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O Coiso
Memórias de um fumador
50 anos de história


9. O Coiso (1975)

Em 1974 e 1975 aprendi tudo o que havia a aprender sobre política.
Livros que comprei em 1974: “Progresso Social e Liberdade” (Marcuse), “Democracia” (António Sérgio), “Sobre a Religião”, “As Teses de Abril”, “Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo”, “Como Iludir o Povo”, “O Direito das Nações Disporem de Si Próprias” e “O Trabalho do Partido entre as Massas” (Lenine), “Sobre a Literatura e a Arte” (Lenine e Marx), “Manifesto do Partido Comunista” (Marx e Engels), “Acerca da Contradição” (Mao-Tsé Tung), “O Capital” (Marx).
Que tal? Foi um verdadeiro curso intensivo, embora também tenha adquirido outros livros que me marcaram, nomeadamente, “O Outono em Pequim”, do Boris Vian e, claro, “Os Novos Contos do Gin Tónico”, do Mário-Henrique Leiria.
Vale a pena ainda citar outros livros comprados nesses dois anos: “Feitiçaria” (Bulgakov), “Nadja” e “O Amor Louco” (Andre Breton), “As Aventuras do João Sem Medo” (José Gomes Ferreira), “De Ombro na Ombreira” (Alexandre O’Neill), “A Intervenção Surrealista” (Mário Cesariny), “A Guerra dos Mundos” (H.G. Wells), “Todos os Fogos o Fogo” (Julio Cortazar), “Os Passos em Volta” (Herberto Helder), “O Copo dos Dados” (Max Jacobs).
Política, surrealismo e poesia, dominavam.
O que continuava a dominar era o bom senso, se é que se pode ter bem senso aos 21 anos, com uma revolução em curso. E o sentido de humor, claro. Por exemplo, não conseguia olhar para um cartaz do MRPP sem me rir. Aquelas figuras altivas, de homens e mulheres que se pretendia que fossem do povo, empunhando bandeiras vermelhas e avançando, resolutas, no caminho da revolução, sempre lideradas por soldados e marinheiros, estudantes e intelectuais, que formavam a elite esclarecida, a guarda avançada dos operários e camponeses, todos eles unidos por palavras de ordem como “Em frente pela revolução popular!” ou “Nem mais um só soldado para as colónias!” – todo esse folclore era, como diria o Mário-Henrique, um fartar de rir, pá!… Um dos meus divertimentos era pegar nos cartazes do MRPP e introduzir-lhe algumas pequenas alterações perversas como, por exemplo, “Em frente pela porta das traseiras!” – frase que, mais tarde, tive oportunidade de pintar nas paredes do quintal da nossa casa do Algueirão. E que dizer das canções revolucionárias da época, que ainda hoje recordamos, com um sorriso nos lábios... O Sérgio Godinho a cantar “a paz, o pão, saúde, educação” e, sobretudo aquela do “tractor, trabalha a todo o vapor...” Ou ainda as cantigas revolucionárias do GAC (Grupo de Acção Revolucionária), próximo da UDP, liderado pelo José Mário Branco. Dessas cantigas, recordo “A Herdade do Vale Fanado”, cuja letra sabemos de cor. Ainda hoje, de vez em quando, cantamos essa cantiga em coro, eu, a Mila, a Luisa, o Jorge e a Bela... Grande gozo!...
Foi por essa altura que comecei a coleccionar auto-colantes dos inúmeros partidos políticos, associações, sindicatos, movimentos associativos, manifestações, listas associativas e afins. Fui-os colando em folhas de cartolina preta e guardando num dossier daqueles grossos. Juntei quase dois mil. Mal sabia eu que essa gloriosa colecção acabaria por ir parar à mãos de um espanhol, vinte e cinco anos depois...
Nunca fiz uma verdadeira colecção, mas sempre gostei de juntar coisas. Neste momento, a única “colecção” que mantenho é a das latas de bebidas diversas. Graças ao Roby Amorim e aos seus textos sobre a origem das palavras, fiquei a saber que fui filuminista (coleccionador de caixas de fósforos), fibulanomista (de botões), cartófilo (de bilhetes postais), nicófilo (de invólucros de cigarros), enosemiofilista (de rótulos de garrafas), copoclefilistas (de porta chaves). Além disto tudo, ainda coleccionei selos, garrafas de gin vazias, miniaturas de garrafas de bebidas alcoólicas, tinteiros, rádios antigos, isqueiros tipo Bic, esferográficas, moedas e... de girinos...
