudir, mas sempre à custa de muito sofrimento.
Viver com uma mãe com fundo depressivo e - talvez - com algum delírio de envenenamento, também deve ter ajudado a que, sazonalmente, eu seja atacado por um medo diferente, sempre irracional e sempre relacionado com o sofrimento físico causado por doenças escolhidas a dedo. Há quem chame a isto hipocondria. Eu acho que é mesmo estupidez. Mas cada um tem o que merece.
Naquele tempo, enquanto me atormentava com a aparência física do meu filho, já tinha também passado pelo receio de ter um linfoma. Depois, e ao longo dos anos, já sofri - e obviamente me curei - de um tumor na nuca, outro no fígado, uma ou outra doença do tecido conjuntivo, diabetes, doença coronária ou qualquer outra alteração cardíaca grave, melanoma, hipertrofia da próstata e mais, muitas mais, de que falarei no devido tempo.
Voltemos ao Pedro.
Na noite do dia 10 de Junho de 1973, deixei a Mila na Maternidade do Hospital de Santa Maria, ligada ao soro, a ver se o útero se decidia a contrair-se, e voltei para casa angustiado. Os monstros não me saíam da cabeça.
Na manhã seguinte, foi assim:

"Acordo com o frio de nervos nos ossos.
Corro pró telefone.
Disco o número.
- Podia-me dizer qual o estado de Maria Emilia Fernandes de Sousa Couto e Santos?
- Da mãe ou do filho?
POINK!
Caiu um pedregulho cá dentro e o bloco de cimento do estômago desfez-se em mil pedaços.
Chorei = descarga eléctrica.
Voámos para o hospital.
E lá estava a Milocas, a valentona, que só chamou a enfermeira quando sentiu a cabeça do bebé, que não gritou. E lá estava o Pedro todo pimpão, com cara de quem já tinha nascido há dias, dormindo calmamente.
Ah! Monstros e fantasmas e sei-lá-o-quê e todo o resto de cretinices que me encheram a cabeça durante estes dias! Quero que se fodam todos!
É mesmo um bebé, pronto!
Todos o acharam giro, mas mesmo que não fosse, era o Pedro!
Sou pai há seis horas e meia!
Vivó Pedro! Vivó!!!"

Para festejar o nascimento do Pedro fui, na noite de 11 de Junho, para o Cais das Colunas com o Zé e com uma garrafa de champanhe que um padre que morava ao lado da casa dos meus pais tinha oferecido à minha avó, a fim de comemorar o nascimento do seu primeiro bisneto. E escrevemos um manifesto a meias, em papel químico. O original foi metido na garrafa, depois de termos bebido o precioso líquido (precioso, uma ova, que sempre detestei champanhe, mesmo do bom!) e a garrafa foi depois atirada ao Tejo. Digam lá se não éramos, no fundo, uns românticos!…
Na Praça do Comércio ainda estava montada a tribuna presidencial onde o Américo Tomaz tinha condecorado os filhos da nação que haviam praticado actos de coragem na guerra colonial. Todos os 10 de Junho eram assim, com soldados orgulhosos de cruz de guerra ao peito, e mulheres enlutadas também, que recebiam as condecorações a título póstumo, porque o filho, o marido, o irmão, tinham morrido em África.
A guerra colonial era uma ameaça sempre presente na nossa cabeça. Eu sabia que, mais tarde ou mais cedo, não me safava. Tinha sido aprovado na inspecção militar e, se chumbasse algum ano, lá ia eu defender a Pátria - o que, além de absurdo (nunca senti que Angola ou Moçambique ou Guiné fossem Portugal), me provocava um frio no estômago, só de pensar nisso. Enfim, o 25 de Abril veio resolver esse problema. Mas da tropa não me safei; acabei por ir lá parar depois do curso terminado.
Escrever a meias com o Zé foi uma actividade que fomos repetindo ao longo dos anos. Mas este manifesto é especial, já que foi escrito no dia em que o Pedro nasceu. O método que utilizámos foi simples: cada um dizia a frase que lhe viesse à cabeça, alternadamente; era assim uma espécie de escrita automática, ao gosto dos surrealistas, que nós andávamos a descobrir na altura. Vale a pena transcrevê-lo:

"O Cristo-Rei também cá está. Consta que cortou propositadamente as unhas dos pés, lavou os sovacos e não disse mais nada.
Depois de muita asneira incongruente, neste dia em que a lua pariu o sol e a Mila pariu o Pedro, enquanto a rolha do champanhe salta no Cais das Colunas, os autores prometem só dizer coisinhas certas.
Já telegrafaram. Dormiram on the rocks. Aí vai a rolha. Suavemente porque tem que tapar o transporte do Manifesto. Tomaram duche ontem. Prometem. Um cão urinava alçando a perna no nariz da Cleópatra - urina de 1967. Os cacilheiros também cá estão e pedem desculpa pela dor de dentes. Agradecemos. Ontem, um barco. A ordem é arbitrária quando o árbitro é da ordem. A água é aquática quando o rio corre no mar.. O estabelecimento da ordem está encerrado ao domingo para descanso do pessoal. O Pedro dorme no berço. O silêncio e o imobilismo vão sendo redes de pesca sobre nós. A água é o moto contínuo. Garantimos que o Cais das Colunas ainda não caiu. Um mãototem a passear. O reflexo da luz dos candeeiros nas águas do Tejo não passa do reflexo da luz dos candeeiros nas águas do Tejo. As águas do Tejo a molhar os candeeiros não passam das molhas dos candeeiros a tejar as águas. Pedimos desculpa por não termos trazido a máquina de escrever nova. Esta tem a fita gasta. O casse-tête passeia lá atrás. O casse-tête passeia o cacete. A caravana passa e o vinho do padre fica. Se o padre cura e o médico sara, será que o padre medica e o sara cura? E o cu será? Excelentíssima mais pequena partícula que és: Que degraus teremos que subir? Que universos explorar? Que mares afundar? Que desertos atravessar? A que grãos de pó que estão na flor na tromba do elefante teremos de soprar? Que ventres tumefactos teremos de romper? Até te descobrirmos onde ninguém sabe que existes - nem tu? Para te dizermos que somos! Para te afirmar que estamos muito artefactos! Talvez pela luz do Tejo que se espelha no asfalto da Praça dos Pernas de Pau. Saberás tu as misturas vomitosas que se podem fazer nesta terra? Saberás controlar o descontrolo desorientado dos sistemas de partículas tuas irmãs, com braços de tarântulas e ares de enxovias que… sei lá? Queres vir connosco tomar um chazinho a casa do senhor doutor? Atrás duas guaritas guardam as itas. À frente um tenente. Dos lados os soldados. Por cima só óleo Fima. Por baixo fica o Cartaxo. Assim assim ficó Zudim. À esquerda ficó Zé Merda. À direita ficó Marcelo e o caminho para Jericó. - Sabes tu Gonçalo Nuno de quem é este castelo? - Sei sim, meu pai. É do general Batista , o cavaleiro, que trás dragonas no traseiro e o dito em arrendamento. Afirmamos que Jeová não com coas mãos - é garfo e faquinha; e bebe pela boca porque sofre de hemorroidal. Tágides! Por que fugis de mim quando corro atrás de vós munido apenas com o armamento nixoniano? Será que tendes medo? A energia é o invisível. O invisível pode não ser a energia. A propósito, lembrei-me da história do homem que tinha um papa-gaio. Sabeis que é preciso subir correndo ao alto. Rasgar a roupa gritando./ Rasgar o grito roupando. Roupar o grito grasnando./ Ripar o grasno fumando. Fiar o fumo a prumo./ Prumar o primo acimo. Trepar o destino a pino./ Pifar a verdade sem tino. Dosear a dose sem sino./ Querer desafiar a sorte Gritar e sortear a morte./ Matar gritando o norte. Explodir e depois suavemente/ Dar a volta à fechadura E chorar gritar cagar beber dançar/ Patinar e escorregar no além E no aquém e não há quem nos segure Na torrente impetuosa Do fulgor dos teus lábios na minha boca Ermelinda de Vais Com Sêlos São Paio! - Não! Surgindo da escuridão-escuridão à meia-noite e vinte a autoridade pergunta: - Já lancharam? Será que olhando os barcos ele pensou que estivemos a comer lanchas? O guarda foi, o guarda é, o guarda fui Fui ao guarda. Fui ao do guarda. Guardei a do Fui. Fui o quê? Um chazinho, biscoitos e cama!"

