9. O Coiso (1975)
Em 1974 e 1975 aprendi tudo o que havia a aprender sobre
política.
Livros que comprei em 1974: “Progresso Social e Liberdade”
(Marcuse), “Democracia” (António Sérgio),
“Sobre a Religião”, “As Teses de
Abril”, “Esquerdismo, Doença Infantil
do Comunismo”, “Como Iludir o Povo”, “O
Direito das Nações Disporem de Si Próprias”
e “O Trabalho do Partido entre as Massas” (Lenine),
“Sobre a Literatura e a Arte” (Lenine e Marx),
“Manifesto do Partido Comunista” (Marx e Engels),
“Acerca da Contradição” (Mao-Tsé
Tung), “O Capital” (Marx).
Que tal? Foi um verdadeiro curso intensivo, embora também
tenha adquirido outros livros que me marcaram, nomeadamente,
“O Outono em Pequim”, do Boris Vian e, claro,
“Os Novos Contos do Gin Tónico”, do Mário-Henrique
Leiria.
Vale a pena ainda citar outros livros comprados nesses dois
anos: “Feitiçaria” (Bulgakov), “Nadja”
e “O Amor Louco” (Andre Breton), “As Aventuras
do João Sem Medo” (José Gomes Ferreira),
“De Ombro na Ombreira” (Alexandre O’Neill),
“A Intervenção Surrealista” (Mário
Cesariny), “A Guerra dos Mundos” (H.G. Wells),
“Todos os Fogos o Fogo” (Julio Cortazar), “Os
Passos em Volta” (Herberto Helder), “O Copo
dos Dados” (Max Jacobs).
Política, surrealismo e poesia, dominavam.
O que continuava a dominar era o bom senso, se é
que se pode ter bem senso aos 21 anos, com uma revolução
em curso. E o sentido de humor, claro. Por exemplo, não
conseguia olhar para um cartaz do MRPP sem me rir. Aquelas
figuras altivas, de homens e mulheres que se pretendia que
fossem do povo, empunhando bandeiras vermelhas e avançando,
resolutas, no caminho da revolução, sempre
lideradas por soldados e marinheiros, estudantes e intelectuais,
que formavam a elite esclarecida, a guarda avançada
dos operários e camponeses, todos eles unidos por
palavras de ordem como “Em frente pela revolução
popular!” ou “Nem mais um só soldado
para as colónias!” – todo esse folclore
era, como diria o Mário-Henrique, um fartar de rir,
pá!… Um dos meus divertimentos era pegar nos
cartazes do MRPP e introduzir-lhe algumas pequenas alterações
perversas como, por exemplo, “Em frente pela porta
das traseiras!” – frase que, mais tarde, tive
oportunidade de pintar nas paredes do quintal da nossa casa
do Algueirão. E que dizer das canções
revolucionárias da época, que ainda hoje recordamos,
com um sorriso nos lábios... O Sérgio Godinho
a cantar “a paz, o pão, saúde, educação”
e, sobretudo aquela do “tractor, trabalha a todo o
vapor...” Ou ainda as cantigas revolucionárias
do GAC (Grupo de Acção Revolucionária),
próximo da UDP, liderado pelo José Mário
Branco. Dessas cantigas, recordo “A Herdade do Vale
Fanado”, cuja letra sabemos de cor. Ainda hoje, de
vez em quando, cantamos essa cantiga em coro, eu, a Mila,
a Luisa, o Jorge e a Bela... Grande gozo!...
Foi por essa altura que comecei a coleccionar auto-colantes
dos inúmeros partidos políticos, associações,
sindicatos, movimentos associativos, manifestações,
listas associativas e afins. Fui-os colando em folhas de
cartolina preta e guardando num dossier daqueles grossos.
Juntei quase dois mil. Mal sabia eu que essa gloriosa colecção
acabaria por ir parar à mãos de um espanhol,
vinte e cinco anos depois...
Nunca fiz uma verdadeira colecção, mas sempre
gostei de juntar coisas. Neste momento, a única “colecção”
que mantenho é a das latas de bebidas diversas. Graças
ao Roby Amorim e aos seus textos sobre a origem das palavras,
fiquei a saber que fui filuminista (coleccionador de caixas
de fósforos), fibulanomista (de botões), cartófilo
(de bilhetes postais), nicófilo (de invólucros
de cigarros), enosemiofilista (de rótulos de garrafas),
copoclefilistas (de porta chaves). Além disto tudo,
ainda coleccionei selos, garrafas de gin vazias, miniaturas
de garrafas de bebidas alcoólicas, tinteiros, rádios
antigos, isqueiros tipo Bic, esferográficas, moedas
e... de girinos...