É verdade, de girinos... Aí pelos 13 anos, andava no 3º ou 4º ano do liceu e entusiasmava-me com as Ciências Naturais. Peguei num daqueles livros que o meu pai arranjava lá no emprego e fiz uma espécie de enciclopédia animal, graças aos cromos de várias colecções e às ilustrações dos livros de Ciências. A tal obsessão pelas listagens, fez com que soubesse de cor a taxinomia toda, as classes, as ordens, as famílias, as espécies. Ora, nas traseiras da minha casa da Montepio Geral, num terreno largo que se estendia até à linha férrea, era frequente, no Inverno, formar-se um extenso charco, que pululava de rãs. Arranjei um daqueles coadores de chá e passei tardes intermináveis a caçar girinos, que depois trazia para casa e colocava nuns grandes frascos de vidro, que continham cacau em pó, para juntar ao leite. Observava, com interesse, o desenvolvimento dos girinos e a sua rápida transformação em rãs, que depois transportava para outro recipiente, onde tentava recriar o seu habitat, com raminhos de árvores e pedras – um nojo, que ocupava grande parte da varanda das traseiras, para desespero do meu pai, que achava aquilo uma tolice, e sob o olhar condescendente (sempre!) da minha mãe que, com um espírito mais aberto, achava que aquilo fazia parte da minha educação. E fazia! Ela é que tinha razão!...
E quanto ao meu desemprego?
Desempregado, eu?!…
Não se esqueçam que estávamos em pleno PREC (processo revolucionário em curso, para quem já não se recorda). E portanto, ia eu a caminho já não me lembro de onde, ali para os lados da Estefânia, quando deparo com o Joaquim Letria, que me saudou e me disse que, na televisão, toda a gente sentia a minha falta e por que é que não voltas e eu agora é que mando naquilo e mais não sei o quê. Sinceramente, já não me lembro das suas palavras exactas mas, o que é certo é que, logo no dia seguinte, me apresentei na redacção do Telejornal. O meu regresso foi muito aplaudido pelos colegas todos e, no que respeita à Administração, tudo se passou como se eu tivesse ido ali à esquina comprar um maço de cigarros e me tivesse demorado um pouco mais do que o habitual. Conclusão: no mês de Dezembro de 1974 recebi, além do ordenado do Jornal de Notícias, o ordenado da RTP, bem como o respectivo subsídio de Natal! Para cúmulo, poucos dias depois de ter regressado à RTP, recebi uma carta do Jornal de Notícias: eu e o Zé tínhamos sido readmitidos! Eu não aceitei; deixei-me estar na televisão onde – como se comprovara – o meu trabalho era apreciado; mas o Zé aproveitou e continuou, durante alguns anos, a fazer reportagens para o diário nortenho. O mais curioso em tudo isto – e sintomático do período que se vivia em Portugal, é que ninguém, na Administração da RTP, deu pela minha falta durante todo o mês de Dezembro. Nunca perguntei ao Álvaro Guerra o que, de facto, acontecera, mas suspeito que o fulano nem deve ter lido a minha carta de demissão. Portanto, oficialmente, eu nunca saí da RTP – razão pela qual recebi o respectivo salário. E viva o PREC!
Não se ficaram por aqui, no entanto, as surpresas que o PREC me proporcionou. No dia 11 de Março, de manhã, estava eu numa aula prática qualquer no Hospital de Santa Maria, quando os aviões começaram a cortar os céus. Era a “inventona” do 11 de Março, transmitida pela RTP, com o Adelino Gomes, de barba cerrada, careca à mostra e restante cabelo pelos ombros, a entrevistar os que atacavam e os que defendiam o RALIS, frente a frente. Corri para a redacção. Era o meu segundo golpe de Estado (o primeiro tinha sido a 28 de Setembro, mas não tinha tido tanta graça). Sinceramente, já não sei dizer quem ganhou porque, a bem dizer, também ninguém sabe quem eram os bons e quem eram os maus. O que eu sei é que, depois dos ânimos se acalmarem, houve reordenamento das forças dentro da RTP e eu fui nomeado chefe da secção internacional. O meu segundo golpe de Estado proporcionava-me, assim, a minha primeira promoção.
