8. O 25 de Abril (1974)
Antes de iniciar este capítulo, fumei um cigarro
enquanto olhava para o monitor e tentava ordenar as ideias.
É outra das vantagens do cigarro: ajuda na concentração,
acalma, relaxa, embora aumente a frequência cardíaca.
É injusto que o tabaco faça mal à saúde.
Aliás, é voz corrente dizer-se que tudo o
que sabe bem, faz mal, o que não é totalmente
verdade; um bom copo de água fresca sabe sempre muito
bem e não faz mal nenhum, por exemplo. Mas o tabaco,
meu deus, porque o fizeste tão maléfico?!
Durante os meus primeiros trinta anos de vida, nunca me
preocupei com os malefícios do tabaco. Fumei alegremente,
sem qualquer tipo de preocupação. Depois,
comecei a ter períodos de inquietação
em relação ao tabaco, sobretudo quando descobri
que era hipertenso, aí por volta dos 30 anos. No
entanto, isso não me impediu de continuar a fumar,
sem nunca ter feito uma verdadeira tentativa para desistir
– apenas uma ou duas falsas experiências de
descontinuação, que não resultaram.
Por volta dos 21 anos já fumava a quantidade que
fumo hoje: entre 16 a 18 cigarros por dia. Em 1974, a marca
continuava a ser o SG filtro, então já com
a embalagem azul escuro. Naquela altura, o tabaco continuava
a não fazer mal à saúde. Ainda se fumava
em qualquer parte, embora pense que se começava já
a falar em algumas restrições. No entanto,
no Hospital de Santa Maria, fumava-se nas aulas, nos corredores
e até nas enfermarias. No que me diz respeito, escrever
e fumar eram (e são) duas actividades indissociáveis.
Por volta de 1974, uma terceira actividade veio juntar-se
a estas duas: o gin tónico. Que bons momentos passei
dando golinhos num longo gin tónico bem gelado, fumando
um cigarro e escrevendo na minha Olivetti vermelha, que
a Mila me tinha oferecido, comprada em segunda mão,
numa loja de velharias das escadinhas do Duque. Escrevia
( e escrevo) apenas com os dois indicadores, com o cigarro
enfiado entre o indicador e o médio da mão
esquerda, e a cinza caindo para cima das teclas. De vez
em quando, precisava de virar a Olivetti ao contrário
e bater com ela na mesa para que a cinza saísse.
Quanto ao gin tónico (outra influência do Mário-Henrique),
manteve-se um hábito diário, antes do almoço
ou do jantar (e muitas vezes, antes do almoço e do
jantar), até há bem pouco tempo. A pouco e
pouco, o whisky foi ocupando o lugar do gin…
A produção de contos, histórias e outras
brincadeiras era tal que, durante o ano de 1974, o República
publicou, pelo menos, 65 textos meus o que, considerando
que só havia 42 suplementos Fim de Semana por ano,
dá uma média interessante. O Zé também
escrevia que se desunhava e, a páginas tantas, o
suplemento do República era quase todo feito por
nós, gratuitamente, apenas pelo prazer de escrever
e ver os nossos textos publicados. O Álvaro Guerra,
responsável pela planificação do referido
suplemento, pegava nos nossos textos, juntava-lhe mais um
ou dois do Mário-Henrique, acrescentava ilustrações
originais ou sacadas de algum álbum antigo e tinha
o suplemento feito, praticamente a custo zero. E até
a Mila viu um seu pequeno texto publicado, em Julho de 1974,
intitulado “Braghail(s) Franah´a(s) e Tip-Tap(s)”,
uma pequena brincadeira de quase-escrita automática.
Enfim, o Fim de Semana do República era quase o nosso
órgão oficial…
De tal modo assim era que, certa vez, decidimos enviar meia
dúzia de pequenos textos que diziam, mais ou menos,
algo como isto: “Esta semana, o suplemento Fim de
Semana não publica nenhum texto de Artur Couto e
Santos e José António Pinheiro, uma vez que
este dois nossos colaboradores se encontram em visita oficial
ao Lesoto (capital, Maseru)”. E o República
foi na nossa brincadeira, publicando, ao longo das várias
páginas do suplemento, estes pequenos avisos absurdos.
A torrente de textos era tal, que nos dávamos ao
luxo de enviar alguns sob pseudónimo, para dar a
ideia de que o suplemento tinha mais colaboradores. Um dos
que eu usava com frequência era Cursivo Flores, mas
havia outros...
