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O Coiso
Memórias de um fumador
50 anos de história


8. O 25 de Abril (1974)

Antes de iniciar este capítulo, fumei um cigarro enquanto olhava para o monitor e tentava ordenar as ideias. É outra das vantagens do cigarro: ajuda na concentração, acalma, relaxa, embora aumente a frequência cardíaca. É injusto que o tabaco faça mal à saúde. Aliás, é voz corrente dizer-se que tudo o que sabe bem, faz mal, o que não é totalmente verdade; um bom copo de água fresca sabe sempre muito bem e não faz mal nenhum, por exemplo. Mas o tabaco, meu deus, porque o fizeste tão maléfico?!
Durante os meus primeiros trinta anos de vida, nunca me preocupei com os malefícios do tabaco. Fumei alegremente, sem qualquer tipo de preocupação. Depois, comecei a ter períodos de inquietação em relação ao tabaco, sobretudo quando descobri que era hipertenso, aí por volta dos 30 anos. No entanto, isso não me impediu de continuar a fumar, sem nunca ter feito uma verdadeira tentativa para desistir – apenas uma ou duas falsas experiências de descontinuação, que não resultaram.
Por volta dos 21 anos já fumava a quantidade que fumo hoje: entre 16 a 18 cigarros por dia. Em 1974, a marca continuava a ser o SG filtro, então já com a embalagem azul escuro. Naquela altura, o tabaco continuava a não fazer mal à saúde. Ainda se fumava em qualquer parte, embora pense que se começava já a falar em algumas restrições. No entanto, no Hospital de Santa Maria, fumava-se nas aulas, nos corredores e até nas enfermarias. No que me diz respeito, escrever e fumar eram (e são) duas actividades indissociáveis. Por volta de 1974, uma terceira actividade veio juntar-se a estas duas: o gin tónico. Que bons momentos passei dando golinhos num longo gin tónico bem gelado, fumando um cigarro e escrevendo na minha Olivetti vermelha, que a Mila me tinha oferecido, comprada em segunda mão, numa loja de velharias das escadinhas do Duque. Escrevia ( e escrevo) apenas com os dois indicadores, com o cigarro enfiado entre o indicador e o médio da mão esquerda, e a cinza caindo para cima das teclas. De vez em quando, precisava de virar a Olivetti ao contrário e bater com ela na mesa para que a cinza saísse. Quanto ao gin tónico (outra influência do Mário-Henrique), manteve-se um hábito diário, antes do almoço ou do jantar (e muitas vezes, antes do almoço e do jantar), até há bem pouco tempo. A pouco e pouco, o whisky foi ocupando o lugar do gin…
A produção de contos, histórias e outras brincadeiras era tal que, durante o ano de 1974, o República publicou, pelo menos, 65 textos meus o que, considerando que só havia 42 suplementos Fim de Semana por ano, dá uma média interessante. O Zé também escrevia que se desunhava e, a páginas tantas, o suplemento do República era quase todo feito por nós, gratuitamente, apenas pelo prazer de escrever e ver os nossos textos publicados. O Álvaro Guerra, responsável pela planificação do referido suplemento, pegava nos nossos textos, juntava-lhe mais um ou dois do Mário-Henrique, acrescentava ilustrações originais ou sacadas de algum álbum antigo e tinha o suplemento feito, praticamente a custo zero. E até a Mila viu um seu pequeno texto publicado, em Julho de 1974, intitulado “Braghail(s) Franah´a(s) e Tip-Tap(s)”, uma pequena brincadeira de quase-escrita automática. Enfim, o Fim de Semana do República era quase o nosso órgão oficial…
De tal modo assim era que, certa vez, decidimos enviar meia dúzia de pequenos textos que diziam, mais ou menos, algo como isto: “Esta semana, o suplemento Fim de Semana não publica nenhum texto de Artur Couto e Santos e José António Pinheiro, uma vez que este dois nossos colaboradores se encontram em visita oficial ao Lesoto (capital, Maseru)”. E o República foi na nossa brincadeira, publicando, ao longo das várias páginas do suplemento, estes pequenos avisos absurdos. A torrente de textos era tal, que nos dávamos ao luxo de enviar alguns sob pseudónimo, para dar a ideia de que o suplemento tinha mais colaboradores. Um dos que eu usava com frequência era Cursivo Flores, mas havia outros...
Mas os textos publicados no República não nos chegava. Assim, decidimos, em Abril, iniciar a edição de uma publicação mensal, com dois exemplares: um deles ficava para mim e para a Mila e o outro para o Zé. Chamava-se “Nêspera Redonda” (título inspirado numa das histórias do Mário-Henrique). Desta brincadeira publicaram-se oito exemplares, o último deles em Dezembro de 1977, já só feito por mim.