Entretanto, já nascera “O Coiso”.
As reuniões preparatórias decorreram na redacção do República e, sobretudo, na tasca que ficava logo ali. O Álvaro Belo Marques, que fumava muito, o Mário-Henrique, que estava sempre a fumar Kentucky, o Rui Lemus, que fumava morigeradamente (e, de preferência, Gitannes), eu, que nessa altura ultrapassava um maço por dia, nos dias em que havia reunião, e o Zé, que apanhava com o fumo dos outros todos – andávamos todos com vontade de lançar um semanário humorístico, aproveitando a experiência do suplemento “Fim de Semana” do República.
Antes de nos lançarmos para um semanário com existência independente do República, começámos por fazer um ensaio, a que intitulámos “O Nabo” e que, no fundo, se resumia às páginas centrais do Fim de Semana. O número um de “O Nabo”, saiu no dia 18 de Janeiro de 1975 e afirmava ser “a folha de maior expansão no República”. O Belo Marques pagava mil escudos ao Zé e a mim pela brincadeira.
E o qual era o conteúdo de “O Nabo”?
Enfim, brincadeiras absurdas, notícias inventadas, fotomontagens, anúncios falsos e outras macacadas. Por exemplo, a notícia de caixa alta do primeiro número era “Conselho de Ministros aprova a lei da gravidade” e dizia-se, a dado passo: “portanto, chama-se a atenção de todos os cidadãos, uma vez que, a partir de amanhã, todos os objectos tenderão a cair. Esta lei da gravidade foi abusivamente utilizada pelo regime fascista e obtém, agora, finalmente, a sua consagração democrática.”
Isto de brincar com o regime fascista não era muito bem visto naqueles tempos de PREC, nomeadamente pelos sorumbáticos revolucionários que trabalhavam no República. O regime fascista tinha espancado e torturado os democratas, tinha enviado os filhos do povo para a morte nas colónias, portanto, não se devia brincar com coisas sérias. A nossa vontade era exactamente brincar com as coisas com as quais se não devia brincar: a religião, a morte, as instituições, a família, o sexo e, claro, a política.
O número três de “O Nabo”, já tinha ficha técnica, que rezava assim: “O nabo-mor: Artur Couto e Santos; o nabo seguinte: José António Pinheiro; o nabo-poeta: Mário-Henrique Leiria; o nabograma: Pedro Foyos (que era o tipo que fazia o trabalho gráfico)”. A notícia de caixa alta desse número era “Rebentou a Revolução Francesa” e era ilustrada por um fotografia de três astronautas, com a seguinte legenda: “alguns dos revolucionários que levaram a burguesia à conquista do poder, para a construção da sociedade com classes”. Provocadores, era o que nós éramos. Os trabalhadores do República olhavam-nos de lado – eles a lutarem pela sociedade sem classes e a nós a gozarmos com aquilo tudo. Uns anarcas!
Fizemos sete números de “O Nabo”, o último dos quais saiu no dia 1 de Março. A experiência tinha corrido bem. Estávamos preparados para “O Coiso”. Devo dizer, para ser rigoroso, que o nome do semanário foi escolhido graças à Mila, depois de longas discussões. Já não me recordo que outros nomes foram aventados, mas acabou por ficar “O Coiso”, título que a Mila ainda hoje dá a tudo de cujo nome se não recorda (“Passa-me aí o coiso”, “sempre foste buscar o coiso?”, “a que horas é que é o coiso?”, “qual era a cor daquele coiso?”, “o coiso não terá posto o coiso em cima da cama?”, e assim por diante). Já não sei quem foi que, de repente, numa daquelas reuniões fumegantes, terá dito “O Coiso”. E logo todos concordaram, até porque a Mila participava muitas vezes nestas reuniões. Toda esta gente foi muito importante na minha vida, não só pelas razões expostas, mas também porque foram nossos amigos, amigos do Artur e da Mila ou, como costumávamos dizer, da Milartur.
O primeiro número de “O Coiso” saiu no dia 7 de Março, custava cinco escudos e a sua ficha técnica dizia:

“Director: Rui Lemus; Chefe de Redacção: Mário-Henrique Leiria; Colaboradores: José António Pinheiro, Artur Couto e Santos, Carlos Barradas, Carlos Brito, Rui de Melo, Álvaro Belo Marques, Magalhães dos Santos, Wilson Gasosa (um dos pseudónimos do Mário), Fred, vários incógnitos, alguns involuntários”.

A impressão e composição de “O Coiso” era nas oficinas gráficas do Diário Popular e, oficialmente, a redacção era nas instalações do República. E digo oficialmente porque, na realidade, a redacção era em nossa casa. Das dezasseis páginas do primeiro número, sete eram minhas e do Zé, a mil paus cada uma. Textos escritos a grande velocidade na tal Olivetti e fotografias roubadas a várias revistas (Paris Match, Time, Life, Newsweek, etc), truncadas, montadas e legendadas por nós os três, em cima da nossa mesa de refeições. Célebre mesa essa. Tampo redondo, de aparite muito compactada e lacada a vermelho, pernas metálicas; comprada por tuta e meia no Brás e Brás; foi para o lixo no ano passado; resistiu, portanto, 25 anos!
A técnica era a seguinte: arranjávamos montes de revistas antigas, no República, junto dos amigos, nos alfarrabistas, juntávamo-nos lá em casa, perante o olhar atónito do Pedrocas e desatávamos a recortar fotografias, eu, a Mila e o Zé; depois, juntávamos as fotos mais engraçadas, ou insólitas, ou que nos despertassem logo uma ideia, atirávamos com elas para cima da mesa redonda e começávamos, logo ali, a engendrar um enredo que ligasse as diversas fotografias. Juro que nos ríamos muito mais com o que íamos inventando do que com o resultado final. Aquilo, sim, é que era um fartar de rir até de madrugada. No fim pegávamos naquilo tudo e levávamos para o República, onde o Rui Lemus adicionava as fábulas do Vovô Gasosa, as receitas de cozinha (O Coizinheiro) que o Mário escrevia, os desenhos do Barradas e do Fred e, mais tarde, do Júlio Quirino, e fazia-se a paginação. Seguidamente, levava-se o material todo para o Diário Popular, assistíamos ao trabalho dos linotipistas e, sempre que havia um buraco em branco, sem texto ou sem fotografia, o Barradas fazia logo ali um boneco; e por lá ficávamos até “O Coiso” sair da rotativa. O número três de “O Coiso” ficou famoso e até foi falado na imprensa estrangeira. Saiu no dia 21 de Março, dez dias depois da tal “inventona”. O então general Spínola tinha fugido para o Brasil. Arranjámos uma foto de um tipo em fato de banho, com a musculatura em evidência e com uma miúda ao lado, e espetámos com a cara do Spínola, de boné de general e tudo, em cima da cara do matulão. Acrescentámos o título a vermelho: “Copacabana tem novo cabo do mar” e foi essa a primeira página desse número de “O Coiso”.
O divertimento durou apenas onze semanas. A primeira página do último número de “O Coiso” trazia, em letras garrafais: “O único jornal que mente deliberadamente”, que era uma espécie de crítica aos outros jornais, ditos sérios que, naqueles tempos revolucionários, talvez mentissem sem querer…
Ao certo, não sei por que razão “O Coiso” acabou. Tanto quanto sei, as vendas não eram más. O Álvaro Belo Marques chegou a dizer que “O Coiso” vendia mais que o República. Talvez por que a “linha editorial” do nosso jornal não fosse do inteiro agrado da comissão de trabalhadores do República, talvez a situação económica do jornal já não fosse a melhor, talvez a luta política dentro do jornal se tivesse agudizado tanto que a bagunça já fosse inultrapassável e “O Coiso” só atrapalhava. Como alguns se devem recordar, o República que, inicialmente, era propriedade do Gustavo Suromenho e do Raul Rego, ligados à maçonaria e ao PS (se não for bem assim, peço desculpa), acabou por ser ocupado pelos trabalhadores conotados com a extrema esquerda e passou a ser um jornal seríssimo, chatíssimo, super-revolucionário. Fechou passado pouco tempo.