É verdade, de girinos... Aí pelos 13 anos,
andava no 3º ou 4º ano do liceu e entusiasmava-me
com as Ciências Naturais. Peguei num daqueles livros
que o meu pai arranjava lá no emprego e fiz uma espécie
de enciclopédia animal, graças aos cromos
de várias colecções e às ilustrações
dos livros de Ciências. A tal obsessão pelas
listagens, fez com que soubesse de cor a taxinomia toda,
as classes, as ordens, as famílias, as espécies.
Ora, nas traseiras da minha casa da Montepio Geral, num
terreno largo que se estendia até à linha
férrea, era frequente, no Inverno, formar-se um extenso
charco, que pululava de rãs. Arranjei um daqueles
coadores de chá e passei tardes intermináveis
a caçar girinos, que depois trazia para casa e colocava
nuns grandes frascos de vidro, que continham cacau em pó,
para juntar ao leite. Observava, com interesse, o desenvolvimento
dos girinos e a sua rápida transformação
em rãs, que depois transportava para outro recipiente,
onde tentava recriar o seu habitat, com raminhos de árvores
e pedras – um nojo, que ocupava grande parte da varanda
das traseiras, para desespero do meu pai, que achava aquilo
uma tolice, e sob o olhar condescendente (sempre!) da minha
mãe que, com um espírito mais aberto, achava
que aquilo fazia parte da minha educação.
E fazia! Ela é que tinha razão!...
E quanto ao meu desemprego?
Desempregado, eu?!…
Não se esqueçam que estávamos em pleno
PREC (processo revolucionário em curso, para quem
já não se recorda). E portanto, ia eu a caminho
já não me lembro de onde, ali para os lados
da Estefânia, quando deparo com o Joaquim Letria,
que me saudou e me disse que, na televisão, toda
a gente sentia a minha falta e por que é que não
voltas e eu agora é que mando naquilo e mais não
sei o quê. Sinceramente, já não me lembro
das suas palavras exactas mas, o que é certo é
que, logo no dia seguinte, me apresentei na redacção
do Telejornal. O meu regresso foi muito aplaudido pelos
colegas todos e, no que respeita à Administração,
tudo se passou como se eu tivesse ido ali à esquina
comprar um maço de cigarros e me tivesse demorado
um pouco mais do que o habitual. Conclusão: no mês
de Dezembro de 1974 recebi, além do ordenado do Jornal
de Notícias, o ordenado da RTP, bem como o respectivo
subsídio de Natal! Para cúmulo, poucos dias
depois de ter regressado à RTP, recebi uma carta
do Jornal de Notícias: eu e o Zé tínhamos
sido readmitidos! Eu não aceitei; deixei-me estar
na televisão onde – como se comprovara –
o meu trabalho era apreciado; mas o Zé aproveitou
e continuou, durante alguns anos, a fazer reportagens para
o diário nortenho. O mais curioso em tudo isto –
e sintomático do período que se vivia em Portugal,
é que ninguém, na Administração
da RTP, deu pela minha falta durante todo o mês de
Dezembro. Nunca perguntei ao Álvaro Guerra o que,
de facto, acontecera, mas suspeito que o fulano nem deve
ter lido a minha carta de demissão. Portanto, oficialmente,
eu nunca saí da RTP – razão pela qual
recebi o respectivo salário. E viva o PREC!
Não se ficaram por aqui, no entanto, as surpresas
que o PREC me proporcionou. No dia 11 de Março, de
manhã, estava eu numa aula prática qualquer
no Hospital de Santa Maria, quando os aviões começaram
a cortar os céus. Era a “inventona” do
11 de Março, transmitida pela RTP, com o Adelino
Gomes, de barba cerrada, careca à mostra e restante
cabelo pelos ombros, a entrevistar os que atacavam e os
que defendiam o RALIS, frente a frente. Corri para a redacção.
Era o meu segundo golpe de Estado (o primeiro tinha sido
a 28 de Setembro, mas não tinha tido tanta graça).