Mas os textos publicados no República não
nos chegava. Assim, decidimos, em Abril, iniciar a edição
de uma publicação mensal, com dois exemplares:
um deles ficava para mim e para a Mila e o outro para o
Zé. Chamava-se “Nêspera Redonda”
(título inspirado numa das histórias do Mário-Henrique).
Desta brincadeira publicaram-se oito exemplares, o último
deles em Dezembro de 1977, já só feito por
mim.
O primeiro número da Nêspera Redonda saiu em
Abril e acho que vale a pena relembrar o sumário,
só para dar uma ideia do conteúdo da coisa:
Da responsabilidade da Mila: um “póster político”
com uma caricatura do Marcelo Caetano, dois textos automáticos
e mais dois outros intitulados “volumetria”
e “nevrites”.
Da autoria do Zé: um texto sobre a América
Latina, as Fábulas de Escopro, um texto experimental
intitulado “Ecos da minha viagem à América”,
o conto “Determinante de uma raiz quadrada”
e um texto “a propósito do hiperrealismo”.
Textos meus: um texto “sobre a arte”, uma “conferência
sobre o penso higiénico”, em que falo dos palavrões
na nova literatura portuguesa, citando outro dos autores
de que gostávamos na altura, António Rebordão
Navarro, um conto intitulado “Estudo estatístico”,
um texto automático com a duração de
cinco minutos, um poema, outro conto, “O emblema irisdicente”
e “30 medidas a tomar para a revalorização
e reforço do prestígio e grandiosidade da
civilização ocidental e cristã”.
Este primeiro número da “Nêspera Redonda”
terminava com um texto do Zé, relatando o seu encontro
com um tipo chamado Madeira Moniz, e que era director técnico
da Galeria Opinião, situada nas traseiras do República.
Era nossa intenção – mais do Zé,
sublinhe-se – dar a conhecer as nossas realizações
no campo das artes plásticas. Era o que faltava,
não acham? Escrevíamos e publicávamos
textos, compúnhamos peças musicais abstractas,
além de canções de cariz revolucionário
– só nos faltavam as chamadas artes plásticas.
A Mila já tinha no currículo dois livros de
exemplares únicos, com desenhos mais ou menos surrealistas,
além de algumas telas a óleo, das quais eu
gosto muito, sobretudo uma que ela me ofereceu no meu 21º
aniversário, e que faz lembrar a estética
do Dali. Eu entretinha-me, de vez em quando, a fazer umas
brincadeiras com objectos recolhidos do lixo e tinta de
esmalte. Certa vez, fiz uma bodega com uma placa de madeira,
na qual colei meia dúzia de embalagens de iogurtes
vazias, despejando-lhes, depois, várias latas de
tinta de esmalte, deixando a tinta escorrer à sua
vontade. Mas o Zé era, de nós os três,
o que tinha um gosto mais consistente pelas coisas plásticas.
Fazia (ainda fará?) estranhas construções
com pequenos objectos recolhidos aqui e ali e que, esteticamente,
eram muito agradáveis. No entanto, parece que o tal
Madeira Moniz não ficou muito sensibilizado com a
nossa arte. Muito mais tarde, no entanto, soube que o Zé
acabou por fazer uma exposição com algumas
das suas obras.
O primeiro número da “Nêspera Redonda”
saiu no dia 20 de Abril de 1974.
Cinco dias depois, o mundo mudou em Portugal.
E cabe aqui dizer que, depois de reler estas memórias
senti que quase não me refiro à actualidade
política que foi marcando todos estes anos da minha
vida. Reflectindo sobre este facto, pensei até em
colocar, antes de cada capítulo, uma súmula
dos acontecimentos mais importantes, em Portugal e no estrangeiro.
Acabei por desistir da ideia. Estas memórias são,
sobretudo, pessoais, referentes à minha vida e à
vida das pessoas que me rodeiam. No entanto, quero precisar
que, apesar de raramente me referir ao que se passa em redor
do meu pequeno círculo vital, todos esses acontecimentos
estão sempre presentes. Detesto jornalistas, mas
não posso viver sem notícias...
Na manhã do dia 25 de Abril, a Mila veio acordar-me
com a notícia de que o Marcelo Caetano estava sitiado
no quartel do Carmo. A sensação é indescritível.