E lá foi a garrafa de champanhe com este manifesto lá dentro, levada pelas águas do Tejo, no dia em que o Pedro nasceu. Talvez seja um pouco monótona a sua leitura, mas achei que valia a pena transcrever este texto porque ele reflecte bem as nossas ideias literárias, e não só - e porque, ao fim e ao cabo, estas são as minhas memórias e eu recordo o que me apetecer…
Os primeiros dias do Pedro no nosso quarto-casa foram dias de encantamento. Tínhamos um brinquedo novo, totalmente feito por nós e eu começava a adivinhar que esse pequeno ser iria, a pouco e pouco, transformar-me completamente. O que se passou foi que, em vez de sermos nós a moldar o Pedro, foi o Pedro que, só por existir, nos foi moldando ao longo dos anos. Claro que isto não foi bem assim. A vida nunca é bem assim. Há milhares de outros pequenos-grandes factores que nos influenciam, que nos levam a tomar este ou aquele rumo e quem acredita - como nós acreditávamos - que é senhor do seu destino, está completamente enganado. Sublinho que também não acredito que o destino esteja traçado algures. Não sou crente. O destino vai-se traçando, à medida que se vive, com impulsos dados por nós próprios e com impulsos dados pelo acaso. Outra vez a Teoria do Caos…

Pedro com cerca de 2 meses, já muito divertido...

Foram esses primeiros dias de vida do Pedro que me levaram a escrever os tais poemas das "Insónias Propositadas".
Aqui está um exemplo, de 18 de Junho:

"Enquanto o Pedrocas mama, eu fumo o cigarro madrugador à janela. Surgiu-me hoje a ideia de juntar alguns poemas escritos durante estes minutos…
No tronco da árvore em frente/ hibernam quatro moiras encantadas
Três musas virginais E mil elefantes de memória mirrada
As moiras/ fugiram aos gumes afonsinos
As musas/ evadiram-se dos poemas/ com punhos de renda
Os elefantes/ são portugueses de faro apurado
Condenados a serem troncos de árvore
Por andarem por aí/ a cheirarem tudo"

Aquelas insónias, afinal, não eram propositadas, claro. Se fosse feita a nossa vontade, dormiríamos calmamente a noite inteira. Mas o Pedro não deixava. Vale a pena recordar o que escrevi quando ele tinha um mês:

"Todos os bebés, com diferenças pouco apreciáveis, devem regular pelo mesmo. No seu parasitismo de mamíferos recém nascidos, limitam a sua vida ao choro, à mama, ao sono e aos excrementos.
Mas o Pedro não.
O Pedro reveste-se já de artimanhas com as quais nos faz desesperar nas longas noites em que queremos dormir e o sacana se agarra à sua única - mas que mortífera! - arma de chatear o próximo: os berros!
Nós, que nos gabávamos antecipadamente de que o nosso filho daria umas belas noites porque, se chorasse, nós deixávamo-lo chorar até se convencer que não tinha outro remédio se não calar-se, não aguentamos mais do que cinco minutos de choro pegado. Corremos a embalar o menino ou a levantá-lo da cama, passeamo-lo pelo quarto, assobiando, batendo-lhe ritmicamente no rabo. O macaco do puto cala-se. Vai fechando os olhos aos poucos e nós, contentes por irmos dormir, deitamo-lo devagar, em câmara lenta. Assim que se sente na cama, aí está o Pedro a berrar. E assim passamos um bom bocado da noite, até o conseguirmos enganar de vez. Mas, mesmo a dormir, o raio do miúdo ainda entreabre os olhos e sorri, como que a dizer-nos que vai dormir porque quer e não porque o tenhamos enganado."