Sinceramente, já não sei dizer quem ganhou
porque, a bem dizer, também ninguém sabe quem
eram os bons e quem eram os maus. O que eu sei é
que, depois dos ânimos se acalmarem, houve reordenamento
das forças dentro da RTP e eu fui nomeado chefe da
secção internacional. O meu segundo golpe
de Estado proporcionava-me, assim, a minha primeira promoção.
Entretanto, já nascera “O Coiso”.
As reuniões preparatórias decorreram na redacção
do República e, sobretudo, na tasca que ficava logo
ali. O Álvaro Belo Marques, que fumava muito, o Mário-Henrique,
que estava sempre a fumar Kentucky, o Rui Lemus, que fumava
morigeradamente (e, de preferência, Gitannes), eu,
que nessa altura ultrapassava um maço por dia, nos
dias em que havia reunião, e o Zé, que apanhava
com o fumo dos outros todos – andávamos todos
com vontade de lançar um semanário humorístico,
aproveitando a experiência do suplemento “Fim
de Semana” do República.
Antes de nos lançarmos para um semanário com
existência independente do República, começámos
por fazer um ensaio, a que intitulámos “O Nabo”
e que, no fundo, se resumia às páginas centrais
do Fim de Semana. O número um de “O Nabo”,
saiu no dia 18 de Janeiro de 1975 e afirmava ser “a
folha de maior expansão no República”.
O Belo Marques pagava mil escudos ao Zé e a mim pela
brincadeira.
E o qual era o conteúdo de “O Nabo”?
Enfim, brincadeiras absurdas, notícias inventadas,
fotomontagens, anúncios falsos e outras macacadas.
Por exemplo, a notícia de caixa alta do primeiro
número era “Conselho de Ministros aprova a
lei da gravidade” e dizia-se, a dado passo: “portanto,
chama-se a atenção de todos os cidadãos,
uma vez que, a partir de amanhã, todos os objectos
tenderão a cair. Esta lei da gravidade foi abusivamente
utilizada pelo regime fascista e obtém, agora, finalmente,
a sua consagração democrática.”
Isto de brincar com o regime fascista não era muito
bem visto naqueles tempos de PREC, nomeadamente pelos sorumbáticos
revolucionários que trabalhavam no República.
O regime fascista tinha espancado e torturado os democratas,
tinha enviado os filhos do povo para a morte nas colónias,
portanto, não se devia brincar com coisas sérias.
A nossa vontade era exactamente brincar com as coisas com
as quais se não devia brincar: a religião,
a morte, as instituições, a família,
o sexo e, claro, a política.
O número três de “O Nabo”, já
tinha ficha técnica, que rezava assim: “O nabo-mor:
Artur Couto e Santos; o nabo seguinte: José António
Pinheiro; o nabo-poeta: Mário-Henrique Leiria; o
nabograma: Pedro Foyos (que era o tipo que fazia o trabalho
gráfico)”. A notícia de caixa alta desse
número era “Rebentou a Revolução
Francesa” e era ilustrada por um fotografia de três
astronautas, com a seguinte legenda: “alguns dos revolucionários
que levaram a burguesia à conquista do poder, para
a construção da sociedade com classes”.
Provocadores, era o que nós éramos. Os trabalhadores
do República olhavam-nos de lado – eles a lutarem
pela sociedade sem classes e a nós a gozarmos com
aquilo tudo. Uns anarcas!
Fizemos sete números de “O Nabo”, o último
dos quais saiu no dia 1 de Março. A experiência
tinha corrido bem. Estávamos preparados para “O
Coiso”. Devo dizer, para ser rigoroso, que o nome
do semanário foi escolhido graças à
Mila, depois de longas discussões. Já não
me recordo que outros nomes foram aventados, mas acabou
por ficar “O Coiso”, título que a Mila
ainda hoje dá a tudo de cujo nome se não recorda
(“Passa-me aí o coiso”, “sempre
foste buscar o coiso?”, “a que horas é
que é o coiso?”, “qual era a cor daquele
coiso?”, “o coiso não terá posto
o coiso em cima da cama?”, e assim por diante). Já
não sei quem foi que, de repente, numa daquelas reuniões
fumegantes, terá dito “O Coiso”. E logo
todos concordaram, até porque a Mila participava
muitas vezes nestas reuniões. Toda esta gente foi
muito importante na minha vida, não só pelas
razões expostas, mas também porque foram nossos
amigos, amigos do Artur e da Mila ou, como costumávamos
dizer, da Milartur.