Lembro-me que corri ao berço onde o Pedro estava,
de pé, agarrado às guardas, peguei-lhe ao
colo e comecei a gritar-lhe “O Marcelo caiu! O Marcelo
caiu!” O puto, com dez meses, deve ter pensado que
era um novo tipo de brincadeira que o pai tinha acabado
de inventar e achou muita graça. Os dias seguintes
foram de espanto, vendo, na televisão, tudo a mudar.
E nós ainda não sabíamos, naquele momento,
que também a nossa vida ia mudar, graças ao
25 de Abril.
No segundo número da “Nêspera Redonda”,
saído em Maio, escrevi um texto sobre o 25 de Abril,
que vale a pena transcrever porque foi escrito naquele momento
e, de certo modo, traduz o que eu sentia na altura:
“Marcelo rendeu-se! O regime caiu!
É impossível descrever os factos e desnecessário;
impossível porque foram (e estão a ser) tantos,
aconteceu tudo tão depressa, que o melhor é
simplesmente arquivar os recortes e consultá-los
sempre que quiser reviver estritamente os acontecimentos.
O que interessaria seria tentar expressar aqui a nossa alegria
estranha, a sensação esquisita de que fomos
apossados. O que estava a acontecer? Pois o Marcelo rendera-se?
Pois nunca mais íamos ouvir a sua voz de sacana nem
nunca mais sentiríamos a sua repressão? Então
os agentes da Pide, esses criminosos de merda, vão
parar a Caxias e os presos políticos são todos
postos em liberdade? Então acabou a censura? Então
vai haver liberdade de expressão e reunião?
Então já podemos FALAR sem recear os ouvidos
dos Pides?
Isto tudo é demais para que nos apercebamos de tudo,
para que tudo abarquemos com o nosso espírito cheio
de recalcamentos. Nós que nascemos cá e vivemos
há 21 anos habituados a compreender as meias-palavras,
a encaixar injustiças e a viver sempre debaixo de
um regime de medo, passamos de um momento para o outro,
para uma liberdade totalmente desconhecida para nós.
Estou-me cagando para o rótulo político da
Junta de Salvação Nacional, o que sei é
que o Marcelo caiu e que temos agora a possibilidade de
fazer algo – e, se não tivermos, então
haverá a reacção respectiva.
Por enquanto, que respiremos em paz este momento virgem
para nós!
Passaram-se todos estes dias – afinal, só três
– e não consegui juntar duas palavras consequentes
sobre o que se passou em Portugal. Porque o que se passou
foi mesmo aqui e foi extraordinário. Estou mesmo
em crer que há muitos anos que não se dava
uma reviravolta política tão rápida
e de consequências tão importantes!
Ao vermos os agentes da Pide a serem presos e levados para
Caxias, donde pouco antes tinham saído todos os presos
políticos que ali se encontravam, ao nos serem revelados
os mais sórdidos pormenores dessa sádica organização
que mais se assemelhava a um grupo obscurantista com os
seus princípios e regras místicas, ao vermos
o Mário Soares a ser recebido por milhares de pessoas
em Santa Apolónia e, depois, o Álvaro Cunhal,
no aeroporto, ao verificarmos que os jornais estão
mesmo a sair sem serem vistos por qualquer comissão
de censura, ao vermos na televisão diferente e livre,
ao ouvirmos dizer que os sindicatos vão começar
a reunir-se para decidirem a forma adequada para a obtenção
dos direitos a que os trabalhadores nunca tiveram acesso,
ao vermos as associações de estudantes a serem
reabertas, os processos escolares a serem destruídos,
os exilados a voltarem, ao ouvirmos, pura e simplesmente,
a palavra fascista colocada no lugar próprio, em
todo o lado, ao constatarmos tudo isto, não podemos
deixar de nos sentir esquisitos. Vamos dar connosco ainda
a comentar os acontecimentos em voz baixa, no café,
quando afinal já podemos – rectifico: devemos
– falar à altura de som que desejarmos. Vamos
dar connosco num estranho combate interior entre a esperança
que nunca nos abandonou e o cepticismo que nos impuseram
e que continua apegado a nós. Vamos dar connosco
a perguntar “e se isto volta ao mesmo?” Agora
não volta! Agora não pode voltar nunca mais
porque nós não vamos deixar! Vamos sugar esta
oportunidade até à última gota e intalarmo-nos
definitivamente no lugar que nos é devido!