O primeiro número da Nêspera Redonda saiu em Abril e acho que vale a pena relembrar o sumário, só para dar uma ideia do conteúdo da coisa:
Da responsabilidade da Mila: um “póster político” com uma caricatura do Marcelo Caetano, dois textos automáticos e mais dois outros intitulados “volumetria” e “nevrites”.
Da autoria do Zé: um texto sobre a América Latina, as Fábulas de Escopro, um texto experimental intitulado “Ecos da minha viagem à América”, o conto “Determinante de uma raiz quadrada” e um texto “a propósito do hiperrealismo”.
Textos meus: um texto “sobre a arte”, uma “conferência sobre o penso higiénico”, em que falo dos palavrões na nova literatura portuguesa, citando outro dos autores de que gostávamos na altura, António Rebordão Navarro, um conto intitulado “Estudo estatístico”, um texto automático com a duração de cinco minutos, um poema, outro conto, “O emblema irisdicente” e “30 medidas a tomar para a revalorização e reforço do prestígio e grandiosidade da civilização ocidental e cristã”.
Este primeiro número da “Nêspera Redonda” terminava com um texto do Zé, relatando o seu encontro com um tipo chamado Madeira Moniz, e que era director técnico da Galeria Opinião, situada nas traseiras do República. Era nossa intenção – mais do Zé, sublinhe-se – dar a conhecer as nossas realizações no campo das artes plásticas. Era o que faltava, não acham? Escrevíamos e publicávamos textos, compúnhamos peças musicais abstractas, além de canções de cariz revolucionário – só nos faltavam as chamadas artes plásticas. A Mila já tinha no currículo dois livros de exemplares únicos, com desenhos mais ou menos surrealistas, além de algumas telas a óleo, das quais eu gosto muito, sobretudo uma que ela me ofereceu no meu 21º aniversário, e que faz lembrar a estética do Dali. Eu entretinha-me, de vez em quando, a fazer umas brincadeiras com objectos recolhidos do lixo e tinta de esmalte. Certa vez, fiz uma bodega com uma placa de madeira, na qual colei meia dúzia de embalagens de iogurtes vazias, despejando-lhes, depois, várias latas de tinta de esmalte, deixando a tinta escorrer à sua vontade. Mas o Zé era, de nós os três, o que tinha um gosto mais consistente pelas coisas plásticas. Fazia (ainda fará?) estranhas construções com pequenos objectos recolhidos aqui e ali e que, esteticamente, eram muito agradáveis. No entanto, parece que o tal Madeira Moniz não ficou muito sensibilizado com a nossa arte. Muito mais tarde, no entanto, soube que o Zé acabou por fazer uma exposição com algumas das suas obras.
O primeiro número da “Nêspera Redonda” saiu no dia 20 de Abril de 1974.
Cinco dias depois, o mundo mudou em Portugal.
E cabe aqui dizer que, depois de reler estas memórias senti que quase não me refiro à actualidade política que foi marcando todos estes anos da minha vida. Reflectindo sobre este facto, pensei até em colocar, antes de cada capítulo, uma súmula dos acontecimentos mais importantes, em Portugal e no estrangeiro. Acabei por desistir da ideia. Estas memórias são, sobretudo, pessoais, referentes à minha vida e à vida das pessoas que me rodeiam. No entanto, quero precisar que, apesar de raramente me referir ao que se passa em redor do meu pequeno círculo vital, todos esses acontecimentos estão sempre presentes. Detesto jornalistas, mas não posso viver sem notícias...
Na manhã do dia 25 de Abril, a Mila veio acordar-me com a notícia de que o Marcelo Caetano estava sitiado no quartel do Carmo. A sensação é indescritível. Lembro-me que corri ao berço onde o Pedro estava, de pé, agarrado às guardas, peguei-lhe ao colo e comecei a gritar-lhe “O Marcelo caiu! O Marcelo caiu!” O puto, com dez meses, deve ter pensado que era um novo tipo de brincadeira que o pai tinha acabado de inventar e achou muita graça. Os dias seguintes foram de espanto, vendo, na televisão, tudo a mudar. E nós ainda não sabíamos, naquele momento, que também a nossa vida ia mudar, graças ao 25 de Abril.
No segundo número da “Nêspera Redonda”, saído em Maio, escrevi um texto sobre o 25 de Abril, que vale a pena transcrever porque foi escrito naquele momento e, de certo modo, traduz o que eu sentia na altura:

“Marcelo rendeu-se! O regime caiu!
É impossível descrever os factos e desnecessário; impossível porque foram (e estão a ser) tantos, aconteceu tudo tão depressa, que o melhor é simplesmente arquivar os recortes e consultá-los sempre que quiser reviver estritamente os acontecimentos.
O que interessaria seria tentar expressar aqui a nossa alegria estranha, a sensação esquisita de que fomos apossados. O que estava a acontecer? Pois o Marcelo rendera-se? Pois nunca mais íamos ouvir a sua voz de sacana nem nunca mais sentiríamos a sua repressão? Então os agentes da Pide, esses criminosos de merda, vão parar a Caxias e os presos políticos são todos postos em liberdade? Então acabou a censura? Então vai haver liberdade de expressão e reunião? Então já podemos FALAR sem recear os ouvidos dos Pides?
Isto tudo é demais para que nos apercebamos de tudo, para que tudo abarquemos com o nosso espírito cheio de recalcamentos. Nós que nascemos cá e vivemos há 21 anos habituados a compreender as meias-palavras, a encaixar injustiças e a viver sempre debaixo de um regime de medo, passamos de um momento para o outro, para uma liberdade totalmente desconhecida para nós.
Estou-me cagando para o rótulo político da Junta de Salvação Nacional, o que sei é que o Marcelo caiu e que temos agora a possibilidade de fazer algo – e, se não tivermos, então haverá a reacção respectiva.
Por enquanto, que respiremos em paz este momento virgem para nós!
Passaram-se todos estes dias – afinal, só três – e não consegui juntar duas palavras consequentes sobre o que se passou em Portugal. Porque o que se passou foi mesmo aqui e foi extraordinário. Estou mesmo em crer que há muitos anos que não se dava uma reviravolta política tão rápida e de consequências tão importantes!
Ao vermos os agentes da Pide a serem presos e levados para Caxias, donde pouco antes tinham saído todos os presos políticos que ali se encontravam, ao nos serem revelados os mais sórdidos pormenores dessa sádica organização que mais se assemelhava a um grupo obscurantista com os seus princípios e regras místicas, ao vermos o Mário Soares a ser recebido por milhares de pessoas em Santa Apolónia e, depois, o Álvaro Cunhal, no aeroporto, ao verificarmos que os jornais estão mesmo a sair sem serem vistos por qualquer comissão de censura, ao vermos na televisão diferente e livre, ao ouvirmos dizer que os sindicatos vão começar a reunir-se para decidirem a forma adequada para a obtenção dos direitos a que os trabalhadores nunca tiveram acesso, ao vermos as associações de estudantes a serem reabertas, os processos escolares a serem destruídos, os exilados a voltarem, ao ouvirmos, pura e simplesmente, a palavra fascista colocada no lugar próprio, em todo o lado, ao constatarmos tudo isto, não podemos deixar de nos sentir esquisitos. Vamos dar connosco ainda a comentar os acontecimentos em voz baixa, no café, quando afinal já podemos – rectifico: devemos – falar à altura de som que desejarmos. Vamos dar connosco num estranho combate interior entre a esperança que nunca nos abandonou e o cepticismo que nos impuseram e que continua apegado a nós. Vamos dar connosco a perguntar “e se isto volta ao mesmo?” Agora não volta! Agora não pode voltar nunca mais porque nós não vamos deixar! Vamos sugar esta oportunidade até à última gota e intalarmo-nos definitivamente no lugar que nos é devido!
Mas – tanto para fazer! É que não é só reconstruir o país, nem reaprender (no nosso caso, aprender totalmente) a liberdade, é deixar que ela não nos fuja, nem deixar que ela caia no caos.
É preciso manter a unidade e embora não vá à bola com slogans, o que é certo é que só um povo unido jamais será vencido. Unidade na vontade de ser livre! A maneira como cada um busca essa liberdade é que pode-deve ser diversa. Que ninguém tente agora implantar a sua vontade! Que ninguém me venha com doutrinas de pensamento, que ninguém me venha impor o marxismo ou leninismo ou a social-democracia, e muito menos o fascismo! É pena que determinados sectores políticos tenham agregado duas palavras que serviriam para definir o futuro de Portugal: liberalismo e anarquia. Quero eu dizer: total liberdade para todos, mas todos com a responsabilidade de exercer essa liberdade sem lesar a liberdade dos outros. Microcosmos unidos num macrocosmos comum. Enfim, vou parar sempre ao mesmo: o homem como homem e mais nada!
Mas tudo isto é demasiado para o momento actual. O importante, para já, é alegrarmo-nos com o derrube do marcelismo.
Porra! Respirem, porra!”