O primeiro número de “O Coiso” saiu no
dia 7 de Março, custava cinco escudos e a sua ficha
técnica dizia:
“Director: Rui Lemus; Chefe de Redacção:
Mário-Henrique Leiria; Colaboradores: José
António Pinheiro, Artur Couto e Santos, Carlos Barradas,
Carlos Brito, Rui de Melo, Álvaro Belo Marques, Magalhães
dos Santos, Wilson Gasosa (um dos pseudónimos do
Mário), Fred, vários incógnitos, alguns
involuntários”.
A impressão e composição de “O
Coiso” era nas oficinas gráficas do Diário
Popular e, oficialmente, a redacção era nas
instalações do República. E digo oficialmente
porque, na realidade, a redacção era em nossa
casa. Das dezasseis páginas do primeiro número,
sete eram minhas e do Zé, a mil paus cada uma. Textos
escritos a grande velocidade na tal Olivetti e fotografias
roubadas a várias revistas (Paris Match, Time, Life,
Newsweek, etc), truncadas, montadas e legendadas por nós
os três, em cima da nossa mesa de refeições.
Célebre mesa essa. Tampo redondo, de aparite muito
compactada e lacada a vermelho, pernas metálicas;
comprada por tuta e meia no Brás e Brás; foi
para o lixo no ano passado; resistiu, portanto, 25 anos!
A técnica era a seguinte: arranjávamos montes
de revistas antigas, no República, junto dos amigos,
nos alfarrabistas, juntávamo-nos lá em casa,
perante o olhar atónito do Pedrocas e desatávamos
a recortar fotografias, eu, a Mila e o Zé; depois,
juntávamos as fotos mais engraçadas, ou insólitas,
ou que nos despertassem logo uma ideia, atirávamos
com elas para cima da mesa redonda e começávamos,
logo ali, a engendrar um enredo que ligasse as diversas
fotografias. Juro que nos ríamos muito mais com o
que íamos inventando do que com o resultado final.
Aquilo, sim, é que era um fartar de rir até
de madrugada. No fim pegávamos naquilo tudo e levávamos
para o República, onde o Rui Lemus adicionava as
fábulas do Vovô Gasosa, as receitas de cozinha
(O Coizinheiro) que o Mário escrevia, os desenhos
do Barradas e do Fred e, mais tarde, do Júlio Quirino,
e fazia-se a paginação. Seguidamente, levava-se
o material todo para o Diário Popular, assistíamos
ao trabalho dos linotipistas e, sempre que havia um buraco
em branco, sem texto ou sem fotografia, o Barradas fazia
logo ali um boneco; e por lá ficávamos até
“O Coiso” sair da rotativa. O número
três de “O Coiso” ficou famoso e até
foi falado na imprensa estrangeira. Saiu no dia 21 de Março,
dez dias depois da tal “inventona”. O então
general Spínola tinha fugido para o Brasil. Arranjámos
uma foto de um tipo em fato de banho, com a musculatura
em evidência e com uma miúda ao lado, e espetámos
com a cara do Spínola, de boné de general
e tudo, em cima da cara do matulão. Acrescentámos
o título a vermelho: “Copacabana tem novo cabo
do mar” e foi essa a primeira página desse
número de “O Coiso”.
O divertimento durou apenas onze semanas. A primeira página
do último número de “O Coiso”
trazia, em letras garrafais: “O único jornal
que mente deliberadamente”, que era uma espécie
de crítica aos outros jornais, ditos sérios
que, naqueles tempos revolucionários, talvez mentissem
sem querer…
Ao certo, não sei por que razão “O Coiso”
acabou. Tanto quanto sei, as vendas não eram más.