A minha mãe, com aquele sorriso doce de que ainda hoje tenho saudades, com o Pedro, aos 3 meses.

O nosso segundo ano na Faculdade de Medicina foi passado assim. Noites mal dormidas e, de manhã, o sono nas aulas. Mas lá fomos fazendo as cadeiras, umas atrás das outras. Aliás, uma das nossas melhores notas (19 valores) foi obtida na prova oral de Química Fisiológica, com o professor Halpern, depois de termos passado uma noite inteira em claro, embalando o Pedro e estudando, ao mesmo tempo.
E claro que, com o Pedro, acabaram, durante uns tempos, as idas ao cinema, pelo que, de vez em quando, deitava um olhinho à televisão. E não gostava do que via. O Telejornal era um desfile de visitas oficiais, inaugurações, festejos, romarias, sessões de cumprimentos, entrega de condecorações, banquetes, com a omnipresença do Tomaz ou do Caetano ou do Rui Patrício. Nunca se passava nada de mal, o estrangeiro quase que não existia, a guerra do Vietnam passava ao lado, o contra-golpe de Pinochet passava despercebido. Depois do jornal, vinha o boletim meteorológico que, meticulosamente, nos dava a previsão do tempo para todo o território nacional - mas mesmo todo, incluindo Timor. Que bom que era saber qual a temperatura máxima em Dili… Depois, havia desenhos animados especiais: um boneco de fato e gravata e outro vestido à saloio; o saloio perguntava como é que o outro se estava a dar em Moçambique; e enquanto o bem vestido ia respondendo em off, surgiam imagens de uma família alegre, tractores arando as terras, campos cultivados, gente sorridente, brancos e negros, sem sinal de sangue, de fumo, de guerra. Era um anúncio do Secretariado Nacional da Emigração que, menos de um ano antes do 25 de Abril, incitava as pessoas a imigrarem para Moçambique.
Quanto à rádio, a coisa também não era melhor. Claro que tínhamos, na Rádio Renascença, o Página Um - programa do José Manuel Nunes e do Adelino Gomes, onde podíamos ouvir Zeca Afonso e, mais tarde, Sérgio Godinho e José Mário Branco. Mas o que estava na moda era a radionovela "Simplesmente Maria" - "o romance pelo qual você ansiava." Todos os dias, um quarto de hora depois das duas da tarde, com a cozinha já arrumada, não havia dona de casa que se prezasse que não se deliciasse com as amarguras da Maria, simplesmente. E as que soubessem ler ainda podiam comprar a revista semanal, onde a história era contada em quadradinhos, por apenas 15 escudos.
Entretanto, a escrita torrentosa continuava e, de Junho a Setembro de 1973, completava o segundo volume dos "Textos a Propósito". A dedicatória de mais esse livro de exemplar único, revela quem eram os meus heróis naquele momento:

"ao Pedro, apenas por existir
à Mila, pela "inspiração", mesmo mascarada
à João, pelo esforço feito para ser dos nossos
ao Zé Tó, pelo "Dêefexis" e "Dois paus para bica e uma sinfonia"
ao Artur Portela Filho, pelas suas Fundas
ao Mário-Henrique, pelos seus Contos do Gin Tónico
ao José Gomes Ferreira, pelos seus irreais quotidianos
à República, por entrar na brincadeira de nos fingirmos escritores"

