“Os Nossos Desconhecidos”, de Lydia Davis (2023)

Desta autora norte-americana (Massachussets, 1947), já tínhamos lido “Contos Completos”, mas esta nova colectânea é mais, digamos, radical.

Que dizer deste conto, intitulado “Momento Matrimonial de Irritação – Coco”:

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“Após muitos dias, ele disse à mulher:

«Podias fazer alguma coisa com este coco?»

A maioria destes textos são assim, curtos, simples frases ouvidas ao acaso. Outro exemplo, intitulado “Solteirona Melancólica”:

“O que é aquilo,

Tocando-lhe tão delicadamente durante o banho

Ah,

Um marcador de livros a flutuar…”

Na contracapa, diz-se que este livro é “gracioso, engraçado, estranho, surpreendente, improvável, persuasivo e comovedor”.

Estou de acordo com a maioria dos adjectivos.

“O Contrário de Nada” (The Rabbit Hutch), de Tess Gunty (2022)

Começo por dizer que não compreendo a escolha do título em português. “O Contrário de Nada” é, com efeito, tudo e este livro de estreia de Tess Gunty (nascida em 1993 em South Bend, Indiana) tem tudo e mais alguma coisa – mas, na minha opinião “A Coelheira” seria o título adequado. Rabbit hutch é um edifício de apartamentos de renda acessível que fica em Vacca Vale, uma cidade em decadência – e é nesse edifício que habitam as personagens que povoam o livro.

Para romance de estreia, Tess Gunty (que diz que demorou cinco anos a escrevê-lo) revela já uma maturidade digna de uma escritora mais experimentada. Vejamos os seus próximos livros.

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Não se pode dizer que o livro tenha uma personagem principal, no entanto, Blandine é, sem dúvida, a figura central. Uma jovem que viveu em várias famílias de acolhimento e que tem uma obsessão pelas místicas católicas que foram trespassadas pelas espadas ardentes dos querubins. Mas há muitas outras personagens, como os três jovens que dividem o apartamento com Blandine, a vizinha de baixo, Joan, que acaba por ser a única pessoa que vai visitar Blandine ao hospital, no fim do livro, e muitas mais.

A escrita de Tess Gunty é torrencial.

Exemplo na página 20:

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“Tiroteio, assassínio, derrame de crude, terrorismo, incêndio, rapto, bombardeamento, cheias. Vídeo engraçado no qual uma mulher abre a porta do carro e se lhe depara um urso-pardo sentado ao colante a comer o que ela comprou no supermercado. Assassínio, assassínio, guerra. A Internet está enervada.”

O humor e um bom poder de observação, na página 88:

“Ampersand é o único estabelecimento comercial em Vacca Vale que não pertence a um franchising e que se assemelha a uma cafetaria. Aberto por um par de hipsters optimistas, atrai um número desproporcionado de pessoas de boina”.

Outro exemplo na página 135:

“Por falar em escândalos, ouviram que a Kayla fez um pterodáctilo a três gajos do lacrosse? O quê, meu, não sabes o que isso é? São três gajos e uma rapariga. Os tipos poem-se lado a lado, de pé. Ela faz um broche ao tipo do meio e, ao mesmo tempo, bate punhetas aos dos lados. Portanto, parece um pterodáctilo em voo”.

Listas, a autora gosta de listas, como esta, na página 192:

“A sua mãe era irlandesa; a actriz gostava de ouvir cantigas irlandesas, de ouvir irlandeses ler livros, rezar orações. Gostava de ter laranjeiras no quintal, de ver pessoas apanhar fruta. De madressilva, lilases, cloro, trovoadas, pinheiros, sabonete sólido, cabelo por lavar, fósforo, incenso na missa do galo, cigarros, fogueiras, gasolina, peles: gostava dos aromas dessas coisas.”