O Álvaro Belo Marques chegou a dizer que “O
Coiso” vendia mais que o República. Talvez
por que a “linha editorial” do nosso jornal
não fosse do inteiro agrado da comissão de
trabalhadores do República, talvez a situação
económica do jornal já não fosse a
melhor, talvez a luta política dentro do jornal se
tivesse agudizado tanto que a bagunça já fosse
inultrapassável e “O Coiso” só
atrapalhava. Como alguns se devem recordar, o República
que, inicialmente, era propriedade do Gustavo Suromenho
e do Raul Rego, ligados à maçonaria e ao PS
(se não for bem assim, peço desculpa), acabou
por ser ocupado pelos trabalhadores conotados com a extrema
esquerda e passou a ser um jornal seríssimo, chatíssimo,
super-revolucionário. Fechou passado pouco tempo.
1975 – Almoço dos colaboradores de “O
Coiso”, algures no Bairro Alto. À esquerda,
em 1º plano, o Carlos Barradas, seguido do Mário-Henrique,
o Zé Tó, a Mizé, a Mila e eu. À
direita, o Rui Lemus, quatro tipos cujo nome me escapa,
mas que trabalhavam no República e, lá ao
fundo, de bigode, o Belo Marques.
Em Novembro de 1976, ainda lançámos mais
dois números de “O Coiso”, graças
ao apoio de uns quantos esquerdistas amigos do Mário-Henrique.
Foram dois números completamente malucos. Transcrevo
a ficha técnica:
“O Coiso – órgão oficial
das agências funerárias; Director – Carlos
Vidigal (quem seria este?); Propriedade: João das
Regras; Colaboradores voluntários: bombeiros; Observadores:
Júlio Quirino, Carlos Barradas, Cooperativa Buques
e Smites (éramos nós), Painted Stones and
Company, CIA, NATO, KGB e Pacto de Varsóvia, Afonso
Henriques, Pantera Cor-de-Barreto, EFTA e CEE, dois ursos
e um cubo, uma raiz quadrada e um integral de Lebesgue,
António Crómio, Joaquim Beterraba, Antunes
Candelário, Jorge Bisnaga, Vovô Gasosa (o Mário,
claro), Álvaro Paz, e um grupo de doentes do Hospital
de S. José, serviço 7, cama 2 e um conjunto
finito, mensurável de botijas; De Coração:
Sir Aiva (este era o Jorge, o namorado da irmã da
Mila!… toda a família ajudava…) e Josefa
de Óbidos; Desporto: Montenegro; Colaboradores involuntários:
os tipo do costume”.
Desta segunda edição de “O Coiso”,
que custava dez escudos, não se deve ter vendido
exemplar nenhum, se é que algum chegou a ser distribuído,
a não ser pelos amigos…
A experiência de “O Coiso” foi inigualável.
Nunca mais participei numa equipa tão louca, tão
inventiva, tão divertida como aquela. Mesmo depois,
quando fiz parte da equipa do Pão Comanteiga, a coisa
já não teve a força e a loucura dos
tempos de “O Coiso”. E não me venham
dizer que foi porque eu tinha 22 anos, porque a Mila tinha
22 anos, porque o Zé tinha 23 anos, porque o Barradas,
o Fred e o Quirino também eram putos, porque tanto
o Belo Marques, como o Mário e como o Lemus, eram
já uns homenzinhos e a loucura era semelhante. Foi
um grupo que se juntou numa determinada altura da vida e
da História e que, mesmo se se pudesse juntar novamente,
nunca saberia ao mesmo.
Terminado “O Coiso”, ficou a amizade, mas as
vidas de cada um de nós foi tomando diversos rumos.
O Belo Marques, depois da ocupação do República
pelos “trabalhadores”, partiu para Moçambique,
como cooperante. O Lemus, foi para Estocolmo, como adido
de imprensa da embaixada portuguesa na Suécia. O
Carlos Barradas, que entretanto fizera um curso de realização,
foi trabalhar para a RTP. O Zé continuou no Jornal
de Notícias e eu, no Telejornal. Mas continuámos
a escrever, claro. No entanto, nunca mais houve aquelas
reuniões malucas em nossa casa, em que nos ríamos
até nos doer os maxilares, sabem como é?