1975 – Almoço dos colaboradores de “O Coiso”, algures no Bairro Alto. À esquerda, em 1º plano, o Carlos Barradas, seguido do Mário-Henrique, o Zé Tó, a Mizé, a Mila e eu. À direita, o Rui Lemus, quatro tipos cujo nome me escapa, mas que trabalhavam no República e, lá ao fundo, de bigode, o Belo Marques.

Em Novembro de 1976, ainda lançámos mais dois números de “O Coiso”, graças ao apoio de uns quantos esquerdistas amigos do Mário-Henrique. Foram dois números completamente malucos. Transcrevo a ficha técnica:

“O Coiso – órgão oficial das agências funerárias; Director – Carlos Vidigal (quem seria este?); Propriedade: João das Regras; Colaboradores voluntários: bombeiros; Observadores: Júlio Quirino, Carlos Barradas, Cooperativa Buques e Smites (éramos nós), Painted Stones and Company, CIA, NATO, KGB e Pacto de Varsóvia, Afonso Henriques, Pantera Cor-de-Barreto, EFTA e CEE, dois ursos e um cubo, uma raiz quadrada e um integral de Lebesgue, António Crómio, Joaquim Beterraba, Antunes Candelário, Jorge Bisnaga, Vovô Gasosa (o Mário, claro), Álvaro Paz, e um grupo de doentes do Hospital de S. José, serviço 7, cama 2 e um conjunto finito, mensurável de botijas; De Coração: Sir Aiva (este era o Jorge, o namorado da irmã da Mila!… toda a família ajudava…) e Josefa de Óbidos; Desporto: Montenegro; Colaboradores involuntários: os tipo do costume”.