Ou esta outra lista das alterações provocadas pela gravidez (página 195):

“Um dia, deixou de ser soprano. A pele retesou-se. Sentia os ossos…soltos. O cérebro sofria de um efeito retardatário e balbuciava como se tivesse envelhecido décadas no espaço de semanas. Era como se tivesse apanhado um vírus na colónia de férias: não parava de espirrar, tinha comichões, afrontamentos, perda de memória, suores. Já não conseguia dançar. Desenvolveu uma halitose impossível de controlar. Todos os canos da sua canalização interna avariaram.  As veias no peito começaram a parecer as dos úberes das vacas. A gravidez deu-lhe cabo da pele, separou-lhe o osso pélvico, fez-lhe crescer cabelos no peito, duplicou-lhe o volume de sangue, inchou-lhe as articulações, provocou-lhe acne e melasma e dores de cabeça e náuseas e premonições. Escureceu-lhe o umbigo. A vagina ficou azul”.

Tirando o título, gosto da tradução de Eugénia Antunes (e não sei se a ideia foi dela).

E claro que aconselho fortemente este livro.

“Amy e Isabelle”, de Elizabeth Strout (1998)

Depois de Olivia Kitteridge, já devorámos diversos livros desta escritora norte-americana, nascida em 1956.

Todos têm uma característica comum: descrevem o dia-a-dia de uma pequena comunidade, com as tragédias de cada família, os enganos e desenganos, as perfídias, os sonhos e os pesadelos e tudo sempre tendo como pano de fundo a passagem do tempo, as estações do ano, as árvores e as flores e os pássaros, a chuva e o vento, as noites cálidas e as madrugadas frias.

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O quotidiano de pessoas simples que, vendo bem, não são tão simples assim. No caso deste livro, as protagonistas são uma mãe, Isabelle, e uma filha Amy, e uma pequena comunidade, Shirley Falls. Há um envolvimento de Amy com um professor, há uma criança que desaparece, há uma funcionária da fábrica que é histerectomizada e cujo marido a troca por outra, há muitos segredos escondidos, incluindo por parte da mulher do pastor lá do sítio.

 Ao longo do livro, vamos assistindo ao crescimento da Amy e à sua passagem à idade adulta.

Vale a pena, como todos os restantes livros de Elizabeth Strout.

“Eu Canto e a Montanha Dança”, de Irene Solà (2019)

Irene Solà nasceu em 1990 e é uma jovem escritora e artista plástica catalã.

Este pequeno livro teve grande sucesso e, entre nós, mereceu a classificação máxima dos críticos do Expresso e do Público, o que, por vezes, até nem é uma boa notícia.

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Com efeito, trata-se de um romance inovador, no que respeita ao modo como a autora conta a história destas gentes, das montanhas, dos animais e da natureza, dos Pirinéus catalães, junto à fronteira com a França.

A história é simples, mas, contada pelos vários intervenientes torna-se em algo de diferente, poético, místico e, aqui e ali, com uma boa dose de ternura.

O primeiro narrador é o raio, que vai ceifar a vida de Domenéc. Depois, falam, sucessivamente, as mulheres, Soló, a mãe de Mia e de Hilari, um cão, um urso, Jaume, a própria montanha…

Inovador e, não tenhamos medo das palavras, muito bonito.

Recomendo.

“A Filha Única”, de Guadalupe Nettel (2020)

As escritoras mulheres continuam a dominar.

Ultimamente tenho lido livros de qualidade, escritos por mulheres e cada vez gosto mais delas!

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Este livro é um excelente exemplo. Li-o em dois dias, em duas viagens, de Lisboa ao Porto e vice-versa.

Guadalupe Nettel é uma escritora mexicana que, com este livro, foi finalista do Booker Internacional de 2003.

O livro aborda uma questão complexa: ter ou não ter filhos. É aceitável não os ter?