É um texto datado, claro, mas dá uma ideia do espanto que então vivemos e quis transcrevê-lo na sua totalidade, sem comentários, porque ele resume, de forma clara, o modo como vivi o 25 de Abril de 1974.
E o primeiro de Maio foi outro dia inesquecível. Milhares e milhares de pessoas a desfilarem pelas ruas de Lisboa, rindo e cantando. Nós também lá andámos, com o Pedro às cavalitas, espantado por ver tanta gente. Toda a confusão que veio depois não pode apagar esses momentos de pura felicidade.
Como já dei a entender mais do que uma vez, o 25 de Abril não foi só um milagre político para Portugal – para nós foi a porta aberta para a liberdade.
O Álvaro Guerra, próximo do Partido Socialista, era, afinal, um dos civis que andava a conspirar com o Movimento das Forças Armadas, que realizou, fisicamente, o golpe. Resultado: assim que a Junta de Salvação Nacional tomou o poder, ele foi nomeado para dirigir a Radiotelevisão Portuguesa, mais precisamente, os telejornais. Ora, a redacção do telejornal da RTP, salvo honrosas excepções, era quase toda formada por jornalistas afectos ao regime deposto. Era preciso renovar. Convenhamos que jornalistas democratas, revolucionários, de esquerda não devia haver muitos. Enfim, tirando os afectos ao Partido Comunista, que andavam a escrever a necrologia e os casos de polícia do Diário de Lisboa, do Diário Popular ou de A Capital, poucos deviam sobrar. Então, vai daí, o Álvaro Guerra lembrou-se de mim. Não quereria eu trabalhar como estagiário de jornalismo na RTP? O que acham que eu respondi?
Foi assim que, em Junho de 1974 arranjei o meu primeiro emprego: redactor do Telejornal. Ordenado: sete contos e quinhentos mensais. Era a liberdade, senhores! Antes do fim do ano, mudámo-nos para a nossa primeira casa, situada na Rua Inácio de Sousa, transversal à Rua do Montepio Geral. Tinha uma sala, um quarto, uma casa de banho, uma kitchinet e uma pequena varanda – tudo por três contos e quinhentos. Os quatro contos que sobravam davam para fazermos uma vida de lordes!
A minha experiência como jornalista foi inenarrável. Basta dizer que em três anos e meio, passei de estagiário a responsável pela secção internacional, sub-chefe de redacção e até chefe da última edição. Sempre que havia uma tentativa de golpe de Estado, eu era promovido! E estas promoções não tinham nada a ver com competência ou conveniência política: eu era um não-alinhado, o que ficava sempre bem para que não se dissesse que a RTP estava a soldo do poder e, além disso, continuava a escrever que nem um desalmado. Houve alguns telejornais que foram completamente escritos por mim: as notícias do país e do estrangeiro, o desporto e até o boletim meteorológico, simplesmente porque, em alguns dias, não havia lá mais ninguém para escrever aquilo – era só eu e o tipo que ia apresentar o Telejornal. Isso eu nunca fiz, não tinha perfil, que é como diz, usava o cabelo comprido, com uma franja que parecia uma boina, um bigode farfalhudo com as pontas retorcidas, uma barba muito mal semeada e, quanto a roupa, não largava as calças coçadas de bombazina e o blusão de xadrez, comprado nos Porfírios por vinte escudos, para além de um boné preto – era o chamado “UDP look”, de União Democrática e Popular, grupo político ao qual nunca pertenci mas que, enfim, com o qual tinha algumas afinidades (poucas, sejamos sinceros…). Mas fiz voz off, sim senhor, quando fui responsável pelas notícias internacionais e quando, de repente, resolvi, por exemplo, que a Frente Polisário já tinha sido reconhecida por todas as instâncias internacionais – o que me valeu um pedido de esclarecimentos por parte do então Director de Informação, tenente Costa Parente. Mas isso foi já em 1977 e eu estou a adiantar-me.