Mas – tanto para fazer! É que não é
só reconstruir o país, nem reaprender (no
nosso caso, aprender totalmente) a liberdade, é deixar
que ela não nos fuja, nem deixar que ela caia no
caos.
É preciso manter a unidade e embora não vá
à bola com slogans, o que é certo é
que só um povo unido jamais será vencido.
Unidade na vontade de ser livre! A maneira como cada um
busca essa liberdade é que pode-deve ser diversa.
Que ninguém tente agora implantar a sua vontade!
Que ninguém me venha com doutrinas de pensamento,
que ninguém me venha impor o marxismo ou leninismo
ou a social-democracia, e muito menos o fascismo! É
pena que determinados sectores políticos tenham agregado
duas palavras que serviriam para definir o futuro de Portugal:
liberalismo e anarquia. Quero eu dizer: total liberdade
para todos, mas todos com a responsabilidade de exercer
essa liberdade sem lesar a liberdade dos outros. Microcosmos
unidos num macrocosmos comum. Enfim, vou parar sempre ao
mesmo: o homem como homem e mais nada!
Mas tudo isto é demasiado para o momento actual.
O importante, para já, é alegrarmo-nos com
o derrube do marcelismo.
Porra! Respirem, porra!”
É um texto datado, claro, mas dá uma ideia
do espanto que então vivemos e quis transcrevê-lo
na sua totalidade, sem comentários, porque ele resume,
de forma clara, o modo como vivi o 25 de Abril de 1974.
E o primeiro de Maio foi outro dia inesquecível.
Milhares e milhares de pessoas a desfilarem pelas ruas de
Lisboa, rindo e cantando. Nós também lá
andámos, com o Pedro às cavalitas, espantado
por ver tanta gente. Toda a confusão que veio depois
não pode apagar esses momentos de pura felicidade.
Como já dei a entender mais do que uma vez, o 25
de Abril não foi só um milagre político
para Portugal – para nós foi a porta aberta
para a liberdade.
O Álvaro Guerra, próximo do Partido Socialista,
era, afinal, um dos civis que andava a conspirar com o Movimento
das Forças Armadas, que realizou, fisicamente, o
golpe. Resultado: assim que a Junta de Salvação
Nacional tomou o poder, ele foi nomeado para dirigir a Radiotelevisão
Portuguesa, mais precisamente, os telejornais. Ora, a redacção
do telejornal da RTP, salvo honrosas excepções,
era quase toda formada por jornalistas afectos ao regime
deposto. Era preciso renovar. Convenhamos que jornalistas
democratas, revolucionários, de esquerda não
devia haver muitos. Enfim, tirando os afectos ao Partido
Comunista, que andavam a escrever a necrologia e os casos
de polícia do Diário de Lisboa, do Diário
Popular ou de A Capital, poucos deviam sobrar. Então,
vai daí, o Álvaro Guerra lembrou-se de mim.
Não quereria eu trabalhar como estagiário
de jornalismo na RTP? O que acham que eu respondi?
Foi assim que, em Junho de 1974 arranjei o meu primeiro
emprego: redactor do Telejornal. Ordenado: sete contos e
quinhentos mensais. Era a liberdade, senhores! Antes do
fim do ano, mudámo-nos para a nossa primeira casa,
situada na Rua Inácio de Sousa, transversal à
Rua do Montepio Geral. Tinha uma sala, um quarto, uma casa
de banho, uma kitchinet e uma pequena varanda – tudo
por três contos e quinhentos. Os quatro contos que
sobravam davam para fazermos uma vida de lordes!
A minha experiência como jornalista foi inenarrável.
Basta dizer que em três anos e meio, passei de estagiário
a responsável pela secção internacional,
sub-chefe de redacção e até chefe da
última edição. Sempre que havia uma
tentativa de golpe de Estado, eu era promovido! E estas
promoções não tinham nada a ver com
competência ou conveniência política:
eu era um não-alinhado, o que ficava sempre bem para
que não se dissesse que a RTP estava a soldo do poder
e, além disso, continuava a escrever que nem um desalmado.