De facto, não havia suplemento Fim de Semana do República que não publicasse, pelo menos, um conto meu e outro do Zé. Houve mesmo alguns desses suplementos que eram praticamente todos feitos com textos nossos. Escrevíamos que nem uns danados. Não conhecíamos ninguém no jornal e, no jornal, ninguém sabia quem nós éramos. Todas as semanas, enviávamos os nossos textos pelo correio e, no suplemento da semana seguinte, lá estavam eles, quase sempre acompanhados de ilustrações da autoria de indivíduos que também não conhecíamos (o Fred, o Carlos Barradas, o Carlos Brito, o Vasco e outros).
Até que, no princípio de Setembro, eu e o Zé decidimos fazer uma longa análise do suplemento. Com a ajuda da Mila, medimos as áreas ocupadas pelos nossos textos e pelos outros textos, as áreas das ilustrações, as áreas dos anúncios, tecemos longos comentários, fizemos sugestões e enviámos tudo ao cuidado do Director, na altura o Álvaro Guerra, que nos respondeu prontamente, convidando-nos para uma bica.
Foi no dia 30 de Setembro que, pela primeira vez, entrámos no República e conhecemos o Álvaro que, pelo menos para mim, teria uma influência decisiva no desenrolar da minha vida. Cá está a história do destino outra vez: teremos sido nós a forçá-lo?
Da nossa longa conversa com o Álvaro, ficou um registo em fita magnética que não sei onde pára. Nos meus caderninhos, escrevi:

"Quando empurrámos o guarda-vento, de um automatismo manual fora de série, deparámos com o mais bandalheiro jornal que poderíamos imaginar: as paredes velhas com manchas de humidade, as portas carunchosas, o aspecto de quase-a-ruir de todo o edifício.
O Álvaro veio e a conversa, que nós gravámos, foi tocando não só as questões por nós postas na carta, mas muitos outros pormenores. Ficámos informados acerca dos problemas relativos à saída diária do jornal - falta de dinheiro e de material, imposições do exame prévio-censura, falta de instalações e um rol interminável de limitações.
A conversa foi longa e não seria preciso espremê-la para ver que conteve muito sumo.
Depois desta aventura, sentimo-nos mais colaboradores e sabemos o que se passa do outro lado do marco do correio, quando algum dos nossos trabalhos lá chega."

Claro que este encontro com o Álvaro Guerra nos entusiasmou e, se já escrevíamos muito, passámos a escrever muito mais. Instalados numa tenda, num parque de campismo da Costa da Caparica, durante todo o mês de Julho, foi só escrever contos e histórias para o República, estudar Fisiologia numas sebentas incríveis, cheias de erros ortográficos e científicos, e adorar o Pedro, que crescia a olhos vistos.
A comprovar a minha capacidade de adaptação aos vários estilos de escrita, decidi também fazer uma pequena brincadeira. Tinha entrado em contacto, pouco tempo antes, com um quinzenário cultural, de nome "E Etc", que ainda hoje é falado em alguns meios intelectuais. Não compreendia a linha dessa publicação; os poemas que publicava pareciam-me sem sentido, os textos demasiado obscuros - a mim, que cada vez me identificava mais com o humor corrosivo do Mário-Henrique e tentava, a todo o custo, imitar-lhe a forma. Então, só para experimentar, decidi escrever um texto ao gosto do "E Etc". Chamei-lhe "A Coisa" e enviei-o. Foi publicado em Agosto, o que me fez crer que, se quisesse, conseguia que me publicassem toda a merda que fosse escrevendo. Claro que não era bem isto. Nunca é bem o que nós pensamos… No entanto, a publicação desse texto num quinzenário cultural como o "E Etc", inchou-me ainda mais o ego. Afinal, o que estava eu a fazer em Medicina?
Em Outubro de 1973, houve eleições e, como já era tradição, naquelas poucas semanas de campanha eleitoral, os jornais mais à esquerda (República incluída), podiam dizer umas graças sem que a censura chateasse muito. Foi a minha primeira participação explicitamente política. Para o suplemento Fim de Semana, escrevi uma série de pequenas histórias, a que chamei "O Maumento Eleitoral". Alguns exemplos:

"1º voto
Um cavalheiro entra numa loja, dirigindo-se ao dono:
- Bom dia. Eleições…
- Não temos…

2º voto
Um cavalheiro, que não o anterior, entra num estabelecimento, dirigindo-se ao dono da loja:
- Queria três votos.
- Com certeza, temos um stock variado. Qual prefere: lista A, lista A ou lista A?

3º voto
Em frente à urna, um cidadão:
- Eu vinha votar, mas posso ter a certeza que o sigilo do meu voto será mantido?
- Com certeza. Passe então para cá o seu voto na lista A.

4º voto
- A… A… A…
- De que é que te estás a rir?
- Não me estou a rir, estou a contar os votos.

5º voto
A CDE para o médico:
- Sr. Dr. acha que tenho alguma esperança?
- Hum!… Umas escassas quatro semanas…"

Não é preciso explicar que a lista A pertencia à União Nacional e que a CDE (Comissão Democrática Eleitoral) representava a chamada esquerda democrática, embora com muitos comunistas infiltrados. Quanto às graçolas, eram fraquitas mas era o que se podia arranjar sem passar à clandestinidade.
Enfim, lá produzir prosa produzia com abundância, mas isso continuava a não ajudar a pagar o jantar.
No final de 1973, com o Pedro já com seis meses, continuávamos a depender das semanadas dos pais e das explicações ao Olegário. A Mila recebia 600 escudos e eu 650; o Olegário pagava-me 480 escudos. Os nossos gastos mensais eram como segue: 800 escudos para gastos correntes, 100 escudos para o fascículo dos Génios da Pintura, que andávamos a coleccionar, 168 escudos para tabaco, 30 escudos para o volume dos Cadernos D. Quixote, 200 escudos para um livro e um disco e 160 escudos para pagar a Academia de Amadores de Música. Sobravam 272 escudos por mês. Das despesas correntes faziam parte as bicas, os fósforos, o República (custava quinze tostões) e os bilhetes de comboio e autocarro. Resumindo: éramos uns tesos!
No entanto, já então a Mila mostrava toda a sua perspicácia para a economia doméstica. Desde o princípio da nossa relação que deleguei nela a pasta das Finanças. Nunca tive jeito para a matemática, como já tive oportunidade de afirmar, sou capaz de errar a conta de somar mais fácil, de me enganar a preencher um cheque, de baralhar completamente tudo o que tenha a ver com números. Portanto, a Mila é que toma conta das nossas contas, desde o princípio. Aí, muito provavelmente, o segredo do nosso sucesso...
Na Academia de Amadores de Música fomos reencontrar o professor Domingos. Durante algum tempo (pouco, porque acabámos por desistir, ou por falta de tempo, ou de dinheiro, ou de incentivo, ou das três coisas), aprendemos a tocar flauta de bisel, bem como alguns rudimentos de composição. Entrámos em contacto com alguns compositores modernos, como o Varese e o Xenakis e começámos logo a compor peças de música abstracta, absolutamente inaudíveis, mas que nos divertiam bastante.
E como tudo tem um fim, também os "Textos a Propósito" terminaram, com o quarto volume que tem uma introdução misteriosa de uma tal Gilda, de quem eu não me lembro rigorosamente nada, embora suspeite que tenha sido a namorada do Zé, depois da Gata e antes da Mizé.
Não se pode dizer que ele não tenha tentado…



Próximo capítulo: 8. O 25 de Abril (1974)

 

Actualizado em: 5 de Agosto
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