UDP-look, em 1974, na redacção do Jornal de Notícias

A entrada para a redacção do Telejornal foi assim uma espécie de curso acelerado de política. De uma vez só, entrei em contacto com o mundo fervilhante que estava a nascer da liberdade do 25 de Abril.
Na “Nêspera Redonda” número 3, publicada em Junho, escrevia:

“Recém saídos da ditadura fascista, fomos envolvidos por uma onda maciça de partidos políticos ou simples associações cívicas. Apenas para recordar: Partido Comunista, Partido Socialista, Partido Popular Democrático, Partido Trabalhista, Partido Trabalhista Democrático (vejam a subtileza dos nomes), Partido da Democracia Cristã, Partido Social Democrata Cristão, Partido Revolucionário do Proletariado, Partido Liberal, Liga Comunista Internacionalista, União Revolucionária Marxista-Leninista, Partido Comunista de Portugal (Marxista-Leninista), Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado, Juventude Monárquica Revolucionária, Frente Portugal Livre, Movimento Democrático Português, Partido Monárquico, Comissões de Base Socialistas, etc, etc.”

E, a estes, ainda se haveriam de juntar, por exemplo, o Centro Democrático Social, a cuja conferência de imprensa estive presente como jornalista do Jornal de Notícias, a Organização Comunista Marxista-Leninista, a União Democrática Popular, a Frente Comunista Marxista Leninista (FEC-ML, em cujo órgão oficial “O Grito do Povo”, também colaborei), o Comité Marxista-Leninista de Portugal e muitos, muitos outros…
Claro que eu era contra isto tudo e propunha:

“- as pessoas reúnem-se conforme afinidades profissionais em células, nas quais discutem os seus problemas;
- nas reuniões inter-células, as propostas aprovadas são apresentadas e discutidas;
- sempre que necessário, procura-se a opinião de outras células;
- criação de cooperativas produtoras-consumidoras geridas por todos;
- inexistência de governo central;
- cada sector da população deve debruçar-se regularmente sobre os problemas que lhe dizem respeito e depois apresentá-los à população em geral;
- a verdadeira estruturação do corpo social deve ser realizada por todos.”