Houve alguns telejornais que foram completamente escritos
por mim: as notícias do país e do estrangeiro,
o desporto e até o boletim meteorológico,
simplesmente porque, em alguns dias, não havia lá
mais ninguém para escrever aquilo – era só
eu e o tipo que ia apresentar o Telejornal. Isso eu nunca
fiz, não tinha perfil, que é como diz, usava
o cabelo comprido, com uma franja que parecia uma boina,
um bigode farfalhudo com as pontas retorcidas, uma barba
muito mal semeada e, quanto a roupa, não largava
as calças coçadas de bombazina e o blusão
de xadrez, comprado nos Porfírios por vinte escudos,
para além de um boné preto – era o chamado
“UDP look”, de União Democrática
e Popular, grupo político ao qual nunca pertenci
mas que, enfim, com o qual tinha algumas afinidades (poucas,
sejamos sinceros…). Mas fiz voz off, sim senhor, quando
fui responsável pelas notícias internacionais
e quando, de repente, resolvi, por exemplo, que a Frente
Polisário já tinha sido reconhecida por todas
as instâncias internacionais – o que me valeu
um pedido de esclarecimentos por parte do então Director
de Informação, tenente Costa Parente. Mas
isso foi já em 1977 e eu estou a adiantar-me.
UDP-look, em 1974, na redacção do Jornal
de Notícias
A entrada para a redacção do Telejornal foi
assim uma espécie de curso acelerado de política.
De uma vez só, entrei em contacto com o mundo fervilhante
que estava a nascer da liberdade do 25 de Abril.
Na “Nêspera Redonda” número 3,
publicada em Junho, escrevia:
“Recém saídos da ditadura fascista,
fomos envolvidos por uma onda maciça de partidos
políticos ou simples associações cívicas.
Apenas para recordar: Partido Comunista, Partido Socialista,
Partido Popular Democrático, Partido Trabalhista,
Partido Trabalhista Democrático (vejam a subtileza
dos nomes), Partido da Democracia Cristã, Partido
Social Democrata Cristão, Partido Revolucionário
do Proletariado, Partido Liberal, Liga Comunista Internacionalista,
União Revolucionária Marxista-Leninista, Partido
Comunista de Portugal (Marxista-Leninista), Movimento Reorganizativo
do Partido do Proletariado, Juventude Monárquica
Revolucionária, Frente Portugal Livre, Movimento
Democrático Português, Partido Monárquico,
Comissões de Base Socialistas, etc, etc.”
E, a estes, ainda se haveriam de juntar, por exemplo, o
Centro Democrático Social, a cuja conferência
de imprensa estive presente como jornalista do Jornal de
Notícias, a Organização Comunista Marxista-Leninista,
a União Democrática Popular, a Frente Comunista
Marxista Leninista (FEC-ML, em cujo órgão
oficial “O Grito do Povo”, também colaborei),
o Comité Marxista-Leninista de Portugal e muitos,
muitos outros…
Claro que eu era contra isto tudo e propunha:
“- as pessoas reúnem-se conforme afinidades
profissionais em células, nas quais discutem os seus
problemas;
- nas reuniões inter-células, as propostas
aprovadas são apresentadas e discutidas;
- sempre que necessário, procura-se a opinião
de outras células;
- criação de cooperativas produtoras-consumidoras
geridas por todos;
- inexistência de governo central;
- cada sector da população deve debruçar-se
regularmente sobre os problemas que lhe dizem respeito e
depois apresentá-los à população
em geral;
- a verdadeira estruturação do corpo social
deve ser realizada por todos.”
Eu era, na altura, um verdadeiro Bakunine de Queluz!
A aprendizagem do jornalismo foi feita, essencialmente,
à minha custa e com muito poucas ajudas. Lembro-me,
no entanto, do chefe de redacção da altura,
o José Manuel Marques, falecido há pouco tempo,
que me ensinou muito. Recordo-o, barbas cerradas, cigarro
sempre aceso na mão direita (muito se fumava no Telejornal!)
e a mão esquerda no bolso, remexendo nas intimidades.
Foi ele que me ensinou o estilo conciso, claro e simples
que é necessário na televisão (e na
rádio). Linguagem quase telegráfica. E evitar
algumas palavras que não soam bem, embora na imprensa
escrita possam ser usadas. Por exemplo, nunca dizer: “O
actual ministro vem-se mostrando cada vez mais em cerimónias
públicas”. E se o jornalista que está
a ler a notícia se engasga depois de dizer “o
actual ministro vem-se”… Nunca utilizar “por
seu turno” que, em televisão ou rádio
pode soar a “por Saturno”. Ou nunca dizer: “O
Benfica disputa”, por razões óbvias…
Da redacção do Telejornal recordo, também,
o Adelino Gomes e o Joaquim Furtado, que para lá
entraram pouco depois de mim, e com quem estabeleci uma
excelente relação e que, jornalistas já
com larga experiência, muito me ensinaram também.