E as aulas de Medicina? Pois lá iam indo, sobretudo
graças à Mila, que eu praticamente só
lá punha os pés nas práticas. Mas acreditem
que não tirei o curso por correspondência;
estudava que me fartava e até nem tive umas notas
muito más… Depois de um 13 a Biologia e a Física
Médica, e um 12 a Química Médica, no
primeiro ano, consegui um mísero 11 a Anatomia Descritiva
(de nada me serviram as tais aulas de anatomia comparada
pelo método de Braille), um 12 a Fisiologia, um 14
a Anatomia Topográfica, um 16 a Histologia e o tal
19 a Química Fisiológica, tudo no segundo
ano. O terceiro ano, apanhado a meio pelo 25 de Abril, foi
só “aptos” a Bacteriologia, Anatomia
Patológica, Farmacologia e Psicologia, além
de uma passagem administrativa a Patologia Clínica,
cujo professor foi um dos saneados pela revolução.
No quarto ano também limpei tudo com “aptos”:
Propedêutica Médica, Propedêutica Cirúrgica,
Semiótica Radiológica, Higiene e Medicina
Social (nem me lembro que raio era isto!) e Ortopedia. E
já estava no quinto ano, caramba!
Entretanto, o Zé conhecera a Mizé, uma colega
que também estudava Matemática. Voltámos
a ser quatro. Foi fácil aceitar a Mizé no
grupo e parecia que, finalmente, o Zé tinha acertado
na companheira. O número cinco da “Nêspera
Redonda” saiu em Agosto de 1975 e a Mizé também
contribuiu para a sua feitura. Como tudo era intenso e rápido
naqueles tempos. Em Outubro, no número seis da nossa
publicação de dois exemplares únicos,
já falávamos em viver juntos.
Como éramos contra as instituições,
não fomos ao casamento do Zé e da Mizé.
Já tínhamos ido ao nosso, obrigados, porque
éramos menores, lembram-se? Portanto, acho que os
nossos amigos se casaram algures em 1975, não sei
bem quando, e foram viver para um apartamento em Oeiras.
Mas era difícil vivermos tão longe uns dos
outros. As aulas e o trabalho jornalístico não
deixava praticamente tempo para nos juntarmos. Começou,
então, a germinar a ideia de vivermos na mesma casa.
Em Outubro começámos a procurar. Em Dezembro,
vivíamos todos no Algueirão.
Mas repito que o pequeno apartamento da Rua Inácio
de Sousa me deixou boas recordações:. A Mila
a lavar roupa no tanque, na varanda (máquina de lavar
roupa? Isso era para a burguesia!), o Pedro e a Sara, uma
miúda da idade dele que vivia no apartamento ao lado,
a brincarem, o Pedro de cabelos longos e levemente ondulados
(parece uma menina!…), com os olhos da cor da Mila,
ou de punho erguido junto a uma inscrição
de parede do Partido Revolucionário do Proletariado,
o nosso sofá verde, onde dormíamos, com um
comboio bordado a lã, que a Mila aplicou, o meu gravador
vertical de fita TEAK (acho eu…), a nossa estante
de aparite, que teve várias cores, conforme nos dava
na gana, e que se foi cada vez mais pequena para os livros
e dossiers (“Já não sei onde é
que hei-de meter os livros!” – é uma
das minhas frases preferidas), a tal mesa redonda, vermelha…
E o gin tónico...
1975 –Pedro na varanda do nosso 1º apartamento.
Antes do jantar, colocava o copo sobre a primeira prateleira
da estante, deitava-lhe três ou quatro dedos de gin,
is buscar o gelo ao mini-frigorífico na kitchinet,
juntava três cubos de gelo, enchia o resto do copo
com água tónica bem gelada, dispensava a rodela
de limão, que o orçamento era curto, acendia
um cigarro, bebia um longo golo do precioso líquido
e puxava uma profunda passa. E era o paraíso! Certo
dia, tinha eu deitado o gin no copo e ido ao frigorífico
buscar o gelo, quando o Pedro, certamente pensando que o
copo tinha água, estendeu as mãozitas, pegou
no copo e, antes que eu conseguisse fazer alguma coisa,
bebeu o gin de um trago. Imaginam a cara dele? Não
imaginam. Era um misto de surpresa e terror: como é
que a água podia saber tanto a flores embebidas em
álcool? Corremos com ele para a casa de banho e tentámos,
por todos os meios, obrigá-lo a vomitar. Até
azeite lhe demos a beber.. Mas o puto, nada. Manteve o gin
lá dentro e passou o resto da tarde muito contente,
embora um pouco tonto. Bêbado, claro.
Com este episódio percebi que o Pedro começara
a crescer: já chegava à primeira prateleira
da estante…
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