Eu era, na altura, um verdadeiro Bakunine de Queluz!
A aprendizagem do jornalismo foi feita, essencialmente, à minha custa e com muito poucas ajudas. Lembro-me, no entanto, do chefe de redacção da altura, o José Manuel Marques, falecido há pouco tempo, que me ensinou muito. Recordo-o, barbas cerradas, cigarro sempre aceso na mão direita (muito se fumava no Telejornal!) e a mão esquerda no bolso, remexendo nas intimidades. Foi ele que me ensinou o estilo conciso, claro e simples que é necessário na televisão (e na rádio). Linguagem quase telegráfica. E evitar algumas palavras que não soam bem, embora na imprensa escrita possam ser usadas. Por exemplo, nunca dizer: “O actual ministro vem-se mostrando cada vez mais em cerimónias públicas”. E se o jornalista que está a ler a notícia se engasga depois de dizer “o actual ministro vem-se”… Nunca utilizar “por seu turno” que, em televisão ou rádio pode soar a “por Saturno”. Ou nunca dizer: “O Benfica disputa”, por razões óbvias…
Da redacção do Telejornal recordo, também, o Adelino Gomes e o Joaquim Furtado, que para lá entraram pouco depois de mim, e com quem estabeleci uma excelente relação e que, jornalistas já com larga experiência, muito me ensinaram também.
Os primeiros meses de jornalista foram complicados, já que tinha que conciliar o trabalho com os estudos. De manhã, ia às aulas e, às 5 da tarde, já estava na redacção, que ficava no Lumiar. Saía de lá quando o telejornal da noite ia para o ar e, naqueles tempos, podia ser a uma hora qualquer. Andávamos todos sedentos de notícias e, por vezes, o telejornal durava horas, passando reportagens de tudo e mais alguma coisa: o Mário Soares ali, o Cunhal acolá, o Sá Carneiro também, o Arnaldo Matos a erguer o punho, os trabalhadores da indústria conserveira em greve, o plenário dos ajudantes de farmácia, a reunião dos amigos dos primos dos tipos que tinham sido despedidos de uma empresa obscura com cinco empregados e um cão – tudo era motivo de reportagem. O chamado “pivot”, isto é, o desgraçado que lia o Telejornal, não tinha outro remédio se não ficar ali diante da câmara a desfiar notícias umas atrás das outras. O que valia é que podia, em directo, ir fumando o seu cigarrinho, para aliviar a tensão. Resumindo: chegava a Queluz já de madrugada. E, de manhã, era difícil levantar-me para as aulas, sobretudo se o Pedro decidia ter uma daquelas noites, o que já ia acontecendo com menos frequência, felizmente.
Foi por isso que iniciámos uma nova estratégia: muitas vezes, a Mila ia às aulas munida de um gravador portátil (mesmo assim, do tamanho de um caixa de sapatos), gravava as aulas, passava-as a limpo para cadernos e, depois, eu estudava. Só às aulas práticas é que não podia faltar, embora houvesse sempre alguma elasticidade – aliás, depois do 25 de Abril, o que houve mais foi elasticidade…
Viver em Queluz começava, portanto, a ser difícil. E assim, embora ainda não tivesse nenhum contrato de trabalho assinado e a situação política estivesse tremida, acabámos por nos aventurar a alugar o nosso primeiro apartamento. S. Domingos de Benfica pareceu-nos uma boa opção. Tínhamos transporte directo, quer para o Hospital, quer para a RTP e a minha mãe morava logo ali, podendo ficar com o Pedro enquanto íamos às aulas.
Tenho boas recordações desse pequeno apartamento. Era pequeno, mas tinha algumas vantagens. Por exemplo, quando a Mila estava a cozinhar na kitchinet, o rabo dela ficava na sala, o que era sempre engraçado. E o Pedro teve, finalmente, um quarto só para ele, enquanto nós dormíamos na sala, no mesmo sofá onde tínhamos passado a nossa gloriosa noite de núpcias.
Digam lá se isto não é romântico!


Mila lava roupa no tanque, na varanda do nosso 1º apartamento, na Rua Inácio de Sousa, 1974

Apesar do dia-a-dia febril, das aulas, do estudo, dos escritos para o República e do trabalho na televisão, ainda sobrava tempo para continuar a escrever textos para a “Nêspera Redonda”. Os caderninhos confessionais é que viram a feitura suspensa; só a eles regressei em 1980.
O número 4 da “Nêspera” dá notícia de um facto que foi um marco na nossa vida: conhecemos o Mário-Henrique Leiria pessoalmente. Transcreve-se:

“O Mário-Henrique revelou-se-nos pessoalmente, depois de já o conhecermos pelas palavras que escrevia.
Fomos almoçar à tasca, junto ao República.
O velhinho não nos desiludiu, antes pelo contrário.
Apesar do seu aspecto caquético, a desfazer-se em pedaços, de articulações completamente reumatizadas, o Mário é um dos gajos mais jovens que eu conheço...
Tão estranho, tão bizarro, tão esquisito, que o achámos bestialmente normal, simples, com o espírito por debaixo da pele.
Poderia escrever uma crónica surrealista, mas não.
Assim, simplesmente, é mais real.
A tia do Mário lá tem o cancro no fígado, o que é uma grande chatice porque a velha nunca mais morre.
Do sótão, saem de quando em vez, filas de pessoas que, por qualquer razão, resolveram passar a noite na referida divisão do longo casarão onde o Mário habita.
A mãe até já nem se admira… é o costume.
Detesta militares, inclusive o Exército Vermelho (veja-se a invasão da Checoslováquia).
Não vai a comícios. Os de lá de cima gritam: “Apoiam?” Todos respondem: “Apoiamos!”
O resto são conversas que são pequenos contos surrealistas ou surrealizantes.
O resto é um espírito jovem, apesar das articulações ferrugentas.
E mais não digo.
O Mário não se define em meia dúzia de palavras, mas tão só com actos do dia- a-dia.”