A história é narrada por Laura, que decidiu não ter filhos e ela conta a história da sua amiga Alina que, depois de ter decidido não ter filhos, acabou por alterar a sua ideia e procurar a natalidade a todo o custo. Acabou por engravidar e enfrentar um grande problema: uma filha com uma doença genética incompatível com a vida, aparentemente.

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Paralelamente, conhecemos a história da vizinha de Laura, viúva recente, e com um filho de oito anos violento e revoltado e ainda a pequena história dos pombos que estão a chocar ovos na varanda de Laura.

Aconselho vivamente!

“Annie John”, de Jamaica Kinkaid (1983)

Jamaica Kinkaid é o pseudónimo da escritora Elaine Potter Richardson, nascida em 1949 na ilha de Antígua e Barbuda. Aos 17 anos, deixou a sua ilha natal e emigrou para Nova Iorque. Acabou por se tornou colaboradora da revista New Yorker e este “Annie John” foi o seu romance de estreia.

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É um pequeno livro que se lê de uma penada e que nos deixa tristes por acabar, ao contrário de muitos calhamaços que agora se escrevem e que não precisavam de ser tão densos e longos.

O livro, quem sabe autobiográfico, conta-nos a história de uma menina, Anni John, que vive numa ilha caribenha com o pai, um homem já velho, e a mãe, muito mais nova que ele e com quem Annie tem uma relação muito próxima – relação que se vai modificando à medida que ela cresce.

Todo o livro é delicioso e escolho este pedaço como podia escolher outro qualquer:

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“Passámos pelo consultório do médico que disse três vezes à minha mãe que eu não precisava de óculos e que lhe recomendou que, se eu sentisse que tinha a vista fraca, tomasse um copo de sumo de cenoura por dia, para a fortalecer. Isto aconteceu quando eu tinha oito anos. todos os dias, no intervalo, corria para o portão da escola, onde a minha mãe me esperava com um copo de sumo de cenoura acabadas de ralar e espremer; depois de beber, corria outra vez para me juntar às minhas colegas. Bem sabia que não tinha problema nenhum nos olhos, mas tinha lido recentemente, no The Schoolgirl’s Own Annual, uma história cuja heroína, uma rapariga poucos anos mais velha do que eu, me impressionara tanto com o modo como estava sempre a endireitar os óculos pequenos e redondos, com armação de tartaruga, que senti que precisava de ter uns óculos iguais”.

Recomendo!

A avó do Ventura queria dois Salazares

O André Ventura é um cómico.

Melhor: o André Ventura é um palhaço.

Dizem os dicionários que palhaço é um actor que tem a intenção de divertir o público e basta ver Ventura, quer no Parlamento, quer agora na campanha eleitoral, para perceber que é essa a sua intenção.

Ao se pôr aos saltinhos, quando alguém da comitiva diz para se porem todos aos saltos, quando fala aos jornalistas, a desdizer o que o seu cabeça de lista acabou de dizer, ao escutar, com aquele ar contristado, o depoimento de um imigrante, voltando-lhe logo as costas – em tudo, Ventura tenta fazer palhaçada.

Mas a maior de todas foi quando se referiu à avó.

Não conheço a avozinha do Ventura, nem sei se a senhora ainda será viva. Caso esteja viva, seria bom que algum jornalista procurasse entrevistá-la para obter a sua confirmação sobre as afirmações do seu neto. Disse o Ventura que a avó costumava dizer que “isto só ia lá com dois Salazares”.

Coim aquele ar sorridente que ele gosta de afivelar, lambendo as beiças com frequência, como se estivesse permanentemente com sede, Ventura concluiu, dizendo que, agora, já não eram precisos dois Salazares porque havia um Ventura.

Ficámos, então, a saber que o Ventura acha que vale por dois Salazares. Portanto, se o Botas esteve no Poder 36 anos, teríamos de aturar o Ventura 72 anos!

Ventura, sem qualquer ternura/ merda, merda, merda pura

André, quer queiras, quer não/ terás de voltar para o Algueirão…