Os primeiros meses de jornalista foram complicados, já
que tinha que conciliar o trabalho com os estudos. De manhã,
ia às aulas e, às 5 da tarde, já estava
na redacção, que ficava no Lumiar. Saía
de lá quando o telejornal da noite ia para o ar e,
naqueles tempos, podia ser a uma hora qualquer. Andávamos
todos sedentos de notícias e, por vezes, o telejornal
durava horas, passando reportagens de tudo e mais alguma
coisa: o Mário Soares ali, o Cunhal acolá,
o Sá Carneiro também, o Arnaldo Matos a erguer
o punho, os trabalhadores da indústria conserveira
em greve, o plenário dos ajudantes de farmácia,
a reunião dos amigos dos primos dos tipos que tinham
sido despedidos de uma empresa obscura com cinco empregados
e um cão – tudo era motivo de reportagem. O
chamado “pivot”, isto é, o desgraçado
que lia o Telejornal, não tinha outro remédio
se não ficar ali diante da câmara a desfiar
notícias umas atrás das outras. O que valia
é que podia, em directo, ir fumando o seu cigarrinho,
para aliviar a tensão. Resumindo: chegava a Queluz
já de madrugada. E, de manhã, era difícil
levantar-me para as aulas, sobretudo se o Pedro decidia
ter uma daquelas noites, o que já ia acontecendo
com menos frequência, felizmente.
Foi por isso que iniciámos uma nova estratégia:
muitas vezes, a Mila ia às aulas munida de um gravador
portátil (mesmo assim, do tamanho de um caixa de
sapatos), gravava as aulas, passava-as a limpo para cadernos
e, depois, eu estudava. Só às aulas práticas
é que não podia faltar, embora houvesse sempre
alguma elasticidade – aliás, depois do 25 de
Abril, o que houve mais foi elasticidade…
Viver em Queluz começava, portanto, a ser difícil.
E assim, embora ainda não tivesse nenhum contrato
de trabalho assinado e a situação política
estivesse tremida, acabámos por nos aventurar a alugar
o nosso primeiro apartamento. S. Domingos de Benfica pareceu-nos
uma boa opção. Tínhamos transporte
directo, quer para o Hospital, quer para a RTP e a minha
mãe morava logo ali, podendo ficar com o Pedro enquanto
íamos às aulas.
Tenho boas recordações desse pequeno apartamento.
Era pequeno, mas tinha algumas vantagens. Por exemplo, quando
a Mila estava a cozinhar na kitchinet, o rabo dela ficava
na sala, o que era sempre engraçado. E o Pedro teve,
finalmente, um quarto só para ele, enquanto nós
dormíamos na sala, no mesmo sofá onde tínhamos
passado a nossa gloriosa noite de núpcias.
Digam lá se isto não é romântico!
Mila lava roupa no tanque, na varanda do nosso 1º
apartamento, na Rua Inácio de Sousa, 1974
Apesar do dia-a-dia febril, das aulas, do estudo, dos escritos
para o República e do trabalho na televisão,
ainda sobrava tempo para continuar a escrever textos para
a “Nêspera Redonda”. Os caderninhos confessionais
é que viram a feitura suspensa; só a eles
regressei em 1980.
O número 4 da “Nêspera” dá
notícia de um facto que foi um marco na nossa vida:
conhecemos o Mário-Henrique Leiria pessoalmente.
Transcreve-se:
“O Mário-Henrique revelou-se-nos pessoalmente,
depois de já o conhecermos pelas palavras que escrevia.
Fomos almoçar à tasca, junto ao República.
O velhinho não nos desiludiu, antes pelo contrário.
Apesar do seu aspecto caquético, a desfazer-se em
pedaços, de articulações completamente
reumatizadas, o Mário é um dos gajos mais
jovens que eu conheço...
Tão estranho, tão bizarro, tão esquisito,
que o achámos bestialmente normal, simples, com o
espírito por debaixo da pele.
Poderia escrever uma crónica surrealista, mas não.
Assim, simplesmente, é mais real.
A tia do Mário lá tem o cancro no fígado,
o que é uma grande chatice porque a velha nunca mais
morre.
Do sótão, saem de quando em vez, filas de
pessoas que, por qualquer razão, resolveram passar
a noite na referida divisão do longo casarão
onde o Mário habita.