O que é certo é que se estabeleceu uma relação de profunda amizade entre nós e o Mário-Henrique, uma relação de grande ternura. Para nós, o Mário era assim como um avô divertido com quem apetecia estar sempre. Chamávamos-lhe a Velha, apesar de ele ter apenas 51 anos. A escoliose acentuada, a cabeça rapada, o grande bigode branco e, sobretudo, as mãos todas deformadas, com os dedos em flexão permanente, o que o obrigava a escrever segurando a caneta entre o polegar e o indicador, davam-lhe um ar de ancião, ao mesmo tempo respeitável e bizarro. Contava que os dedos das mãos tinham sido partidos, um a um, quando esteve preso na Bolívia ou no Brasil. Mas também podia ser consequência de uma coisa mais comezinha como uma simples artrite reumatóide. De qualquer maneira, tinha dores, às quais reagia com o habitual “É uma porra, pá!”, com a sua voz roufenha. Outras frases preferidas do Mário: “Isto é um fartar de rir!” e “Na peida!” Tratava-nos por meninos e penso que também gostava muito de nós. Foi muito bom conhecer o Mário-Henrique e, quando ele faleceu poucos anos depois, acho que uma fase da minha vida desapareceu com ele.
Além do Mário-Henrique, os almoços na tasca ao lado do República também nos deram a conhecer outras personagens ilustres, todos mais ou menos “anarco-burgueses-pseudo-revolucionários-comunistas-envergonhados”, como o Álvaro Belo Marques, director comercial do jornal, e o Rui Lemus, que nunca percebi muito bem o que fazia e com o qual também estabeleci, ao longo dos anos, uma relação especial. Eu, o Zé, o Mário, o Belo Marques e o Lemus haveríamos, em breve, de encetar uma aventura bem engraçada, como mais adiante se verá.
Mas antes, ainda passaria pelo “Pé de Cabra”, uma publicação de carácter humorístico, que se publicou semanalmente, de Agosto a Dezembro de 1974, quinze números exactamente. Tinha 16 páginas e custava doze escudos e cinquenta centavos. O Lemus levou-nos até ao director, um senhor sempre triste chamado Rui Mendonça e apresentou-nos como as grandes esperanças do humorismo nacional. Começámos a colaborar e, pela primeira vez, a ganhar dinheiro com os nossos textos. O nosso nome já aparece na ficha técnica do número 3, que rezava assim:

“Redacção e Administração: Rua Gomes Freire, 187, 2º Dtº, Lisboa; Director: Rui Mendonça; Artistas Certos: Duarte Boavida, Carlos Barradas, Diogo Vieira, Rui Martins, Eduardo Perestrelo e Rui Lemus; Artistas Nómadas: Artur Couto e Santos, Mário-Henrique Leiria, José António Pinheiro e Magalhães do Santos.”

Logo nesse número, dois textos meus. E a colaboração começou a aumentar em quantidade, como seria de esperar e, em breve, o Mendonça começou a pagar uma avença, que lhe saía mais barato do que pagar à peça. O “Pé de Cabra” tentava ser uma espécie de “Hara Kiri” português – mas nem o director tinha coragem de publicar coisas um pouco mais, digamos, chocantes, como os franceses faziam na referida revista, nem os portugueses andavam muito virados para o humor. Andava tudo entretido a fundar e refundar partidos e movimentos políticos; sobrava pouco tempo para a leitura - praticamente só havia tempo para comer, dormir e ir a manifestações. Ao fim dos tais quinze números, o “Pé de Cabra” fechou as portas. Com esse número ganhei mil escudos, referentes a três textos. Foi em Dezembro de 1974, o mesmo mês em que eu fiquei desempregado. Desempregado?! Exactamente. Eu conto…
Em Dezembro de 1974, um jornalista que trabalhava comigo no Telejornal, o José Alberto Ferreira, convidou-nos, a mim e ao Zé, para irmos trabalhar para a secção de Lisboa do Jornal de Notícias, que era (e ainda é), o jornal de maior tiragem em todo o país. A ideia era elaborar um edição vespertina do referido jornal. Confesso que nem sequer hesitei. Em primeiro lugar, ia trabalhar com o Zé e, em segundo lugar, a imprensa escrita exercia sobre mim uma atracção maior que a televisão. Aproveitei o facto de estar a trabalhar no Telejornal há seis meses, pretensamente como estagiário e ainda nem sequer ter assinado nenhum contrato de trabalho, para escrever uma carta de demissão ao Álvaro Guerra, da qual destaco este naco delicioso (e pretensioso):