Desta segunda edição de “O Coiso”, que custava dez escudos, não se deve ter vendido exemplar nenhum, se é que algum chegou a ser distribuído, a não ser pelos amigos…
A experiência de “O Coiso” foi inigualável. Nunca mais participei numa equipa tão louca, tão inventiva, tão divertida como aquela. Mesmo depois, quando fiz parte da equipa do Pão Comanteiga, a coisa já não teve a força e a loucura dos tempos de “O Coiso”. E não me venham dizer que foi porque eu tinha 22 anos, porque a Mila tinha 22 anos, porque o Zé tinha 23 anos, porque o Barradas, o Fred e o Quirino também eram putos, porque tanto o Belo Marques, como o Mário e como o Lemus, eram já uns homenzinhos e a loucura era semelhante. Foi um grupo que se juntou numa determinada altura da vida e da História e que, mesmo se se pudesse juntar novamente, nunca saberia ao mesmo.
Terminado “O Coiso”, ficou a amizade, mas as vidas de cada um de nós foi tomando diversos rumos. O Belo Marques, depois da ocupação do República pelos “trabalhadores”, partiu para Moçambique, como cooperante. O Lemus, foi para Estocolmo, como adido de imprensa da embaixada portuguesa na Suécia. O Carlos Barradas, que entretanto fizera um curso de realização, foi trabalhar para a RTP. O Zé continuou no Jornal de Notícias e eu, no Telejornal. Mas continuámos a escrever, claro. No entanto, nunca mais houve aquelas reuniões malucas em nossa casa, em que nos ríamos até nos doer os maxilares, sabem como é?
E as aulas de Medicina? Pois lá iam indo, sobretudo graças à Mila, que eu praticamente só lá punha os pés nas práticas. Mas acreditem que não tirei o curso por correspondência; estudava que me fartava e até nem tive umas notas muito más… Depois de um 13 a Biologia e a Física Médica, e um 12 a Química Médica, no primeiro ano, consegui um mísero 11 a Anatomia Descritiva (de nada me serviram as tais aulas de anatomia comparada pelo método de Braille), um 12 a Fisiologia, um 14 a Anatomia Topográfica, um 16 a Histologia e o tal 19 a Química Fisiológica, tudo no segundo ano. O terceiro ano, apanhado a meio pelo 25 de Abril, foi só “aptos” a Bacteriologia, Anatomia Patológica, Farmacologia e Psicologia, além de uma passagem administrativa a Patologia Clínica, cujo professor foi um dos saneados pela revolução. No quarto ano também limpei tudo com “aptos”: Propedêutica Médica, Propedêutica Cirúrgica, Semiótica Radiológica, Higiene e Medicina Social (nem me lembro que raio era isto!) e Ortopedia. E já estava no quinto ano, caramba!
Entretanto, o Zé conhecera a Mizé, uma colega que também estudava Matemática. Voltámos a ser quatro. Foi fácil aceitar a Mizé no grupo e parecia que, finalmente, o Zé tinha acertado na companheira. O número cinco da “Nêspera Redonda” saiu em Agosto de 1975 e a Mizé também contribuiu para a sua feitura. Como tudo era intenso e rápido naqueles tempos. Em Outubro, no número seis da nossa publicação de dois exemplares únicos, já falávamos em viver juntos.
Como éramos contra as instituições, não fomos ao casamento do Zé e da Mizé. Já tínhamos ido ao nosso, obrigados, porque éramos menores, lembram-se? Portanto, acho que os nossos amigos se casaram algures em 1975, não sei bem quando, e foram viver para um apartamento em Oeiras. Mas era difícil vivermos tão longe uns dos outros. As aulas e o trabalho jornalístico não deixava praticamente tempo para nos juntarmos. Começou, então, a germinar a ideia de vivermos na mesma casa. Em Outubro começámos a procurar. Em Dezembro, vivíamos todos no Algueirão.
Mas repito que o pequeno apartamento da Rua Inácio de Sousa me deixou boas recordações:. A Mila a lavar roupa no tanque, na varanda (máquina de lavar roupa? Isso era para a burguesia!), o Pedro e a Sara, uma miúda da idade dele que vivia no apartamento ao lado, a brincarem, o Pedro de cabelos longos e levemente ondulados (parece uma menina!…), com os olhos da cor da Mila, ou de punho erguido junto a uma inscrição de parede do Partido Revolucionário do Proletariado, o nosso sofá verde, onde dormíamos, com um comboio bordado a lã, que a Mila aplicou, o meu gravador vertical de fita TEAK (acho eu…), a nossa estante de aparite, que teve várias cores, conforme nos dava na gana, e que se foi cada vez mais pequena para os livros e dossiers (“Já não sei onde é que hei-de meter os livros!” – é uma das minhas frases preferidas), a tal mesa redonda, vermelha…
E o gin tónico...


1975 –Pedro na varanda do nosso 1º apartamento.

Antes do jantar, colocava o copo sobre a primeira prateleira da estante, deitava-lhe três ou quatro dedos de gin, is buscar o gelo ao mini-frigorífico na kitchinet, juntava três cubos de gelo, enchia o resto do copo com água tónica bem gelada, dispensava a rodela de limão, que o orçamento era curto, acendia um cigarro, bebia um longo golo do precioso líquido e puxava uma profunda passa. E era o paraíso! Certo dia, tinha eu deitado o gin no copo e ido ao frigorífico buscar o gelo, quando o Pedro, certamente pensando que o copo tinha água, estendeu as mãozitas, pegou no copo e, antes que eu conseguisse fazer alguma coisa, bebeu o gin de um trago. Imaginam a cara dele? Não imaginam. Era um misto de surpresa e terror: como é que a água podia saber tanto a flores embebidas em álcool? Corremos com ele para a casa de banho e tentámos, por todos os meios, obrigá-lo a vomitar. Até azeite lhe demos a beber.. Mas o puto, nada. Manteve o gin lá dentro e passou o resto da tarde muito contente, embora um pouco tonto. Bêbado, claro.
Com este episódio percebi que o Pedro começara a crescer: já chegava à primeira prateleira da estante…

 



Próximo capítulo: "O Algueirão" (1975/76)

 

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