A mãe até já nem se admira… é
o costume.
Detesta militares, inclusive o Exército Vermelho
(veja-se a invasão da Checoslováquia).
Não vai a comícios. Os de lá de cima
gritam: “Apoiam?” Todos respondem: “Apoiamos!”
O resto são conversas que são pequenos contos
surrealistas ou surrealizantes.
O resto é um espírito jovem, apesar das articulações
ferrugentas.
E mais não digo.
O Mário não se define em meia dúzia
de palavras, mas tão só com actos do dia-
a-dia.”
O que é certo é que se estabeleceu uma relação
de profunda amizade entre nós e o Mário-Henrique,
uma relação de grande ternura. Para nós,
o Mário era assim como um avô divertido com
quem apetecia estar sempre. Chamávamos-lhe a Velha,
apesar de ele ter apenas 51 anos. A escoliose acentuada,
a cabeça rapada, o grande bigode branco e, sobretudo,
as mãos todas deformadas, com os dedos em flexão
permanente, o que o obrigava a escrever segurando a caneta
entre o polegar e o indicador, davam-lhe um ar de ancião,
ao mesmo tempo respeitável e bizarro. Contava que
os dedos das mãos tinham sido partidos, um a um,
quando esteve preso na Bolívia ou no Brasil. Mas
também podia ser consequência de uma coisa
mais comezinha como uma simples artrite reumatóide.
De qualquer maneira, tinha dores, às quais reagia
com o habitual “É uma porra, pá!”,
com a sua voz roufenha. Outras frases preferidas do Mário:
“Isto é um fartar de rir!” e “Na
peida!” Tratava-nos por meninos e penso que também
gostava muito de nós. Foi muito bom conhecer o Mário-Henrique
e, quando ele faleceu poucos anos depois, acho que uma fase
da minha vida desapareceu com ele.
Além do Mário-Henrique, os almoços
na tasca ao lado do República também nos deram
a conhecer outras personagens ilustres, todos mais ou menos
“anarco-burgueses-pseudo-revolucionários-comunistas-envergonhados”,
como o Álvaro Belo Marques, director comercial do
jornal, e o Rui Lemus, que nunca percebi muito bem o que
fazia e com o qual também estabeleci, ao longo dos
anos, uma relação especial. Eu, o Zé,
o Mário, o Belo Marques e o Lemus haveríamos,
em breve, de encetar uma aventura bem engraçada,
como mais adiante se verá.
Mas antes, ainda passaria pelo “Pé de Cabra”,
uma publicação de carácter humorístico,
que se publicou semanalmente, de Agosto a Dezembro de 1974,
quinze números exactamente. Tinha 16 páginas
e custava doze escudos e cinquenta centavos. O Lemus levou-nos
até ao director, um senhor sempre triste chamado
Rui Mendonça e apresentou-nos como as grandes esperanças
do humorismo nacional. Começámos a colaborar
e, pela primeira vez, a ganhar dinheiro com os nossos textos.
O nosso nome já aparece na ficha técnica do
número 3, que rezava assim:
“Redacção e Administração:
Rua Gomes Freire, 187, 2º Dtº, Lisboa; Director:
Rui Mendonça; Artistas Certos: Duarte Boavida, Carlos
Barradas, Diogo Vieira, Rui Martins, Eduardo Perestrelo
e Rui Lemus; Artistas Nómadas: Artur Couto e Santos,
Mário-Henrique Leiria, José António
Pinheiro e Magalhães do Santos.”
Logo nesse número, dois textos meus. E a colaboração
começou a aumentar em quantidade, como seria de esperar
e, em breve, o Mendonça começou a pagar uma
avença, que lhe saía mais barato do que pagar
à peça. O “Pé de Cabra”
tentava ser uma espécie de “Hara Kiri”
português – mas nem o director tinha coragem
de publicar coisas um pouco mais, digamos, chocantes, como
os franceses faziam na referida revista, nem os portugueses
andavam muito virados para o humor. Andava tudo entretido
a fundar e refundar partidos e movimentos políticos;
sobrava pouco tempo para a leitura - praticamente só
havia tempo para comer, dormir e ir a manifestações.