“É certo que, quanto a processos de trabalho utilizados na televisão, apoio técnico e financeiro, distribuição de tarefas, classificação de pessoal (gostaria de frisar que, ultimamente, escolhia registo magnéticos internacionais, montava-os, escrevia os respectivos pivots e textos e lia-os em off – isto apesar de continuar como estagiário), tenho as minhas opiniões.
Espero que consigas fazer do Telejornal (e não só) um verdadeiro serviço informativo para o povo português, sem demagogia nem manobras partidárias de cúpula, buscando, mais do que o traçar de directrizes rígidas, o incutir, no Povo, a capacidade de se emancipar por si, quase espontaneamente”.

Toma! Aí estava o estagiário a explicar ao Director o que devia e como devia fazer. Adoro, sobretudo, aquele “quase espontaneamente”, referente à emancipação do povo. Eu sabia lá quem era o povo! O povo era eu, bem vistas as coisas e eu apetecia-me, naquele momento, ir experimentar a vida de repórter. À carta (sempre longa – raramente fui capaz de escrever uma carta curta, ao contrário das minhas histórias…), juntei todas as notícias que tinha redigido ao longo daqueles seis meses como jornalista da RTP. Portanto, fui-me embora para o Jornal de Notícias, cuja delegação de Lisboa ficava ali no Bairro Alto. O horário era melhor, porque não tinha que ficar até às tantas da madrugada, como acontecia na televisão e, segundo assegurava o José Alberto Ferreira, até ia ganhar melhor. Se bem me lembro, a Mila – sempre mais realista do que eu – não se opôs a esta minha decisão e, se pensou que era uma atitude errada, não o verbalizou.
Durante o mês de Dezembro andei pela cidade, fazendo reportagens sobre tudo e mais alguma coisa. Recordo uma em especial, feita por mim e pelo Zé, em que entrevistámos um mendigo muito digno, que estava sempre à porta de uma igreja, ali ao pé do Chiado, e que tinha uma filosofia de vida bem interessante. Fez-me lembrar um outro mendigo que, anos antes, nos abordou na Costa da Caparica, pedindo uns trocos. Quando lhe dissemos que estávamos tesos, pediu um cigarro; depois de lhe dar o cigarro, perguntei se não queria, também, lume, ao que ele respondeu, um pouco irritado: “Eu não fumo enquanto trabalho!”.
Quando o mês de Dezembro estava a chegar ao fim, recebi uma carta do Artur Alpedrinha, chefe da filial de Lisboa do Jornal de Notícias, informando-me que o projecto de elaboração da edição vespertina do jornal se tinha gorado, razão pela qual, tanto eu como o Zé seríamos dispensados no dia 31 de Dezembro. A acompanhar a carta, seguiam os respectivos vencimentos.
Estava desempregado, carago!
O Pedro com 18 meses, a Mila (e eu!) a estudar, uma renda da casa para pagar e eu, desempregado!
Se fosse hoje, teria dois ou três ataques cardíacos pelo menos.
Mas com 21 anos, nunca!
Eu e o Zé escrevemos uma violenta carta ao Director do Jornal de Notícias, com cópia para a comissão de trabalhadores, claro, em que exigíamos a nossa reintegração – não pedíamos, não solicitávamos – exigíamos!
O que é certo é que, no final de 1974, eu estava no olho da rua, outra vez à mercê das semanadas dos paizinhos!…

 



Próximo capítulo: "O Coiso" (1975)

 

Actualizado em: 5 de Agosto
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