Ao fim dos tais quinze números, o “Pé
de Cabra” fechou as portas. Com esse número
ganhei mil escudos, referentes a três textos. Foi
em Dezembro de 1974, o mesmo mês em que eu fiquei
desempregado. Desempregado?! Exactamente. Eu conto…
Em Dezembro de 1974, um jornalista que trabalhava comigo
no Telejornal, o José Alberto Ferreira, convidou-nos,
a mim e ao Zé, para irmos trabalhar para a secção
de Lisboa do Jornal de Notícias, que era (e ainda
é), o jornal de maior tiragem em todo o país.
A ideia era elaborar um edição vespertina
do referido jornal. Confesso que nem sequer hesitei. Em
primeiro lugar, ia trabalhar com o Zé e, em segundo
lugar, a imprensa escrita exercia sobre mim uma atracção
maior que a televisão. Aproveitei o facto de estar
a trabalhar no Telejornal há seis meses, pretensamente
como estagiário e ainda nem sequer ter assinado nenhum
contrato de trabalho, para escrever uma carta de demissão
ao Álvaro Guerra, da qual destaco este naco delicioso
(e pretensioso):
“É certo que, quanto a processos de trabalho
utilizados na televisão, apoio técnico e financeiro,
distribuição de tarefas, classificação
de pessoal (gostaria de frisar que, ultimamente, escolhia
registo magnéticos internacionais, montava-os, escrevia
os respectivos pivots e textos e lia-os em off – isto
apesar de continuar como estagiário), tenho as minhas
opiniões.
Espero que consigas fazer do Telejornal (e não só)
um verdadeiro serviço informativo para o povo português,
sem demagogia nem manobras partidárias de cúpula,
buscando, mais do que o traçar de directrizes rígidas,
o incutir, no Povo, a capacidade de se emancipar por si,
quase espontaneamente”.
Toma! Aí estava o estagiário a explicar ao
Director o que devia e como devia fazer. Adoro, sobretudo,
aquele “quase espontaneamente”, referente à
emancipação do povo. Eu sabia lá quem
era o povo! O povo era eu, bem vistas as coisas e eu apetecia-me,
naquele momento, ir experimentar a vida de repórter.
À carta (sempre longa – raramente fui capaz
de escrever uma carta curta, ao contrário das minhas
histórias…), juntei todas as notícias
que tinha redigido ao longo daqueles seis meses como jornalista
da RTP. Portanto, fui-me embora para o Jornal de Notícias,
cuja delegação de Lisboa ficava ali no Bairro
Alto. O horário era melhor, porque não tinha
que ficar até às tantas da madrugada, como
acontecia na televisão e, segundo assegurava o José
Alberto Ferreira, até ia ganhar melhor. Se bem me
lembro, a Mila – sempre mais realista do que eu –
não se opôs a esta minha decisão e,
se pensou que era uma atitude errada, não o verbalizou.
Durante o mês de Dezembro andei pela cidade, fazendo
reportagens sobre tudo e mais alguma coisa. Recordo uma
em especial, feita por mim e pelo Zé, em que entrevistámos
um mendigo muito digno, que estava sempre à porta
de uma igreja, ali ao pé do Chiado, e que tinha uma
filosofia de vida bem interessante. Fez-me lembrar um outro
mendigo que, anos antes, nos abordou na Costa da Caparica,
pedindo uns trocos. Quando lhe dissemos que estávamos
tesos, pediu um cigarro; depois de lhe dar o cigarro, perguntei
se não queria, também, lume, ao que ele respondeu,
um pouco irritado: “Eu não fumo enquanto trabalho!”.
Quando o mês de Dezembro estava a chegar ao fim, recebi
uma carta do Artur Alpedrinha, chefe da filial de Lisboa
do Jornal de Notícias, informando-me que o projecto
de elaboração da edição vespertina
do jornal se tinha gorado, razão pela qual, tanto
eu como o Zé seríamos dispensados no dia 31
de Dezembro. A acompanhar a carta, seguiam os respectivos
vencimentos.
Estava desempregado, carago!
O Pedro com 18 meses, a Mila (e eu!) a estudar, uma renda
da casa para pagar e eu, desempregado!
Se fosse hoje, teria dois ou três ataques cardíacos
pelo menos.
Mas com 21 anos, nunca!
Eu e o Zé escrevemos uma violenta carta ao Director
do Jornal de Notícias, com cópia para a comissão
de trabalhadores, claro, em que exigíamos a nossa
reintegração – não pedíamos,
não solicitávamos – exigíamos!
O que é certo é que, no final de 1974, eu
estava no olho da rua, outra vez à mercê das
semanadas dos paizinhos!…
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